Auto-entrevista (ao chegar numa certa idade...)
Paulo
Roberto de Almeida
O objetivo desta entrevista é muito simples: colocar algumas
questões sinceras a um personagem conhecido. Sua motivação é igualmente
simples: a passagem do seu aniversário, não do seu seu, mas do seu dele, isto é
do personagem. Considerando-se que, para mim, o personagem mais importante da
minha vida sou eu mesmo – e não poderia ser de outra forma, do contrário não
estaria aqui para controlar o gravador – a entrevista é comigo mesmo, o que,
aliás, já estava implícito no título do trabalho, anulando assim qualquer
efeito-surpresa.
Permito-me, portanto, aproveitar minha data natalícia – que eu não
digo de quanto é, não por vergonha, mas porque isso não faz a menor diferença –
para efetuar esta auto-entrevista com um personagem tão enrolado quanto eu
(presumivelmente, vaidoso, também, pois do contrário a entrevista não
existiria).
Antes, contudo, uma confissão e a promessa de pagamento de direitos
autorais: tirei a idéia e a inspiração desta auto-entrevista do meu amigo
Claudio Shikida, um economista promissor das Gerais, dedicado, como eu, às
lides didáticas e acadêmicas (eu, a muitas outras mais, nas horas vagas e menos
vagas), terrivelmente angustiado, como eu, com os des(a)tinos econômicos do
Brasil, ele, contudo, bem mais jovem do que eu e com mais tempo, portanto, para
corrigir as coisas erradas de que sempre nos arrependemos mais tarde, coisas
que nos fizeram perder tempo, desviar o foco de atenção do trabalho principal
(que alguém precisa me dizer qual seria), enfim, coisas que nos dão remorso
depois, por termos calculado mal o custo-oportunidade do nosso raro (e caro)
capital intelectual, deixando-o suportar as traças da preguiça e as trapaças da
sorte. O importante, contudo, é ter paixão com aquilo e naquilo de que nos
ocupamos, deixando-nos envolver (e absorver) pelos encargos do momento, mesmo
os menos importantes...
Feito este prolegômeno, e sem mais delongas, vamos às
conseqüências...
(Gravador ligado, ou melhor, computador ativo, bateria carregada...)
Então, Paulo Roberto,
que balanço você faz da sua vida bem vivida?
Creio poder afirmar,
sem qualquer sentimento de auto-indulgência, que consegui construir um
itinerário de sucesso relativo em minha vida, tanto no plano pessoal, como no
profissional ou acadêmico. Digo relativo porque ele poderia ter sido mais
“temprano”, ou mais evidente, do ponto de vista do reconhecimento público e da
distinção social. O que sou, finalmente, é um diplomata de carreira média, sem
grandes brilhos, mas também sem fracassos aparentes, um intelectual socialmente
pouco conhecido, mas reconhecido em certos meios, uma pessoa humana dotada de
algumas boas qualidades, mas também de vários defeitos. Entre estes últimos
situa-se minha introversão básica, que me faz preferir a companhia dos livros
do que das pessoas, o trabalho solitário no computador, no lugar da
socialização aberta, o descaso, talvez, com as preocupações dos demais, na
medida em que me concentro demasiadamente nas minhas próprias preferências em
termos de leituras, interesses sociais, obsessões intelectuais.
Tudo isso não é muito bom, mas, por outro lado,
creio que tenho algumas boas qualidades, a primeira delas sendo uma preocupação
primordial com a sorte dos menos afortunados, daqueles que, como eu, na
infância, conheceram ou conhecem a pobreza e que lutam para encontrar uma saída
dessa condição amplamente insatisfatória. Sinto que eu tive chances, obviamente
à custa de muito esforço pessoal e familiar, mas pelo menos pude contar com uma
escola de boa qualidade, oportunidades de enriquecimento pessoal que me fizeram
superar a estreiteza social e intelectual de meu meio de origem e que me
permitiram uma vida de satisfação pessoal, de realizações intelectuais, de
certo conforto material. Sinto que as crianças de hoje, que se encontram na
mesma situação na qual eu me encontrava cinco décadas atrás, não têm muitas chances
de refazer esse itinerário de ascensão social e de realização profissional, e
isso me angustia profundamente. Sinto que o Brasil atual joga na lata do lixo
dezenas (talvez centenas) de milhares de crianças que não poderão contribuir –
como acredito que eu mesmo o faça – para o engrandecimento da Nação e a
melhoria do bem-estar da sociedade. Nisso também reside o meu fracasso, que é
também o de toda uma geração: não fomos capazes de melhorar o País, não tanto,
em todo caso, quanto o seu povo sofrido o merecia. Esse fracasso de minha
geração, eu o sinto como um fracasso pessoal.
O que lhe deu mais
satisfação, até agora, na sua vida? Fez o que deveria ter feito?
Não sei se tenho alguma
grande obra da qual me orgulhar, no presente momento, mas o meu critério
básico, de vida, é este aqui: procure construir um mundo e uma sociedade um
pouco melhores do que aqueles que você encontrou ao chegar. Desse ponto de
vista, talvez eu tenha contribuído para esse melhoramento parcial do nosso
mundo e da nossa sociedade, não tanto enquanto diplomata, mas provavelmente
enquanto mestre voluntário – o que eu não precisaria ser –, enquanto professor
em tempo parcial, enquanto escritor em tempo integral, autor de alguns livros
para-didáticos que podem melhorar o panorama do ensino especializado no Brasil.
Através de meus muitos artigos, palestras e participação em seminários, com
imensos sacrifícios pessoais e familiares – em grande medida também
profissionais –, acredito que possa ter contribuído para o enriquecimento intelectual
de alguns jovens que se interessaram em ler esses textos ou em ouvir-me. Tudo
isso eu fiz sem pensar em remuneração ou “premiação” individual, apenas como um
impulso interior, respondendo a uma necessidade íntima de ler, resumir,
sistematizar essas leituras e de transmitir o que aprendi, pela palavra escrita
ou a expressão oral. Acredito que fiz bem o que pude fazer nesse sentido,
embora tudo isso seja uma pequena gota no imenso oceano de nossa incultura
cívica e de nossa ignorância educativa.
Essa “função didática”
não era, registre-se, minha vocação original, que estava bem mais voltada para
a “revolucionarização” do mundo e do Brasil – consoante uma ideologia da
mudança radical e da transformação total da vida social, aqui e alhures –, do
que para esse paciente trabalho professoral do “resume e ensina”. Acredito,
porém, em retrospecto, que o lento trabalho didático é bem mais revolucionário
do que os grandiosos projetos de mudança total da sociedade. Estes geralmente
impõem um custo humano e social incomensurável para a maior parte das pessoas e
das instituições, tão difíceis de serem construídas e tão fáceis de serem
destruídas por espíritos malévolos ou egoístas. Sim, também acredito que eu não
tenha sido egoísta, embora às vezes eu me arrependa de meu egoismo “didático” e
de “escrevinhador”, que impõe custos aparentes e invisíveis à minha própria
família e aos mais chegados. Nesse sentido, eu não fiz tudo o que deveria ter
feito e sou devedor nesses aspectos.
Do que você se
arrepende? (do que já fez e do que deveria fazer e ainda não fez?)
Sinto não ter dado
muita atenção às relações humanas e sociais, de ter me fechado sobre mim mesmo,
ou melhor, nos livros, com os livros e para os livros. Não se pode ser
perfeito, como se diz, mas acho que exagerei um bocado nessa convivência com os
livros – e com os jornais e revistas, enfim, com a informação, de modo geral –
deixando de lado justamente o lado humano das coisas. Acho que isso não me fez
bem, nem familiarmente, nem pessoalmente ou profissionalmente. Não se trata de
um “autismo livresco”, uma vez que, por adquirir muita informação, sou
razoavelmente bem informado, cela va de
soi, sobre o que ocorre no mundo e nas galáxias mais próximas, mas creio
que uma redução ligeira da carga de leituras e uma atenção mais atenta, se ouso
ser redundante, às pessoas que me cercam me teriam tornado uma pessoa melhor,
mais apreciada, até mais ouvida.
Não sei se ainda há
tempo, mas talvez eu devesse começar a me ocupar do que é realmente importante:
as pessoas, as relações humanas, não dos livros, que são inertes…
Sua vida pode ser
dividida em etapas?; quais as mais importantes?
Vejamos: 1) a
ignorância, até os sete anos; 2) o aprendizado, dos sete aos 14 anos,
aproximadamente; 3) o engajamento, a partir daí, nas chamadas causas
“mudancistas”, o que sempre implica alguma dose de simplificação, de
maniqueismo, de vontade de destruição, enfim, daquilo que se despreza, ou do
que se aprende a ter raiva (a injustiça, a desigualdade, a miséria humana,
material e social, e as supostas causas “estruturais” que respondem por esses
males); 4) uma revisão intelectual desses true
beliefs, a partir dos 25 anos, mais ou menos, o que coincide com uma
reorientação de vida, a partir do primeiro quarto de século (uma geração
inteira, pelo cômputo habitual), com definição profissional no campo do serviço
público (diplomacia), seguida de casamento e de adesão ao “modo de vida
burguês”; 5) um engajamento continuado, ao lado do serviço exterior, na
carreira acadêmica, com a lenta (mas segura) construção de uma obra intelectual
materializada em muitos livros e incontáveis artigos em diversas áreas de
interesse acadêmico.
Acho que estas seriam
as principais etapas da minha vida, embora outros critérios, que não os
acadêmicos e intelectuais, aqui selecionados, pudessem ter levado a uma outra
divisão em etapas. Quanto às etapas mais importantes, acredito que elas estão
em 2), o aprendizado, e em 4), a revisão intelectual. Esta corresponde ao
abandono de simplismos e maniqueismos do marxismo adolescente, em favor de uma
visão mais madura ou mais refletida dos problemas sociais, sobretudo a partir
de um aprendizado mais sólido das questões econômicas, bem como pela
predisposição de ter a mente aberta às experiências da vida, neste caso, um
conhecimento direto das misérias do socialismo real.
Se voce pudesse
voltar atrás, o que teria feito de diferente?
Boa pergunta, difícil
de ser respondida. Como eu não causei grandes males, nem à sociedade, nem a
indivíduos, em particular, não identifico bem o que poderia ter feito de
radicalmente diferente. Provavelmente, teria dado mais atenção à família, tanto
a minha de origem, quanto a minha própria, já que este é, basicamente, o meu
grande ponto falho. Não que eu tenha estado ausente fisicamente da família
adquirida – o que certamente foi o caso da família de origem – mas é que eu
certamente andei ausente intelectualmente e até fisicamente das obrigações mais
elementares da administração familiar, voltado, como sempre estive, para a
leitura e a redação. Eu também precisaria avaliar de forma crítica o
engajamento afetivo, que é um importante elemento da dedicação familiar.
Acredito que estes são os meus pontos fracos.
Se voce pudesse
reencarnar, o que teria gostado ou gostaria ainda de ser?
Não acredito nessa
hipótese, daí um possível descarte da questão. Mas, admitindo, por brincadeira,
essa possibilidade, a idéia surge de imediato de ter ou deter uma posição de
mando, a partir da qual se poderia melhorar o mundo de maneira substantiva.
Mas, esta é uma ilusão frequente daqueles que lêem muito, e que deveriam se
contentar em ser nada mais do que simples conselheiros do príncipe e que, ao
contrário, pretendem deter eles mesmos a chave do social embetterment. Dispor de poder significa ser uma pessoa mais
ou menos carismática – nas artes da política ou no comando dos homens – e fazer
disso uma alavanca da mudança. Geralmente se acaba caindo na mudança da
condição pessoal, antes que a dos demais, daí decorrendo que não alimento
nenhuma ilusão quanto a uma possível carreira política ou profissional.
Gostaria, claro, de ser
um melhor professor do que sou, reconhecido e prestigiado socialmente, o que
aumentaria minha audiência e daria maior amplitude ao que tenho a dizer. Mas
isso significa, mais uma vez, busca de prestígio social, o que redunda, sempre,
na melhoria individual, não na transformação “societal”. Em todo caso, gostaria
de ter poder “didático”, dispor de uma “caixa de ressonância” acoplada ao
desempenho dessa missão. Mas, não consigo pensar em nenhuma figura histórica
associada a essa imagem, algo como Buda e Confucius, junto com Gandhi e
Einstein, inclusive porque as alusões a figuras históricas “memoráveis” como
essas são profundamente enganosas, ademais de equivocadas, em seu mérito
próprio.
Alguma preferência
gastrônomica, um último desejo antes de lhe cortarem as coisas de que mais
gosta por recomendação médica?
Sorvete, doces
cremosos, merengue, chocolate, refrigerante, enfim, tudo aquilo que já deixei
de consumir, por força de conselhos nutricionais. No âmbito propriamente
gastronômico, eu poderia listar, tranquilamente: risotto com trufas, espagueti com frutos do mar, um belo arrosto com legumes leves, vinhos
encorpados e um queijo de cabra com baguette
croustillante, terminando com uma fruta leve e um ristretto daqueles bem fortes. Talvez champagne para começar e um conhaque, ou melhor, cognac para terminar. Sem charutos, please. Tudo isso eu ainda posso
arriscar, sem que um médico, daqueles chatos, venha me dizer para moderar a
gula. Sempre fui mais gourmand do que
gourmet, mas acho que, a partir de
agora, deveria ser mais deste último do que daquele.
Alguma confissão?
(Procure não enrolar os outros ou praticar o auto-engano.)
Tenho de pensar
seriamente antes de responder esta questão. Mas, como você vê, estou enrolando,
mais uma vez. Acho que sou pretensioso demais, um metido a sabido, pretenso
conhecedor de tudo, quando sou, na verdade, apenas um esforçado (nas leituras,
certamente). Acho que também sou um pouco arrogante, com essa mania de ter lido
mais do que os outros, o que deve ser insuportável para as pessoas “normais”.
Penitencio-me por essas falhas, pois, e peço desculpas aos ofendidos.
Sinceramente.
Além de ler, e de
fazer resenhas, o que mais você fez nestes “nn” anos de vida?
Bem, para conseguir
fazer isso tudo, deixei de dormir, “nn” anos. O que eu mais fiz, portanto, foi
vigília forçada, danosa, prejudicial à saúde mental pessoal e ao bem estar
familiar. Isso, do lado ruim. Do lado bom, acho que me esforcei, sinceramente,
para melhorar a vida das pessoas que me cercam, sobretudo pelo engrandecimento
cultural ou intelectual. Acho que consegui fazer isso, embora não possa medir a
eficácia real da minha ação. Acho que ela foi ínfima, em escala social, mas
cada um faz o que pode.
O que o faz pensar
que sua vida foi útil, para si mesmo, para a familia e os demais?
Pelo meu critério,
pretendo (mas ainda não consegui) deixar o mundo melhor do que o que encontrei,
ou o que me foi dado. Existe falso altruísmo nisso? Talvez, mas essa é a minha
maneira de conseguir prestígio e reconhecimento, o que pode ser uma forma de
egoismo, também. Em todo caso, como não enriqueci às custas de ninguém – nunca
pretendi, aliás, ficar rico no sentido material do termo –, nem tentei
conseguir posições de mando praticando a usual arte da hipocrisia (que é comum
nos políticos), acredito que fui útil no sentido mais banal do termo: pratiquei
mais o bem do que o mal, mais contribui para o enriquecimento moral da
humanidade do que agreguei aos elementos de egoísmo ou de individualismo
excessivos que caracterizam as sociedades, em todas as épocas.
Minha família talvez
tenha outro julgamento quanto ao meu desempenho como pai, companheiro,
orientador, mas espero não ter decepcionado a maior parte das pessoas que me
cercam. Não vou encomendar pesquisas para recolher a opinião dos demais, mas
uma consulta informal quanto à minha imagem talvez não fosse de todo
descabida.
Alguma regra de vida,
alguma filosofia, mesmo barata?
Aprenda, sempre, e
ensine, o que sabe. Acumule e dissemine conhecimentos, seus e dos outros,
processe e divulgue o que adquiriu no contato com os livros, na experiência de
vida, na reflexão pausada, no contato com pessoas mais espertas do que você.
Sempre se pode aprender algo de bom, de quaisquer experiências, mesmo as mais
negativas. A humanidade só consegue avançar, no sentido moral da palavra
“progresso”, quando as experiências e os saberes adquiridos são colocados à
disposição do maior número.
Já preparou seu
testamento (pelo menos intelectual)?
Era só o que me faltava
(e isso tem um lado fúnebre). Acho que, de certa forma, comecei agora mesmo,
embora eu pretenda desenvolver isso em algum texto futuro (provavelmente sob a
forma de um “testamento ético”). Em todo caso, preciso encontrar tempo para
terminar de ler todos os meus livros (e depois distribuí-los). Acho que para
isso precisarei de algo como 150 anos adicionais. Não sei se disporei de todo
esse tempo.
Que mensagem
importante deixaria ao mundo, na sua lápide, por exemplo?
Um possível epitáfio
(aliás vários, mas acho que tenho direito): “Foi feliz ao fazer o que fez.
Aprendeu que o maior bem do mundo é converter-se em um multiplicador de
conhecimentos. A humanidade não perde nada em dispor de indivíduos mais
espertos, ou, pelo menos, de pessoas menos ignorantes. Esforçou-se para
aumentar o número dos primeiros e diminuir o dos segundos, mas nem sempre foi
bem sucedido. Não se pode fazer milagres…”
Bem, feliz
aniversário, apesar de tudo.
Como “apesar de tudo”? O que fiz de errado ou
de substancialmente equivocado? Que pessimismo é esse? A despeito das
patifarias acumuladas pelos que nos comandam, nestes tempos de hipocrisia
generalizada, de tantas falcatruas cometidas em nome do bem comum, de tanta
roubalheira não sancionada pela justiça, a despeito disso tudo, creio que posso
afirmar, como naquele filme singelo sobre o holocausto, que “a vida é bela!”
Acho que mereço desfrutar da vida como todo e
qualquer indivíduo da espécie humana, de forma tão mais merecida quanto me
sinto legitimamente orgulhoso ao olhar para trás e ver que, apesar do pouco que
realizei, o que eu fiz, até aqui, pode ter servido, realmente, para tornar a
vida de algumas pessoas um pouco melhor do que ela teria sido na minha
ausência.
Cheers…
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
19 de novembro de 2006