Uma ameaça ao made in Brazil
Como um processo na OMC contra a política de proteção aos carros produzidos no País se transformou em risco para as fabricantes locais de computadores e celulares
Nas negociações entre as montadoras instaladas no Brasil e o governo em torno de um programa para proteger a produção nacional, era comum ouvir representantes do setor minimizarem o risco já identificado de um eventual processo na Organização Mundial de Comércio (OMC) contra medidas como a exigência de etapas fabris locais e um adicional de imposto aos importados. Quando o Inovar-Auto foi anunciado, em 2012, a avaliação era de que um contencioso internacional não surtiria efeitos antes do fim do prazo da política setorial, em 2017. Como previsto, a condenação na entidade só saiu em meados do ano passado, por uma queixa aberta por europeus e japoneses. O Inovar-Auto já não existe mais, foi substituído por um novo programa de benefícios. E a conta do processo na entidade periga recair sobre outros fabricantes nacionais: as empresas de tecnologia.
Ao elaborar o documento que questionou os incentivos da cadeia automotiva, os representantes da União Europeia e do Japão aproveitaram para revisar um conjunto de políticas setoriais brasileiras. Decidiram incluir outras iniciativas que julgavam desrespeitar as regras de comércio mundial, como a Lei de Informática e programas de desonerações voltados aos exportadores. Um recurso do Brasil contra a decisão está em fase final de apreciação. A expectativa é que o veredito saia até outubro. Se mantida a condenação, computadores, tablets e celulares nacionais podem ficar até 15% mais caros, o suficiente para reduzir a competitividade com os semelhantes importados e ameaçar a permanência de fábricas e centros de pesquisa no País. “Os investimentos foram feitos considerando a lei, não pode haver quebra de contrato”, afirma Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). “Entramos de gaiato no navio no processo e estamos esperançosos de que vamos conseguir superá-lo.”
A Lei de Informática existe desde 1991, o que endossa a tese de que a norma, isoladamente, não seria suficiente para motivar o processo. Ela prevê a redução de 80% de IPI para as empresas que cumprirem etapas de produção no Brasil e investirem no mínimo 4% do faturamento em pesquisa e desenvolvimento. Também estimula a compra de insumos locais. A queixa na OMC questiona sobretudo o estímulo para as etapas de fabricação nacional. “Estamos num momento de muita incerteza sobre o que vai acontecer com o programa”, afirma João Emílio Gonçalves, gerente-executivo de Política Industrial na Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Se, por um lado, a decisão do painel da OMC condenou o Brasil, também não é incomum que o órgão de apelação reveja essas decisões.” O setor evita falar em plano B, embora a hipótese já tenha sido admitida até pelo Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab. O cenário mais provável é o de uma reversão parcial do incentivo.
Como os planos de negócios das empresas contam com o benefício, previsto para acabar somente em 2029, o risco de desinvestimento não está descartado. “Um movimento natural seria tirar a fábrica daqui”, afirma Eros Jantsch, presidente da Bematech. A empresa de automação comercial fabrica computadores, impressoras e terminais que são usados nos pontos de vendas de seus clientes. O executivo, porém, acredita que esse cenário mais drástico é menos provável. “Havia uma discussão de que a Lei de Informática ia acabar. Estamos mais longe disso.” Criada em 1987, a empresa do Paraná abriu capital na bolsa vinte anos depois. Hoje, faz parte da Totvs, que somou R$ 563 milhões em receitas no trimestre. Cerca de 70% do faturamento da Bematech advêm de produtos que são incentivados pela Lei de Informática. O benefício tem relação com cerca de 200 vagas no grupo.
Para o presidente da empresa, o incentivo permitiu a criação de um ecossistema de automação comercial brasileiro, inexistente em mercados semelhantes. “Se olhar qualquer outro país da América Latina, o setor é controlado por empresas americanas e europeias”, diz Jantsch. “Todos os países que não precisam hoje proteger seus mercados, ficaram por décadas protegendo.” Além das brasileiras, multinacionais que fabricam hoje no País defendem a importância da regra. “A Dell, assim como muitas empresas globais, vieram para o Brasil muito em função da Lei de Informática”, afirmou Mauricio Helfer, diretor da Dell computadores em apresentação sobre o tema na Câmara, em junho. “Certamente, a lei não vai resolver todos os gargalos de competitividade, mas é uma alavanca para continuar com toda essa cadeia produtiva e de desenvolvimento no Brasil.”
Como exemplo do impulso, a empresa citou os 750 funcionários que possui nos centros de pesquisa locais. No mesmo evento no Legislativo, também defenderam a política a Ericsson, citando os 500 pesquisadores no Brasil e R$ 1 bilhão de investimentos na área pela operação local. Além delas, a WEG apontou 2,5 mil funcionários do grupo relacionados aos produtos beneficiados pela lei e uma melhora nas exportações. O setor usa como argumento de defesa a necessidade de compensar a complexidade tributária do País e acredita que uma interpretação mais abrangente sobre a exigência de produção local, proibida nas regras da OMC, possa ser favorável ao Brasil com base em outros casos julgados na entidade. Ao mesmo tempo em que sofre a disputa na OMC, a lei é alvo de críticas no País. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o benefício continua a ser prorrogado sem ter seus impactos medidos sobre o setor e apresenta falhas nas checagens sobre as contrapartidas de investimentos em pesquisa. A renúncia anual aos cofres públicos é de cerca de R$ 5 bilhões.
A discussão sobre a eficácia e sobre a necessidade de manutenção da lei deve se acentuar no período eleitoral. Candidatos à presidência vêm sinalizando a intenção de reduzir incentivos fiscais como uma medida para reduzir o quadro de déficit do governo federal. Em defesa, o setor apresenta números apurados pelo próprio Executivo como resultados da política. Segundo o último balanço da Lei de Informática, do Ministério da Ciência e Tecnologia, as 529 empresas beneficiadas, que somavam R$ 46,7 bilhões em receitas em 2015, investiram R$ 1,3 bilhão em pesquisa em desenvolvimento no ano. Elas empregavam pouco mais de 117 mil funcionários. A arrecadação com a venda dos produtos beneficiados pela lei é estimada em R$ 9,8 bilhões. “A lei acabou desenvolvendo uma série de centros de pesquisa no Brasil”, afirma Barbato, da Abinee. “A grande maioria não sobrevive sem esse aporte.” Qualquer que seja a decisão da OMC, o prazo de até dois anos para fazer eventuais mudanças é considerado exíguo. E, além da política setorial de informática, ainda há risco aos exportadores nos outros programas (leia abaixo) questionados.
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