Memórias do Barão do Rio Branco (4)
Uma data para esquecer
José Maria da Silva Paranhos Jr.
Petrópolis, 19 de abril de 1908
[Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.’
Amanhã é o meu aniversário de nascimento, o que sempre me deixa muito irritado, não tanto pela data em si, à qual não dou a mínima importância – agora que estou distante de minha família, que ficou em Paris –, mas pelo fato de que meus assessores, e mesmo gente que eu raramente vejo no trabalho diário, vêm pressurosamente prestar supostas homenagens por mais um natalício que eu preferia esquecer. O que, sim, eu gostaria de comemorar, é o aniversário do meu querido pai, o Visconde, de quem herdei esse glorioso título de “Rio Branco”, que essa nossa República tão bizarra pretende extinguir, nesses arroubos de um jacobinismo tão infantil quanto desnecessário.
O aniversário de nascimento de meu pai transcorreu pouco mais de um mês atrás, em 16 de março, e a não pude comemorar dignamente – talvez inaugurando o seu busto na nossa Secretaria dos Negócios Estrangeiros – porque eu já estava refugiado neste meu chalet de Petrópolis, a cidade do imperador, para onde venho sempre que posso.
Já não aguento aquele ambiente ainda fétido do munícipio neutro, mesmo depois que o grande Oswaldo Cruz tentou combater os miasmas pestilenciais que sempre afugentaram do Rio todo o corpo diplomático e mesmo visitantes estrangeiros.
O 16 de março, quando o meu querido pai poderia estar comemorando o seu 89. aniversário, passou em branco, pois, mas espero organizar uma homenagem muito mais merecida, no ano que vem, quando ele estaria completando 90 anos, se ainda estivesse vivo. Sinto muito não ter podido acompanhar seu falecimento quase trinta anos atrás, pois eu já me encontrava em Liverpool – na verdade em Paris –, quando ele nos deixou, com apenas 61 anos, mas com uma grande obra atrás de si. Ainda me lembro perfeitamente bem quando o acompanhei, ainda com cabelos negros, em sua primeira missão no Prata, para tentar resolver aquelas contendas ridículas que sempre surgem entre Blancos e Colorados, e que nos obrigaram, mais de uma vez, a intervir nos negócios internos dos nossos vizinhos da Cisplatina. Sempre desconfiei que essas nossas intrusões nas confusões dos uruguaios – mesmo atuando indiretamente, pelos “bons ofícios do Irineu Evangelista, por exemplo – poderiam ainda causar confusões ainda maiores, como de fato ocorreu logo depois, com a maldita guerra que arruinou o nosso próspero império.
Não pude fazê-lo em sua segunda missão, da qual ele retornou cabisbaixo, sob as críticas dos seus inimigos na Assembleia e mesmo no Senado. Mas sua defesa de sete horas na Câmara Alta, foi tão memorável no desfilar dos bons argumentos, que nosso grande romancista, o velho Machado – que ficou macambúzio depois da morte da sua doce Carolina – produziu uma das mais belas crônicas que já vi publicadas nos nossos folhetins. Meu pai foi um dos maiores estadistas do Brasil, ainda que meu amigo Nabuco dispute a primazia da lista em favor do seu próprio pai, a quem dedicou dois grossos volumes que ainda não tive a pachorra de terminar. O Quincas também já vai avançado na idade, mas ainda nos tem prestado belos serviços na capital dos yankees, os quais ele passou a admirar, depois de uma fresca paixão pelos pérfidos ingleses; espero que ele consiga com o homem do porrete, Theodore, algum dreadnought desses novos, já que os malditos argentinos continuam a nos bloquear o caminho dos estaleiros britânicos. Se ele conseguisse falar com o Mahan, aposto que o homem do poder naval americano apoiaria a ideia junto ao presidente.
Ontem o Domício [da Gama] subiu a serra para me ver, e pedir que eu descesse com ele, para alguma comemoração do meu aniversário, o que me recusei a fazer. Da última vez que cá vim, suei doze lenços, desde a saída do Rio, em caleche, depois no trem que o Mauá construiu e novamente a força de animal até esta minha casinha que tem me servido bem, desde que aqui recebemos os bolivianos, para aquelas difíceis negociações do Acre. Na verdade, quem deu mais trabalho não foram nossos vizinhos, mas o meu amigo Ruy, que se mostrou intransigente na questão do pagamento do novo território e na cessão de uma nesga do nosso próprio território a eles. Acabou saindo da delegação, o que não me impediu de convidá-lo para chefiar a nossa participação na segunda conferência da paz da Haia, no ano passado, quando teve de impor todo o seu valor contra os imperialistas do velho e do novo continente.
O Domício insistiu muito, dizendo que todos no palácio da Rua Larga gostariam de me cumprimentar, e que de mim esperavam algumas palavras de estímulo nas confusões que ainda temos de resolver com os nossos hermanos, sempre desejosos de estorvar as nossas boas relações com os amigos do hemisfério e do velho mundo. Eu confessei-lhe que já ando cansado dos problemas que eles nos causam desde sempre, mesmo depois que Roca andou por aqui, quase dez anos atrás, proclamando hipocritamente que nada nos separa. Gostaria que assim fossem, e por isso mesmo respondi a Domício que tínhamos de ver com nossos amigos chilenos se eles estão mesmo dispostos a assinar esse Pacto ABC que eu já propus desde alguns anos. Estou cada vez mais pessimista com o cenário geopolítico nestas bandas do Sul, pois os argentinos só buscam um motivo para nos prejudicar mais uma vez com paraguaios, uruguaios e bolivianos.
Disse a Domício que estava sofrendo da gota, e que assim não poderia ser desta vez que eu desceria a serra. Ele ainda insistiu comigo que o Ruy também queria me ver, para discutir a sua campanha à presidência, que ele chamou de “civilista”, para contrastar com as recentes tendências militaristas que surgiram no horizonte da nação. Domício até chegou a sinalizar que muitos lá embaixo não tinham desistido da investida de me fazer candidato à chefia do país, coisa que eu detestaria, dizendo que eu seria praticamente imbatível, dado meu rol de serviços ao país. Acenei para que ele não me importunasse mais com esse tipo de baliverne, pois eu nunca fui homem de política, menos ainda de partidos: tudo o que me interessa é a glória do Brasil nos negócios de Estado, no grande palco deste novo século tão prometedor.
Ele se foi consternado, não sem antes me dizer que o Euclides (da Cunha) continuava aguardando algum posto permanente no nosso serviço; fiz mostra de me interessar pelo nosso homem do Conselheiro e da Amazônia, mas nunca tive muita vontade de empregar um criador de casos, sempre afetando uma superioridade que de fato ele não possui. Domício ainda me perguntou, na soleira da porta, se eu não pretendia fazer algum concurso para completar as vagas que estavam sendo criadas pela aposentadoria de antigos monarquistas, homens do meu tempo, quando o prestígio do Brasil no exterior era ainda maior. Respondi-lhe que pensaria no assunto, mas não pretendo mudar meu modo de recrutamento: eu mesmo entrevisto os candidatos segundo os meus critérios, não essas provas parnasianas, montadas por esses escriturários sem o charme necessário ao nosso serviço diplomático de inspiração britânica.
Encomendei-lhe, ainda, quando chegou a carruagem, que pensasse em algum artista para fazer o busto do meu pai, pois lhe devíamos essa homenagem, pelos insignes serviços que ele prestou à nação, e não apenas na questão servil. Foi Paranhos pai quem, mesmo sendo matemático de formação, criou o cargo de Consultor Jurídico da antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, e ainda formulou, de sua própria mão, inúmeros pareceres eivados da mais pura doutrina jurídica, e do maior rigor lógico e matemático, virtudes que se perderam depois que deixaram o posto vacante pelo resto do Império. Fui eu quem tive o prazer de restabelecer o serviço, e resolvi testar as qualidades do jovem Clovis Beviláqua, que me parece prometedor, tendo saído da mesma Escola do Recife do grande Tobias Barreto, um quase anarquista republicano, mas o único em nossas paragens que lia e escrevia perfeitamente na língua de Goethe.
Vou deixar passar o meu aniversário, e só retornar ao Rio na semana que vem, para despachar alguns assuntos no Itamaraty, e despachar alguma correspondência no próximo paquete para a Europa: meus filhos devem estar inquietos deste meu silencia inabitual. Eu espero, sinceramente, que o Ruy possa ter êxito contra aquela mula fardada que ameaça desmantelar a nossa frágil República: o marechal, que arrisca ganhar, tem aquela mesma neurose nacionalista que alimenta alguns dos piores tribunos europeus, e esse sempre foi o germe das guerras e dos conflitos. Folgo em que esses imperialistas europeus se entendam, a despeito das quizílias que andam arrumando no norte e no sul da África, depois de já terem estuprado a China, quando daquela revolução tão infeliz dos Boxers. Ando cansado de todas essas boutadeseuropeias, que pretendem que nós é que somos povos não civilizados, quando eles perpetram as piores barbaridades em todos esses locais, escravizando os indígenas, como faz aquele arrogante Leopold II no Congo; o que ele anda fazendo contra os pobres negros, naquelas terras ricas em minerais preciosos é um verdadeiro horror, segundo me relata nosso cônsul em Anvers.
Só espero que quando eu voltar ao Rio, por um tempo o menor possível, eu não tenha de aguentar os falsos elogios de todos esses áulicos, que só me querem para uma fotografia, para depois conquistar alguma boa imagem na nossa imprensa volúvel. O Itamaraty não é velho, mas andou envelhecendo precocemente, sob a longuíssima direção do nosso Cabo Frio. Eu ainda lhe inventei um busto, alguns anos atrás, para ver se ele se decidia partir, mas o velho grudou-se como uma ostra no rochedo, e só saiu mesmo à beira da morte. O Visconde, o mais longevo dos nossos diretores gerais, e que ainda vinha dos tempos em que esse cargo tinha o título de Oficial Maior, me escondia os dossiês mais delicados, pois pretendia ter sozinho o controle da chancelaria. Não quero que nenhum dos meus assessores tenha essa pretensão, mesmo aqueles mais devotados dos secretários: vou fazer dois ou três ministros na Europa, para me livrar dos mais subservientes, pois não gosto desses que vivem sem ter opinião própria. O Itamaraty precisa ter personalidade própria e nunca mais dobrar-se aos políticos oportunistas.
Amanhã (...)
[anotações interrompidas neste ponto e o Barão não mais retomou os projetos para o dia do seu aniversário; ele parece nunca ter desistido de fazer o aniversário do seu pai, um dia de homenagem aos diplomatas da nação, como ainda quis fazer em 1909. Falta decifrar muitas outras páginas, na letra críptica do Barão.]
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