Paulo
Roberto de Almeida
Relação de Originais n.
2169. Relação de Publicados n. 1016.
Nota preliminar 1: Sempre me lembro de um aforismo de Ferreira
Gullar quando vou escrever um texto a partir do zero, sem notas e sem
preparação: “A crase não foi feita para humilhar ninguém”. Pois bem: este ensaio
não foi feito para humilhar nenhum acadêmico, nem para ofender a categoria, de
modo geral. Apenas desejei externar uma reflexão feita inteiramente a partir do
que constato nos ritos e nas práticas acadêmicas, com base na interação com
outros professores, no exame de artigos submetidos ao meu parecer e também
formada na leitura de muitos artigos publicados. O uso do conceito de
“mediocrização”, em relação à academia, e não simplesmente em conexão com a
televisão aberta, por exemplo, ou, de maneira geral, com a cultura de massas no
Brasil, pode parecer exagerado e indevido, mas me pareceu necessário nas
circunstâncias atuais. Em qualquer hipótese, a mediocridade reinante não é obra
de um ou dois acadêmicos; ela é um empreendimento coletivo de longa duração,
que já vem desde algum tempo no passado recente e que promete se estender por
um tempo ainda indefinido no futuro da academia brasileira.
Nota preliminar 2: Talvez o adjetivo “letrada” pudesse ser
substituído por um equivalente mais culto, “ilustrada” digamos, para
caracterizar a ignorância ostentada na “parte alta” da sociedade, isto é, naquela
supostamente dedicada ao conhecimento de alto nível. No meu conceito, porém,
essa ignorância não merece a caracterização “ilustrada”, pois se trata mesmo,
apenas e tão somente, de cultura “letrada”, na sua acepção mais elementar. Com
estes “avisos” a toda a comunidade, agora começo.
1. O problema
A
universidade brasileira, como todos sabem, é uma construção tardia. Talvez
alguma sumidade acadêmica atribua seus evidentes traços negativos ao chamado
“capitalismo tardio” em nosso país, qualquer que seja o significado desse
conceito histórico naturalmente anacrônico (pois que todo processo complexo e
multissecular, como o capitalismo, apresenta defasagens temporais em suas
manifestações concretas, em cada situação social determinada); mas a verdade é
que a mediocrização também é uma obra tardia, pois o fenômeno só surge depois
que a universidade foi inteiramente construída. Formada a partir de escolas e
faculdades isoladas na primeira metade do século 20, a universidade brasileira
só começou a erigir um sistema de pós-graduação a partir do final dos anos
1960: a “substituição de importações” nessa área foi um processo lento, ainda
não de todo acabado, mas já bastante consolidado para os padrões habituais dos
países em desenvolvimento. Pode-se dizer que, do ponto de vista dos
procedimentos administrativos e das técnicas de formação e de aperfeiçoamento
de pessoal de nível superior, a missão foi razoavelmente bem cumprida, muito
embora as “importações” ainda permaneçam como um componente importante em
várias áreas do sistema (o que é absolutamente natural e necessário).
Essa
construção se deu basicamente sob o regime militar (1964-1985), não ocorrendo
depois, na redemocratização e no período recente, nenhuma “revolução” no
terceiro ciclo, pelo menos não comparável ao processo de rupturas registrado
durante a fase autoritária. Os governos posteriores se limitaram a expandir o
sistema, por vezes de forma anárquica, abrindo novos espaços ao setor privado,
na ausência de investimentos estatais no setor, ou na incapacidade de governos
estaduais e do próprio governo central fazê-lo de modo compatível com as
necessidades detectadas. Essa expansão se deu de forma mais “elástica” do que
sistêmica, bem mais do lado quantitativo do que qualitativo, embora se possa
dizer que a produção ampliada também melhorou sensivelmente de qualidade em
muitas áreas.
O que a
redemocratização trouxe de diferente foi, justamente, um simulacro de
“democratização” das instituições universitárias, sob a bandeira da
“autonomia”. Na verdade, um aumento extraordinário e uma forte consolidação do
corporativismo e do sindicalismo em todas as faixas profissionais, ambos os fenômenos
dominados por partidos e movimentos de esquerda e pelo chamado “baixo clero”
(e, portanto, já tendente ao que chamei de mediocrização das instituições). Não
existe novidade nesse tipo de “evolução”, mesmo quando não aceitamos a legitimidade
de uma cultura de “elite”; o romancista americano James Fenimore Cooper – mais
conhecido entre nós por seu romance histórico bem pesquisado O Último dos Moicanos – já tinha
detectado a crescente mediocrização da vida intelectual nos Estados Unidos desde
o início do século 19, sociedade que não pode ser tida como exemplo de elitismo
aristocrático, ao contrário: ele indicava o fenômeno como coetâneo ao processo
de democratização social, em forte ascensão naquele país recentemente
independente.
Sem ter
apoio em pesquisas específicas ou estudos setoriais empiricamente embasados –
correndo o risco, nesse particular, de algum subjetivismo – é possível
afirmar-se que o crescimento e a expansão do terceiro ciclo ocorreram
paralelamente ao enorme crescimento quantitativo e à perda de qualidade dos
dois primeiros ciclos de ensino. Existem muitas evidências prima facie de que esses dois processos paralelos e aparentemente
contraditórios – embora concordantes no aspecto quantitativo – aconteceram ao
longo das quatro últimas décadas e meia, ou seja, nos 21 anos do regime militar
e nos 25 anos decorridos desde a redemocratização. Ao longo desse processo de
inegável democratização de oportunidades sociais – embora insuficiente e longe
de ter sido completada, sobretudo devido ao estrangulamento do secundário – os
dois movimentos se reforçaram mutuamente e consolidaram seus traços mais
negativos, evidenciados justamente no elemento característico que constitui o
elemento central desta análise: a perda de qualidade e a mediocrização geral do
ensino no Brasil, em especial em sua vertente “superior”.
2. As causas
Como
para todo fenômeno complexo, a perda de qualidade do ensino público em geral,
no Brasil, possui múltiplas causas, diversas variáveis intervenientes e
diferentes tipos de condicionantes, que foram se alterando ao longo do tempo.
Pode-se, no entanto, tentar isolar algumas causas aparentes que foram
interagindo entre si desde os anos 1960 e que se reforçaram conjuntamente no
final do período, ou seja, atualmente, e que prometem continuar agindo no
futuro previsível.
Tudo tem
início na geração precedente e no movimento pela reforma do ensino e de reforço
da escola pública, começado na sequência da Revolução de 1930, continuado na
implantação do Estado autoritário no Brasil, em 1937, e em sua consolidação nos
anos seguintes, movimento que se prolongou na República de 1946. Os líderes
militares e civis que comandaram esses processos nos trinta anos seguintes à
Revolução de 1930 foram bem sucedidos em criar um sistema de escolas públicas
de qualidade, ainda que bastante seletivo em sua capacidade de recrutamento –
basicamente a classe média urbana – e tendente a um mínimo denominador comum –
horários reduzidos e reforço limitado de mecanismos extra-escolares – mais do
que à ampliação progressiva dos conteúdos e metodologias.
Essa
escola “republicana” funcionava razoavelmente bem, ainda que de modo restrito,
quando os militares tomaram o poder e decidiram fazer uma revolução nas
carências educacionais mais sentidas no Brasil dessa época: criar uma
universidade compatível com as necessidades industrializantes e, sobretudo, operar
a implantação de programas de pós-graduação. Os militares provavelmente
partiram do pressuposto de que a escola pública já estava montada e funcionando
adequadamente, e que os esforços mais importantes deveriam ser dirigidos,
portanto, para a graduação universitária, em especial para a pós-graduação.
Recursos foram maciçamente direcionados a esses dois sistemas, ao mesmo tempo
em que os dois primeiros ciclos recebiam os influxos de milhões de novas
crianças e adolescentes, sob o impacto do crescimento demográfico e da
urbanização, bastante rápidos no Brasil dos anos 60 aos 80. As entidades de
fomento cresceram, as bolsas se multiplicaram, os salários dos professores
universitários eram relativamente elevados.
Paradoxalmente,
um dos principais fatores da perda progressiva de qualidade do ensino público
nos dois primeiros ciclos foi a concentração – e a centralização e a
reconcentração – dos recursos públicos no terceiro ciclo, este ultra-privilegiado
pelas autoridades em relação aos dois primeiros ciclos e, por isso mesmo, capaz
de “produzir” universidades relativamente dinâmicas ao longo das últimas três
décadas (sem prejulgar aqui e agora quanto à sua capacidade de produzir boa
ciência). O Brasil representa verdadeira anomalia internacional, provavelmente
universal, sob a forma de uma pirâmide invertida de gastos entre os ciclos. É absolutamente
único na desproporção inusitada, e aberrante, com que são alocados os recursos
no topo da educação (na verdade transformado em base superior da pirâmide), em
detrimento dos “primos pobres” dos dois ciclos de base (e da educação
técnico-profissional, também). Isso em flagrante contraste com o que acontece
na maior parte dos países (notadamente naqueles de melhor performance
educacional e de maior produtividade no sistema econômico de maneira geral).
Essa
desigualdade distributiva não explica tudo, porém, sendo necessário completar o
quadro mediante um fator causal de natureza mais qualitativa, representado
pelas orientações políticas e pedagógicas adotadas nos cursos de formação de
professores, especialmente nas faculdades de pedagogia (que formam formadores,
eventualmente também formadores de formadores). Não é segredo para ninguém que
o ensino no Brasil, em geral, e os cursos de pedagogia, em particular, são
tremendamente influenciados – se não dominados – pelas ideologias tidas por
“progressistas” (as aspas indicam obviamente o subjetivismo da expressão), com
ênfase naquelas aproximadas ao marxismo; bem como pelas correntes pedagógicas
identificadas de perto ou de longe com modismos da área (entre eles o chamado
“construtivismo”) e com um amálgama já difuso a partir da cepa original
“freireana”, ou seja, a chamada “pedagogia do oprimido” produzida por Paulo
Freire.
Dito
assim, com essa simplicidade redutora, parece que se trata de um aspecto desimportante no mar de problemas
– materiais, curriculares, humanos – da educação brasileira, embora ele seja,
do ponto de vista da abordagem adotada neste ensaio, um dos problemas mais
sérios envolvidos nos processos gerais e específicos da deterioração da
qualidade do ensino no Brasil (em vários níveis). As pedagogias freireanas
estão no centro da tragédia educacional brasileira. Ponto, parágrafo.
Estou
plenamente consciente de que as próprias corporações engajadas no ofício (e no
comércio) educacional no Brasil – em qualquer ciclo – tendem a enfatizar os
fatores pecuniários – insuficiência dos orçamentos públicos, no plano
institucional, modéstia ou mesmo depressão salarial dos professores, no plano
individual – como estando na origem de todas as mazelas da educação brasileira.
Não descarto, obviamente, essa linha explicativa – embora eu prefira enfatizar
o escândalo da pirâmide invertida da distribuição de gastos educacionais; mas
os fatores políticos e ideológicos são para mim bem mais relevantes, e mesmo
determinantes, na erosão qualitativa de todos os níveis da educação e de todo o
ensino (público ou particular) no Brasil.
3. As consequências
A tese
principal deste ensaio provocador – deliberadamente focado nas áreas de
humanidades – é a de que, depois de ter se beneficiado – e beneficiado a
sociedade – com a construção de um sistema universitário relativamente
completo, e aparentemente eficiente, com a formação de recursos humanos de
melhor qualidade que aqueles previamente existentes, a universidade brasileira
deu início a um processo de introversão autosustentada, o que a levou a se isolar
da sociedade e a desenvolver comportamentos entrópicos e autistas que, ao fim e
ao cabo, redundaram no referido processo de mediocrização atual (aliás, em
crescimento e expansão).
De fato,
esse processo apresenta, pelo lado das humanidades, um aspecto de ignorância
letrada que surpreende pela sua extensão e profundidade. Ele não é,
exclusivamente, o resultado das ditas pedagogias freireanas – que explicam mais
diretamente a perda de qualidade dos ciclos iniciais de ensino; mas ele é a
consequência de anos, mais exatamente décadas, de ideologias “educativas” marcadas
pelo que existe de mais atrasado na teoria social contemporânea. Ademais da
ausência de controles de qualidade, da falta de sistemas de metas fixadas e
resultados cobrados – que explicam sua falta de produtividade – o que mais
distingue a área de humanidades, no Brasil, é uma adesão acrítica a correntes e
movimentos típicos do capitalismo atrasado que aqui vigora. (Parêntese rápido:
obviamente meu comentário não vale para os que professam a fé religiosa nas
alternativas socialistas ao capitalismo, mas estes já pararam de ler este meu
ensaio desde o começo, se é que começaram; quanto a mim, estou certo de que o
Brasil é um país capitalista, ainda que atrasado, mas “condenado” a se
desenvolver no âmbito do capitalismo, ponto.). As concepções dessas correntes
de “pensamento” são as de um anticapitalismo instintivo, as de um forte
sentimento antimercado, um estatismo exacerbado, enfim, uma crença ingênua nas
virtudes da “engenharia social”, características, aliás, bastante disseminadas
em diversas universidades da região; e, até, em muitas universidades de países
perfeitamente capitalistas (como exemplo a França, por isso mesmo em declínio
intelectual e com baixa produtividade geral nos terrenos aqui focados).
Aqui
existe uma correlação circular e cumulativa de fatores causais: os ignorantes
letrados e as corporações sindicais se multiplicam e se reforçam mutuamente,
disseminando tentáculos por todos os poros universitários. Os que alcançam
funções “pedagógicas” formam as pedagogas freireanas que, por sua vez, vão
formar os professores do primário e do secundário – qualquer que seja a
estrutura e os títulos desses cursos –, que se tornam, no momento devido, seus
pupilos e orientandos, uma audiência cativa (muitas vezes passiva) dos novos
mandarins universitários. Nos vários componentes dessa complexa equação,
pedagogas freireanas, sinecuras acadêmicas, sindicalismo de baixa extração e
ideologias anticapitalistas e antimercado se combinam e se reforçam para
destruir a educação brasileira, pelo menos naquelas funções iluministas que ela
deveria exibir, colocando em seu lugar esses elementos característicos da
ignorância letrada.
No curto
prazo, o resultado global é o aprofundamento da mediocridade que já vinha
marcando as áreas de humanidades do sistema universitário – tanto público
quanto privado – nos últimos anos (possivelmente nas duas últimas décadas),
contribuindo, no médio e no longo prazo, para reforçar as tendências
brasileiras à estagnação ou ao atraso relativo. Essas características não são
percebidas, obviamente, pelos que integram o próprio sistema, sobretudo por
aqueles que vivem exclusivamente a vida universitária brasileira, em tudo o que
ela apresenta de autista e de entrópico. Os acadêmicos que já viajaram, que já
conviveram com universidades estrangeiras – refiro-me, obviamente, às boas
universidades americanas, e algumas boas europeias – e que já se utilizaram de
serviços e mercados nesses países, devem ter perfeita consciência, se tiverem
as mentes abertas, para o verdadeiro atraso em que vive o Brasil, mesmo com
todos os seus sinais de aparente modernidade. O Brasil é um país que caminha
lentamente, que praticamente se arrasta, penosamente, em direção à modernidade.
Esse
lento caminhar no sentido dos avanços científicos e tecnológicos mais dinâmicos
da contemporaneidade é evidente, mesmo comparando o Brasil a outros países
emergentes que se integram aos mercados globais da atualidade, sobretudo na
Ásia. Não se trata apenas ou exatamente de dificuldades em aceitar os
requerimentos do progresso em suas diversas expressões materiais e culturais;
afinal de contas, como já dizia Mário de Andrade mais de setenta anos atrás,
“progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Trata-se,
sobretudo, de bloqueios burocráticos e materiais a um progresso mais rápido:
qual é o país emergente que possui uma carga fiscal típica de país rico: 38% do
PIB? (Atenção: essa é a taxa média nos países da OCDE, sendo que alguns estão
abaixo de 30% e que sua renda per capita ultrapassa 40 mil dólares, mais de
seis vezes a brasileira.) Qual é o país no qual a atividade empreendedora é tão
cercada de entraves e dificuldades? (No que o Brasil empata, talvez, com a
Índia, outro país capitalista atrasado. Atualmente, mesmo aquele outro grande
país burocrático, que é a China, é mais capitalista que o Brasil.)
4. As evidências
Independentemente
dos lentos progressos materiais que o Brasil consiga realizar nos terrenos
vinculados a mercados capitalistas – no que ele vem sendo superado por países
de crescimento e de modernização mais rápidos – o fato é que o panorama
acadêmico vem experimentando nítido declínio de qualidade no âmbito das
humanidades, o que é revelado, por exemplo, pela forma e substância dos artigos
publicados ou apresentados para publicação nos veículos da área (muitos deles
existindo apenas e tão somente para cumprir requisitos de pontuação
estabelecidos de forma puramente quantitativista pelos organismos de fomento
acadêmico).
O
problema vai muito além do que já tinha constatado, desde 1985, Edmundo Campos
Coelho, em seu aclamado (e pouco lido) A
sinecura acadêmica: a ética universitária em questão (São Paulo: Vértice, 1985), já que atingindo bem mais do
que bancas de seleção de professores, cargos comissionados, apoios financeiros
e prebendas institucionais de modo geral. Ele transformou-se num problema sine cura, alcançando o próprio núcleo
do sistema de produção acadêmica, ou seja, sua própria substância, que é a
capacidade de produzir obras originais, em linguagem acessível a um público
mais vasto, mas dentro de rigorosos padrões acadêmicos de qualidade.
Com
efeito, um dos aspectos mais preocupantes dessa involução no período recente,
aliás, estimulada em grande medida pelas próprias autoridades da área, é a
tendência ao enclausuramento acadêmico, à diminuição dos esforços de cooperação
com o Norte e, no sentido contrário, o reforço de intercâmbios variados com
países do Sul, numa discriminação política que não faz sentido no plano
científico; dificilmente se poderá sustentar que entidades de pesquisa da
América Latina ou de continentes assemelhados possuam maior e melhor substância
científica do que seus equivalentes do Norte. Não existe maior demonstração da
vontade de autocondenar-se a viseiras mentais do que a frase sumamente imbecil,
bastante repetida em certos meios, que proclama que o “Sul é o nosso Norte”.
Toda e qualquer ciência, toda e qualquer abordagem acadêmica que se
autodireciona para um lado, ignorando todos os outros, é por definição estúpida
e autolimitativa em termos estritamente científicos.
Acadêmicos
defensores dessa postura se orgulham de exibir uma proclamada “latinoamericanidad”
que não faz o menor sentido no plano das metodologias e das pesquisas de ponta,
como se o fato de pertencer ao mesmo arco cultural ou a uma mesma zona
geográfica representasse qualquer garantia de qualidade acadêmica. O
“indigenismo” ingênuo e canhestro presente em algumas dessas novas experiências
de cooperação introduz um elemento totalmente estranho nas tradições de
pesquisa brasileira, já que referidos a um universo civilizatório que não tem
nada a ver com os componentes antropológicos ou culturais da formação histórica
e social do Brasil.
A busca
sôfrega por identidades nessas áreas, certamente forçada, mas intensamente
praticada nos últimos anos, representa um atraso e uma dispersão de esforços
que vão, inevitavelmente, cobrar um preço na produção acadêmica brasileira. As
interpretações classistas e “campesinas” da história social e do
desenvolvimento econômico na região, a adesão pouco refletida a supostas causas
de “oprimidos” e de “injustiçados” reforçam os componentes do atraso acadêmico;
interpretações, aliás, que vêm acompanhadas de um inacreditável apoio a uma das
experiências políticas mais nefastas já assistidas em todo o mundo, que é a
construção progressiva de um fascismo tido supostamente por ser de esquerda,
apenas porque o caudilho promotor emite invectivas “anti-imperialistas”. Uma
falsa noção de segurança e de soberania alimentar condena a atividade
primário-exportadora como sendo negativa do ponto de vista do desenvolvimento
econômico e social, quando ela é o sustentáculo da modernidade no campo,
independentemente de considerações ad hoc
sobre as dimensões regionais das propriedades ou seus vínculos com o mercado
externo.
São
muitos os exemplos de posturas anacrônicas no plano das humanidades, assim como
são muitos os componentes da mediocridade universitária, entre eles um
“gramscianismo” instintivo e até ignaro (já que não corresponde a uma
verdadeira leitura aberta da obra original). Esses exemplos podem até
corresponder a uma atitude militante compatível com preferências manifestas na
vida civil; mas jamais aos requisitos do trabalho acadêmico tal como
reconhecido pelos padrões normais da pesquisa científica. Todos eles vão
reforçar as deficiências metodológicas, a ignorância letrada e o atraso substantivo
nas pesquisas relevantes para o progresso e o desenvolvimento do Brasil. Em
algum momento, o ambiente acadêmico vai emergir das camisas de força
ideológicas e buscar a atmosfera mais arejada da pesquisa de boa qualidade. Mas
esse processo promete ser longo e custoso, tendo em vista os equívocos e
desvios já incorridos no cenário universitário brasileiro.
Quero
crer, também com base em evidências subjetivas, que o atraso é apenas relativo,
e não absoluto, pois em algumas áreas ou situações específicas a racionalidade tem
condições de se impor contra as ideologias ingênuas. No cômputo geral, contudo,
a situação atual nas humanidades da academia brasileira aparece como quase desesperadora,
necessitando, praticamente, o estabelecimento de um quilombo de resistência
intelectual contra os assaltos à racionalidade mais elementar por parte de
tribos crescentes de ignorantes letrados. Gostaria de estar errado, e de ser
apenas um pessimista elitista (não: não tenho nenhuma vergonha em buscar a elite
do saber). Gostaria de registrar uma rápida correção da academia brasileira em
direção de padrões de comportamento institucional mais consentâneos com sua
vocação humanista e, sobretudo, constatar uma produção intelectual à altura dos
requisitos de modernidade e progresso que estamos no direito de esperar de um
país inserido na globalização do conhecimento. Não é o que tenho observado até
aqui.
Esperemos
que seja um fenômeno passageiro, embora meu pessimismo realista tenha sólidas
razões para existir: afinal de contas, o otimismo da vontade, ou da prática,
não consegue prevalecer num ambiente de mentes fechadas, o que só alimenta o
pessimismo da razão, ou do intelecto. O problema parece estar em que os
acadêmicos gramscianos só pretendem ler Gramsci, jamais as críticas que lhe são
feitas, mesmo as de um intelectual socialista (embora liberal) como Norberto
Bobbio, por exemplo. As viseiras mentais daqueles mesmos que posam de sumidades
acadêmicas de relevo, e que são lidos e repetidos nas universidades brasileiras,
chegam a ser assustadoras, inclusive e sobretudo porque parecem ter assegurado
o seu próprio sucesso continuado, a julgar pela bibliografia distribuída e
pelos trabalhos produzidos nessas esferas.
Não é
preciso, aqui, citar nomes e ensaios publicados, pois é muito fácil deduzir
quem, ou quais são as “vacas sagradas” do processo de mediocrização da
universidade brasileira. Talvez dois pequenos trechos retirados de texto de um
dos gurus da nova ignorância sejam representativos do que estou analisando:
“Entra governo, sai governo, as leis do mercado parecem dominar
irreversivelmente o mundo, o estilo de vida norte-americano devasta espaços
nunca antes alcançados – seja na China ou na periferia das grandes metrópoles
do sul do mundo...”; “A crise da URSS não deu lugar a um socialismo superador
dos problemas desse modelo e, ao contrário, disseminou o neoliberalismo nas
terras de Lênin. O capitalismo abandonou seu modelo keynesiano por um modelo de
extensão inaudita da mercantilização de todos os rincões do mundo.” Um
acadêmico capaz de escrever tamanha bobagem é capaz de qualquer impostura
intelectual, que ele aliás não cessa de praticar.
Os
quilombos de resistência intelectual a esses processos de indigência acadêmica
e de desonestidade no plano das ideias – o que ocorre sempre quando os
argumentos exibidos estão longe de corresponder à realidade mais evidente – são
ainda muito tênues e pouco numerosos. A esperança é que eles se multipliquem
nos anos à frente e possam superar os imensos pântanos de mediocridade que se
espalham de modo preocupante pela universidade brasileira. Estou sendo muito
pessimista?
[Dubai-SãoPaulo, 17/07/2010; Shanghai,
30/07/2010]
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