Correspondência intelectual de Celso Furtado nesta matéria da BBC, sobre o livro organizado por Rosa Freire d’Aguiar.
Como diplomata, tendo também vivido, em etapa anterior ,um exílio voluntário durante a ditadura militar, mas dispondo felizmente de passaporte, constrange-me especialmente transcrever este trecho de suas palavras na entrevista:
“"As cartas do exílio são muito pungentes, dolorosas de ler. Expõem os dramas vividos pelos exilados. Seus problemas eram incontáveis: de saúde, financeiros, familiares... As embaixadas, por sua vez, dificultavam ao máximo suas vidas: negavam vistos, não concediam passaportes, entre outras pequenas maldades".”
Como as ditaduras, os regimes intolerantes, em geral, podem ser tão crueis com os seres humanos, os concidadãos?
Durante a ditadura, o Itamaraty colaborou sim com o regime. Sabemos do colaboracionismo da maior parte dos franceses durante a ocupação nazista do país: por mais que existam “explicações”, ou justificativas, é sempre vergonhoso reconhecer.
Saber que as ditaduras militares do Cone Sul cooperaram entre si na repressão a seus próprios nacionais, em alguns casos levando-os à morte, é algo pungente de descobrir, quando alguém se torna, como no meu caso, membro da corporação, depois de ter enfrentado o exílio, ainda que voluntário (era aquilo ou expor-se a uma possível prisão).
O Itamaraty teve sua cota de colaboracionistas, alguns entusiastas da ditadura por obsessiva ideologia anticomunista, outros por oportunismo dos mais abjeto, outros simplesmente por falta de coragem. Tentei fazer a minha parte durante a ditadura, antes e depois de me tornar diplomata, o que um dia relatarei.
Paulo Roberto de Almeida
Cinquenta e cinco anos de História do Brasil em 300 cartas: a correspondência do economista Celso Furtado André Bernardo Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil 9 maio 2021 Entre fevereiro e abril de 1974, Celso Furtado recebeu duas cartas de Thiago de Mello. Na primeira delas, datada de 19 de fevereiro, o poeta amazonense, de seu exílio em Buenos Aires, queixava-se da falta de documentos para ir e vir, lamentava a situação política do Brasil e pedia algum dinheiro, "pouco que seja", para ajudar na compra de remédios. "A solidariedade já está ficando com gosto de favor", admitiu ele, que se recuperava de uma cirurgia no coração. Dois meses depois, o economista paraibano recebeu outra correspondência, de 1º de abril, em sua casa em Paris. O remetente confirmava o recebimento do dinheiro, agradecia a "ajuda solidária" e dizia que, com alegria, tinha estendido seu "gesto solícito" a alguém mais necessitado que ele. "Me deste esta alegria: a de servir, com humildade", escreveu Thiago de Mello que, durante o exílio, morou em países, como Alemanha, França e Portugal. "Alguém já disse, e eu concordo, que exílio não é para qualquer um. Recomeçar a vida num país distante, mudar de profissão ou aprender outra língua, é uma experiência muito dura", afirma a jornalista e tradutora Rosa Freire D'Aguiar, viúva de Celso e curadora de seu acervo. "Celso nunca foi de se expor. Pelo contrário. Era uma pessoa muito reservada. Mas, nas cartas, ele revela um pouco quem era". As cartas que Celso Furtado (1920-2004) recebeu de Thiago de Mello, hoje com 95 anos, são duas das mais de 300 que integram o recém-lançado Correspondência Intelectual 1949-2004 (Companhia das Letras), ainda em comemoração pelo centenário de nascimento de um dos mais respeitados economistas brasileiros. Acervo de 15 mil cartas Para selecionar as 300 cartas que fazem parte da antologia, a viúva de Celso Furtado precisou ler e reler o acervo epistolar do marido, composto por algo em torno de 15 mil correspondências. Dessas, 10 mil foram escritas durante o regime militar, entre 1964 e 1985. "No exílio, Celso não ficou propriamente amargo. O que é raro. Muitos ficaram. Ele ficou atormentado. Não tanto com a situação dele, mas com a situação do Brasil. Ele pensava diuturnamente no Brasil", afirma Rosa que, além de selecionar as cartas e escrever a apresentação e as notas do livro, ainda teve que "decifrar" as letras de alguns interlocutores. Ao todo, o livro inclui cartas de 80 interlocutores, 50 brasileiros e 30 estrangeiros, como o filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), o antropólogo mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997) e o político cubano Fidel Castro (1926-2016), e abrange um período de 55 anos, que tem início em 28 de julho de 1949, com uma carta do economista argentino Raúl Prebisch (1901-1986), e chega ao fim em 20 de abril de 2004, do economista mexicano Víctor Urquidi (1919-2004). "Felizmente, nenhum remetente ou herdeiro se recusou a autorizar a publicação das cartas. No entanto, suprimi certos trechos. Não cabia a mim publicar coisas pessoais", explica. A princípio, a ideia da jornalista e tradutora carioca era publicar apenas a correspondência do exílio. Mas, por sugestão de Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras, ampliou o escopo do livro e incluiu 5 mil cartas escritas antes e depois do golpe de 1964. "As cartas do exílio são muito pungentes, dolorosas de ler. Expõem os dramas vividos pelos exilados. Seus problemas eram incontáveis: de saúde, financeiros, familiares... As embaixadas, por sua vez, dificultavam ao máximo suas vidas: negavam vistos, não concediam passaportes, entre outras pequenas maldades", relata. Terra de gigantes De Paris, Rosa conta, por telefone, que a ideia de publicar um livro com a correspondência do marido surgiu em 2018, quando pesquisava as fotos, os documentos e outros registros inéditos para o livro Diários Intermitentes 1937-2002, lançado em 2019. Como professor da Universidade de Sorbonne, na França, Celso nunca teve secretária. Era ele que, organizado até o último fio de cabelo, guardava sua correspondência em pastas de papelão. Naquele tempo, contextualiza Rosa, escrevia-se carta para tudo. Até para avisar os passageiros de um voo de uma eventual mudança de horário. As cartas recebidas eram guardadas em pastas nas cores preta ou cinza e as enviadas, em pastas coloridas. Pelas estimativas de Rosa, Celso recebia uma média de 400 cartas por ano e escrevia algo em torno de 100. Exímio datilógrafo, ele batia as cartas em duas Olivettis Lettera 22 e 32 e, em seguida, guardava as cópias, feitas com papel-carbono, em seu acervo pessoal. Ao vasculhar o arquivo do marido, Rosa se deparou com uma quantidade incalculável de convites. Eram convites para debates, congressos e seminários, ao lado de pensadores como Jean Paul-Sartre (1905-1980), Theodor Adorno (1903-1969) e Herbert Marcuse (1898-1979). Um deles, de 1965, convidava Celso para participar de um debate nos EUA sobre América Latina ao lado de Dom Hélder Câmara (1909-1999) e Martin Luther King (1929-1968). Por falta de tempo, Celso recusava a maior parte deles: "Réponse negative", costumava escrever no rodapé da carta. Outra quantidade incalculável era composta por solicitações. Dia sim, outro também, Celso era solicitado a escrever artigos acadêmicos para jornais e revistas. Os prazos variavam de "três meses" a "o quanto antes". Se aceitasse todas as solicitações que recebia, não sobraria tempo para dar aulas ou corrigir provas. Outra categoria de carta, prossegue Rosa, era formada por pedidos inusitados. Havia desde um presidiário que, cumprindo pena em prisão da Bélgica, solicitou um exemplar de L'Amérique Latine porque estava cursando Ciências Econômicas, até conterrâneo que, na maior cara de pau, pediu a Celso três bolsas de estudo: uma para ele, outra para a namorada e uma terceira para um ex-aluno. "Muitas cartas, por incrível que pareça, pediam autógrafos. Numa delas, uma garotinha de uns dez, 11 anos, dizia que viu o Celso em um programa de TV e sua mãe o achou muito bonito. Como colecionava autógrafos, pediu a ele que escrevesse uma lembrancinha qualquer", diverte-se Rosa. Ecos da ditadura Curiosidades à parte, um dos capítulos do livro, batizado de Ecos da ditadura, é dedicado a algumas das muitas cartas do exílio. Numa delas, de 14 de outubro de 1964, o filósofo Álvaro Vieira Pinto (1901-1987), de seu exílio em Belgrado, na antiga Iugoslávia, pedia a Celso que o ajudasse a ser transferido para o Chile. "A carta do Álvaro Vieira Pinto é terrível. Você começa a imaginar a situação de um professor de filosofia confinado em um hotel de Belgrado. O que ele vai fazer da vida? Aprender servo-croata para dar aula em uma universidade local?", questiona Rosa. Noutra carta, de 4 de janeiro de 1966, o advogado paraibano Gláucio Veiga (1923-2010), de sua casa no Recife, relata algumas de suas prisões e a depredação de sua biblioteca. As obras completas de Marx, Lênin e Lukács, descreve, haviam sido atiradas ao chão e rasgadas. "A polícia pernambucana fez imensa pira com os livros e, ao jeito do nazismo, queimou-os publicamente", escreve. Mais adiante, o jornalista e crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978) criticava o boicote que estava sofrendo por parte de alguns jornais, que se recusavam a publicar seus artigos. "O silêncio, que me foi imposto, produz hemorragias internas intelectuais. Tanta coisa para engolir sem falar!", escreveu, de sua casa no Rio, em 3 de novembro de 1967. "O que mais me interessou no acervo do Celso foram as cartas de amigos intelectuais, algumas de até quatro páginas, contando o que estava acontecendo no Brasil pós-golpe de 1964", descreve Rosa. "Algumas cartas mais parecem ensaios sociológicos". Tempos sombrios Celso Monteiro Furtado partiu para o exílio em maio de 1964. Aos 43 anos, o paraibano de Pombal, município a 371 quilômetros de João Pessoa, ocupava o cargo de ministro de Planejamento do Presidente João Goulart. Seu nome era o 26º de uma lista encabeçada por Luís Carlos Prestes (1898-1990), João Goulart (1919-1976) e Leonel Brizola (1922-2004). Logo que saiu do país, foi convidado para lecionar em três das mais prestigiadas universidades dos EUA: Harvard, Columbia e Yale. Optou pela terceira, onde ficou de setembro de 1964 a junho de 1965. Em agosto de 1965, seguiu para a França. Lá, assumiu o cargo de professor da Universidade de Sorbonne. Muitos de seus ex-alunos na instituição se tornaram ministros, banqueiros e até presidentes, como Alan García (1949-2019), do Peru, e Abolhassan Bani-Sadr, hoje com 88 anos, do Irã. Seu prestígio pode ser mensurado pela quantidade de convites que recebia para ser patrono ou paraninfo em cerimônias de colação de grau: só em 1968, foram 15. Em 1979, em uma feijoada na casa do jornalista mineiro José Maria Rabelo, o editor do jornal Binômio (1952-1964), Celso conheceu Rosa Freire. Viveram juntos por 25 anos. Dezessete anos depois de sua morte, é indagada sobre o que o marido, se vivo estivesse, estaria achando do Brasil de 2021? Embora não seja médium, como costuma brincar, acredita que Celso estaria "atormentado". "É incrível como os problemas se acumulam no Brasil. Alguns não foram resolvidos e, para piorar, surgiram outros. Todo dia, aliás, aparece problema novo! Ele ficaria aflito com essa situação. Alguns problemas, como educação gratuita e de qualidade, vão ficando para trás. Até quando?", indaga. Das centenas de cartas que fazem parte de Correspondência Intelectual, uma das favoritas de Rosa é a que Celso trocou com o jornalista e escritor Antônio Callado (1917-1997). Lá pelas tantas, os dois começam a filosofar sobre a passagem dos anos. "A verdadeira velhice é feita de solidão", afirma Celso, de Paris, em 6 de junho de 1995. "É a ausência dos amigos que foram. Se nos apegamos tanto aos livros, é porque sabemos que deles não seremos privados em vida". Quatro dias depois, veio a resposta do autor de Quarup (1967), do Rio: "Quando o motor do barco começa a ratear, voltamos a usar velas para navegar. E, se levamos muito mais tempo para chegar a qualquer lugar, em compensação vemos muito melhor águas e peixes ao redor, e lua no céu, quando não faz frio e o reumatismo nos permite ficar no convés...". Tradutora de almas Terminadas as comemorações pelo aniversário de 100 anos de Celso Furtado, Rosa Freire volta as suas atenções para outro centenário: o de morte do escritor francês Marcel Proust (1871-1922). A convite do jornalista Mário Sérgio Conti, ela está traduzindo sua obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927). Conti ficou com o primeiro volume, No Caminho de Swann (1913); Rosa com o segundo, À Sombra das Moças em Flor (1919), e assim, sucessivamente, até o sétimo volume. "Quem traduz palavras é o Google Translator. Nós traduzimos almas e emoções", teoriza. Neste ano, Rosa Freire D'Aguiar completa três décadas de tradução. Nesse período, transpôs para o português mais de 140 títulos de pesos-pesados da literatura mundial, como Michel de Montaigne (1533-1592), Honoré de Balzac (1799-1850) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Traduzir Em Busca do Tempo Perdido, admite, é um trabalho hercúleo que exige muita releitura. Mas, em termos de vocabulário, está longe de ser o mais difícil. "Em matéria de gírias, trocadilhos e neologismos, o mais difícil foi Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Ele tem um estilo agressivo de escrever. Baba de ódio", explica a tradutora que, entre outros prêmios, faturou o Jabuti de 2009 pela tradução de A Elegância do Ouriço (2008), de Muriel Barbery. Mas, antes de ganhar a vida como tradutora, Rosa trabalhou como correspondente das revistas Manchete e IstoÉ em Paris. Ao longo da carreira, entrevistou nomes como o escritor belga Georges Simenon (1903-1989), o pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989) e o bailarino russo Rudolf Nureyev (1938-1993). "Às vezes, sinto saudades, sim. Volta e meio, vejo alguém interessante e penso: 'Hummm, se ainda trabalhasse em jornal, entrevistaria essa pessoa'. Adoraria entrevistar quem já morreu. Balzac, por exemplo. Tomar um café com ele. Parecia ser um sujeito boa-praça", diverte-se. Uma de suas entrevistas favoritas, revela, foi com o escritor gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975). Na ocasião, passou uma semana no Rio Grande do Sul, entre as cidades de Porto Alegre e Cruz Alta. Para entrevistar o autor de Olhai os Lírios do Campo (1938), O Tempo e o Vento (1949-1962) e Incidente em Antares (1971), entre outros clássicos da literatura brasileira, elaborou um questionário de duas laudas. No dia e horário combinados, chegou à casa do escritor. Ao ligar o gravador, ele protestou: "Não, gravador não!". E continuou: "Você pode vir aqui, quantas vezes quiser, depois do jantar. Mas, gravador, não!". "A primeira coisa em que pensei foi: 'Me ferrei!'. Para piorar a situação, não era um perfil, era (uma entrevista) pingue-pongue. Quando chegava no hotel, com o bloco de anotações em mãos, e o fotógrafo começava a falar, eu o interrompia: 'Fica quieto! Se não, vou esquecer tudo o que o Érico falou'", relata, aos risos.
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