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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Autoentrevista... ao chegar numa certa idade (2006) - Paulo Roberto de Almeida


Auto-entrevista (ao chegar numa certa idade...)

Paulo Roberto de Almeida

O objetivo desta entrevista é muito simples: colocar algumas questões sinceras a um personagem conhecido. Sua motivação é igualmente simples: a passagem do seu aniversário, não do seu seu, mas do seu dele, isto é do personagem. Considerando-se que, para mim, o personagem mais importante da minha vida sou eu mesmo – e não poderia ser de outra forma, do contrário não estaria aqui para controlar o gravador – a entrevista é comigo mesmo, o que, aliás, já estava implícito no título do trabalho, anulando assim qualquer efeito-surpresa.
Permito-me, portanto, aproveitar minha data natalícia – que eu não digo de quanto é, não por vergonha, mas porque isso não faz a menor diferença – para efetuar esta auto-entrevista com um personagem tão enrolado quanto eu (presumivelmente, vaidoso, também, pois do contrário a entrevista não existiria).
Antes, contudo, uma confissão e a promessa de pagamento de direitos autorais: tirei a idéia e a inspiração desta auto-entrevista do meu amigo Claudio Shikida, um economista promissor das Gerais, dedicado, como eu, às lides didáticas e acadêmicas (eu, a muitas outras mais, nas horas vagas e menos vagas), terrivelmente angustiado, como eu, com os des(a)tinos econômicos do Brasil, ele, contudo, bem mais jovem do que eu e com mais tempo, portanto, para corrigir as coisas erradas de que sempre nos arrependemos mais tarde, coisas que nos fizeram perder tempo, desviar o foco de atenção do trabalho principal (que alguém precisa me dizer qual seria), enfim, coisas que nos dão remorso depois, por termos calculado mal o custo-oportunidade do nosso raro (e caro) capital intelectual, deixando-o suportar as traças da preguiça e as trapaças da sorte. O importante, contudo, é ter paixão com aquilo e naquilo de que nos ocupamos, deixando-nos envolver (e absorver) pelos encargos do momento, mesmo os menos importantes...
Feito este prolegômeno, e sem mais delongas, vamos às conseqüências...
(Gravador ligado, ou melhor, computador ativo, bateria carregada...)


Então, Paulo Roberto, que balanço você faz da sua vida bem vivida?
            Creio poder afirmar, sem qualquer sentimento de auto-indulgência, que consegui construir um itinerário de sucesso relativo em minha vida, tanto no plano pessoal, como no profissional ou acadêmico. Digo relativo porque ele poderia ter sido mais “temprano”, ou mais evidente, do ponto de vista do reconhecimento público e da distinção social. O que sou, finalmente, é um diplomata de carreira média, sem grandes brilhos, mas também sem fracassos aparentes, um intelectual socialmente pouco conhecido, mas reconhecido em certos meios, uma pessoa humana dotada de algumas boas qualidades, mas também de vários defeitos. Entre estes últimos situa-se minha introversão básica, que me faz preferir a companhia dos livros do que das pessoas, o trabalho solitário no computador, no lugar da socialização aberta, o descaso, talvez, com as preocupações dos demais, na medida em que me concentro demasiadamente nas minhas próprias preferências em termos de leituras, interesses sociais, obsessões intelectuais.
Tudo isso não é muito bom, mas, por outro lado, creio que tenho algumas boas qualidades, a primeira delas sendo uma preocupação primordial com a sorte dos menos afortunados, daqueles que, como eu, na infância, conheceram ou conhecem a pobreza e que lutam para encontrar uma saída dessa condição amplamente insatisfatória. Sinto que eu tive chances, obviamente à custa de muito esforço pessoal e familiar, mas pelo menos pude contar com uma escola de boa qualidade, oportunidades de enriquecimento pessoal que me fizeram superar a estreiteza social e intelectual de meu meio de origem e que me permitiram uma vida de satisfação pessoal, de realizações intelectuais, de certo conforto material. Sinto que as crianças de hoje, que se encontram na mesma situação na qual eu me encontrava cinco décadas atrás, não têm muitas chances de refazer esse itinerário de ascensão social e de realização profissional, e isso me angustia profundamente. Sinto que o Brasil atual joga na lata do lixo dezenas (talvez centenas) de milhares de crianças que não poderão contribuir – como acredito que eu mesmo o faça – para o engrandecimento da Nação e a melhoria do bem-estar da sociedade. Nisso também reside o meu fracasso, que é também o de toda uma geração: não fomos capazes de melhorar o País, não tanto, em todo caso, quanto o seu povo sofrido o merecia. Esse fracasso de minha geração, eu o sinto como um fracasso pessoal.

O que lhe deu mais satisfação, até agora, na sua vida? Fez o que deveria ter feito?
            Não sei se tenho alguma grande obra da qual me orgulhar, no presente momento, mas o meu critério básico, de vida, é este aqui: procure construir um mundo e uma sociedade um pouco melhores do que aqueles que você encontrou ao chegar. Desse ponto de vista, talvez eu tenha contribuído para esse melhoramento parcial do nosso mundo e da nossa sociedade, não tanto enquanto diplomata, mas provavelmente enquanto mestre voluntário – o que eu não precisaria ser –, enquanto professor em tempo parcial, enquanto escritor em tempo integral, autor de alguns livros para-didáticos que podem melhorar o panorama do ensino especializado no Brasil. Através de meus muitos artigos, palestras e participação em seminários, com imensos sacrifícios pessoais e familiares – em grande medida também profissionais –, acredito que possa ter contribuído para o enriquecimento intelectual de alguns jovens que se interessaram em ler esses textos ou em ouvir-me. Tudo isso eu fiz sem pensar em remuneração ou “premiação” individual, apenas como um impulso interior, respondendo a uma necessidade íntima de ler, resumir, sistematizar essas leituras e de transmitir o que aprendi, pela palavra escrita ou a expressão oral. Acredito que fiz bem o que pude fazer nesse sentido, embora tudo isso seja uma pequena gota no imenso oceano de nossa incultura cívica e de nossa ignorância educativa.
            Essa “função didática” não era, registre-se, minha vocação original, que estava bem mais voltada para a “revolucionarização” do mundo e do Brasil – consoante uma ideologia da mudança radical e da transformação total da vida social, aqui e alhures –, do que para esse paciente trabalho professoral do “resume e ensina”. Acredito, porém, em retrospecto, que o lento trabalho didático é bem mais revolucionário do que os grandiosos projetos de mudança total da sociedade. Estes geralmente impõem um custo humano e social incomensurável para a maior parte das pessoas e das instituições, tão difíceis de serem construídas e tão fáceis de serem destruídas por espíritos malévolos ou egoístas. Sim, também acredito que eu não tenha sido egoísta, embora às vezes eu me arrependa de meu egoismo “didático” e de “escrevinhador”, que impõe custos aparentes e invisíveis à minha própria família e aos mais chegados. Nesse sentido, eu não fiz tudo o que deveria ter feito e sou devedor nesses aspectos.

Do que você se arrepende? (do que já fez e do que deveria fazer e ainda não fez?)
            Sinto não ter dado muita atenção às relações humanas e sociais, de ter me fechado sobre mim mesmo, ou melhor, nos livros, com os livros e para os livros. Não se pode ser perfeito, como se diz, mas acho que exagerei um bocado nessa convivência com os livros – e com os jornais e revistas, enfim, com a informação, de modo geral – deixando de lado justamente o lado humano das coisas. Acho que isso não me fez bem, nem familiarmente, nem pessoalmente ou profissionalmente. Não se trata de um “autismo livresco”, uma vez que, por adquirir muita informação, sou razoavelmente bem informado, cela va de soi, sobre o que ocorre no mundo e nas galáxias mais próximas, mas creio que uma redução ligeira da carga de leituras e uma atenção mais atenta, se ouso ser redundante, às pessoas que me cercam me teriam tornado uma pessoa melhor, mais apreciada, até mais ouvida.
            Não sei se ainda há tempo, mas talvez eu devesse começar a me ocupar do que é realmente importante: as pessoas, as relações humanas, não dos livros, que são inertes…

Sua vida pode ser dividida em etapas?; quais as mais importantes?
            Vejamos: 1) a ignorância, até os sete anos; 2) o aprendizado, dos sete aos 14 anos, aproximadamente; 3) o engajamento, a partir daí, nas chamadas causas “mudancistas”, o que sempre implica alguma dose de simplificação, de maniqueismo, de vontade de destruição, enfim, daquilo que se despreza, ou do que se aprende a ter raiva (a injustiça, a desigualdade, a miséria humana, material e social, e as supostas causas “estruturais” que respondem por esses males); 4) uma revisão intelectual desses true beliefs, a partir dos 25 anos, mais ou menos, o que coincide com uma reorientação de vida, a partir do primeiro quarto de século (uma geração inteira, pelo cômputo habitual), com definição profissional no campo do serviço público (diplomacia), seguida de casamento e de adesão ao “modo de vida burguês”; 5) um engajamento continuado, ao lado do serviço exterior, na carreira acadêmica, com a lenta (mas segura) construção de uma obra intelectual materializada em muitos livros e incontáveis artigos em diversas áreas de interesse acadêmico.
            Acho que estas seriam as principais etapas da minha vida, embora outros critérios, que não os acadêmicos e intelectuais, aqui selecionados, pudessem ter levado a uma outra divisão em etapas. Quanto às etapas mais importantes, acredito que elas estão em 2), o aprendizado, e em 4), a revisão intelectual. Esta corresponde ao abandono de simplismos e maniqueismos do marxismo adolescente, em favor de uma visão mais madura ou mais refletida dos problemas sociais, sobretudo a partir de um aprendizado mais sólido das questões econômicas, bem como pela predisposição de ter a mente aberta às experiências da vida, neste caso, um conhecimento direto das misérias do socialismo real.

Se voce pudesse voltar atrás, o que teria feito de diferente?
            Boa pergunta, difícil de ser respondida. Como eu não causei grandes males, nem à sociedade, nem a indivíduos, em particular, não identifico bem o que poderia ter feito de radicalmente diferente. Provavelmente, teria dado mais atenção à família, tanto a minha de origem, quanto a minha própria, já que este é, basicamente, o meu grande ponto falho. Não que eu tenha estado ausente fisicamente da família adquirida – o que certamente foi o caso da família de origem – mas é que eu certamente andei ausente intelectualmente e até fisicamente das obrigações mais elementares da administração familiar, voltado, como sempre estive, para a leitura e a redação. Eu também precisaria avaliar de forma crítica o engajamento afetivo, que é um importante elemento da dedicação familiar. Acredito que estes são os meus pontos fracos.

Se voce pudesse reencarnar, o que teria gostado ou gostaria ainda de ser?
            Não acredito nessa hipótese, daí um possível descarte da questão. Mas, admitindo, por brincadeira, essa possibilidade, a idéia surge de imediato de ter ou deter uma posição de mando, a partir da qual se poderia melhorar o mundo de maneira substantiva. Mas, esta é uma ilusão frequente daqueles que lêem muito, e que deveriam se contentar em ser nada mais do que simples conselheiros do príncipe e que, ao contrário, pretendem deter eles mesmos a chave do social embetterment. Dispor de poder significa ser uma pessoa mais ou menos carismática – nas artes da política ou no comando dos homens – e fazer disso uma alavanca da mudança. Geralmente se acaba caindo na mudança da condição pessoal, antes que a dos demais, daí decorrendo que não alimento nenhuma ilusão quanto a uma possível carreira política ou profissional.
            Gostaria, claro, de ser um melhor professor do que sou, reconhecido e prestigiado socialmente, o que aumentaria minha audiência e daria maior amplitude ao que tenho a dizer. Mas isso significa, mais uma vez, busca de prestígio social, o que redunda, sempre, na melhoria individual, não na transformação “societal”. Em todo caso, gostaria de ter poder “didático”, dispor de uma “caixa de ressonância” acoplada ao desempenho dessa missão. Mas, não consigo pensar em nenhuma figura histórica associada a essa imagem, algo como Buda e Confucius, junto com Gandhi e Einstein, inclusive porque as alusões a figuras históricas “memoráveis” como essas são profundamente enganosas, ademais de equivocadas, em seu mérito próprio.

Alguma preferência gastrônomica, um último desejo antes de lhe cortarem as coisas de que mais gosta por recomendação médica?
            Sorvete, doces cremosos, merengue, chocolate, refrigerante, enfim, tudo aquilo que já deixei de consumir, por força de conselhos nutricionais. No âmbito propriamente gastronômico, eu poderia listar, tranquilamente: risotto com trufas, espagueti com frutos do mar, um belo arrosto com legumes leves, vinhos encorpados e um queijo de cabra com baguette croustillante, terminando com uma fruta leve e um ristretto daqueles bem fortes. Talvez champagne para começar e um conhaque, ou melhor, cognac para terminar. Sem charutos, please. Tudo isso eu ainda posso arriscar, sem que um médico, daqueles chatos, venha me dizer para moderar a gula. Sempre fui mais gourmand do que gourmet, mas acho que, a partir de agora, deveria ser mais deste último do que daquele.

Alguma confissão? (Procure não enrolar os outros ou praticar o auto-engano.)
            Tenho de pensar seriamente antes de responder esta questão. Mas, como você vê, estou enrolando, mais uma vez. Acho que sou pretensioso demais, um metido a sabido, pretenso conhecedor de tudo, quando sou, na verdade, apenas um esforçado (nas leituras, certamente). Acho que também sou um pouco arrogante, com essa mania de ter lido mais do que os outros, o que deve ser insuportável para as pessoas “normais”. Penitencio-me por essas falhas, pois, e peço desculpas aos ofendidos. Sinceramente.

Além de ler, e de fazer resenhas, o que mais você fez nestes “nn” anos de vida?
            Bem, para conseguir fazer isso tudo, deixei de dormir, “nn” anos. O que eu mais fiz, portanto, foi vigília forçada, danosa, prejudicial à saúde mental pessoal e ao bem estar familiar. Isso, do lado ruim. Do lado bom, acho que me esforcei, sinceramente, para melhorar a vida das pessoas que me cercam, sobretudo pelo engrandecimento cultural ou intelectual. Acho que consegui fazer isso, embora não possa medir a eficácia real da minha ação. Acho que ela foi ínfima, em escala social, mas cada um faz o que pode.

O que o faz pensar que sua vida foi útil, para si mesmo, para a familia e os demais?
            Pelo meu critério, pretendo (mas ainda não consegui) deixar o mundo melhor do que o que encontrei, ou o que me foi dado. Existe falso altruísmo nisso? Talvez, mas essa é a minha maneira de conseguir prestígio e reconhecimento, o que pode ser uma forma de egoismo, também. Em todo caso, como não enriqueci às custas de ninguém – nunca pretendi, aliás, ficar rico no sentido material do termo –, nem tentei conseguir posições de mando praticando a usual arte da hipocrisia (que é comum nos políticos), acredito que fui útil no sentido mais banal do termo: pratiquei mais o bem do que o mal, mais contribui para o enriquecimento moral da humanidade do que agreguei aos elementos de egoísmo ou de individualismo excessivos que caracterizam as sociedades, em todas as épocas.
            Minha família talvez tenha outro julgamento quanto ao meu desempenho como pai, companheiro, orientador, mas espero não ter decepcionado a maior parte das pessoas que me cercam. Não vou encomendar pesquisas para recolher a opinião dos demais, mas uma consulta informal quanto à minha imagem talvez não fosse de todo descabida. 

Alguma regra de vida, alguma filosofia, mesmo barata?
            Aprenda, sempre, e ensine, o que sabe. Acumule e dissemine conhecimentos, seus e dos outros, processe e divulgue o que adquiriu no contato com os livros, na experiência de vida, na reflexão pausada, no contato com pessoas mais espertas do que você. Sempre se pode aprender algo de bom, de quaisquer experiências, mesmo as mais negativas. A humanidade só consegue avançar, no sentido moral da palavra “progresso”, quando as experiências e os saberes adquiridos são colocados à disposição do maior número.

Já preparou seu testamento (pelo menos intelectual)?
            Era só o que me faltava (e isso tem um lado fúnebre). Acho que, de certa forma, comecei agora mesmo, embora eu pretenda desenvolver isso em algum texto futuro (provavelmente sob a forma de um “testamento ético”). Em todo caso, preciso encontrar tempo para terminar de ler todos os meus livros (e depois distribuí-los). Acho que para isso precisarei de algo como 150 anos adicionais. Não sei se disporei de todo esse tempo.

Que mensagem importante deixaria ao mundo, na sua lápide, por exemplo?
            Um possível epitáfio (aliás vários, mas acho que tenho direito): “Foi feliz ao fazer o que fez. Aprendeu que o maior bem do mundo é converter-se em um multiplicador de conhecimentos. A humanidade não perde nada em dispor de indivíduos mais espertos, ou, pelo menos, de pessoas menos ignorantes. Esforçou-se para aumentar o número dos primeiros e diminuir o dos segundos, mas nem sempre foi bem sucedido. Não se pode fazer milagres…”

Bem, feliz aniversário, apesar de tudo.
Como “apesar de tudo”? O que fiz de errado ou de substancialmente equivocado? Que pessimismo é esse? A despeito das patifarias acumuladas pelos que nos comandam, nestes tempos de hipocrisia generalizada, de tantas falcatruas cometidas em nome do bem comum, de tanta roubalheira não sancionada pela justiça, a despeito disso tudo, creio que posso afirmar, como naquele filme singelo sobre o holocausto, que “a vida é bela!”
Acho que mereço desfrutar da vida como todo e qualquer indivíduo da espécie humana, de forma tão mais merecida quanto me sinto legitimamente orgulhoso ao olhar para trás e ver que, apesar do pouco que realizei, o que eu fiz, até aqui, pode ter servido, realmente, para tornar a vida de algumas pessoas um pouco melhor do que ela teria sido na minha ausência.
Cheers

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de novembro de 2006

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