Celso Amorim não é ministro, mas dá as cartas na polêmica política externa esquerdista de Lula
Carinne Souza
Gazeta do Povo, 3/01/2024
Ainda que Mauro Vieira seja o chanceler oficial deste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), especialistas avaliam que o verdadeiro mentor da política externa é seu assessor de assuntos especiais, Celso Amorim. Diplomata de carreira, Amorim foi o ministro de Relações Exteriores dos dois primeiros mandatos de Lula e é apontado como a figura que moldou a estratégia internacional do mandatário brasileiro, que flerta com ditadores e não se envergonha de fazer vistas grossas a grupos terroristas.
De perfil progressista, Amorim é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) e é um dos fundadores do Grupo de Puebla — organismo sucessor ao Foro de São Paulo e que reúne lideranças de esquerda da América Latina. Para especialistas e antigos membros do governo, é Amorim o responsável por dar o tem ideológico à política externa que Lula vem adotando.
“O grande conselheiro de política externa de Lula era Marco Aurélio Garcia [que foi seu assessor especial nos dois primeiros mandatos] e hoje esse posto é ocupado Celso Amorim”, avalia o doutor em Filosofia pela PUC-RS e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cezar Roedel.
No período em que Amorim esteve no comando da chancelaria brasileira, o Brasil sempre tentou se envolver em discussões internacionais. Parte do potencial que Amorim via no Brasil (e em si mesmo) para participar de discussões de “gente grande”, se originou na participação em uma negociação diplomática do fim da década de 1990, que ficou conhecida como Painel do Iraque. Ela visava impedir que o ditador Sadan Hussein adquirisse armas nucleares.
À época, Amorim era chefe da Missão Permanente do Brasil nas Nações Unidas, em Nova Iorque, cargo que ocupava desde 1995 após indicação de Fernando Henrique Cardoso, de quem ele também foi embaixador. Durante a presidência do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, em janeiro de 1999, Amorim conduziu a missão que inspecionou o Iraque e concluiu que o país havia desativado seu programa nuclear para desenvolvimento de uma bomba. Mesmo assim, em 2003, os Estados Unidos iniciaram uma guerra com o Iraque sob a falsa alegação de que Hussein possuía armas de destruição em massa.
Ainda em 2003, quando Lula foi eleito presidente do Brasil pela primeira vez, Amorim foi o escolhido para ocupar o cargo de ministro das Relações Exteriores. Juntos, os dois buscaram espaço no cenário internacional e tentaram intermediar grandes conflitos ao redor do globo. A primeira iniciativa foi aceitar a proposta dos Estados Unidos para liderar a partir de 2004 uma missão de paz da ONU para a estabilização do Haiti, que durou 13 anos.
Mas isso não saciou o apetite de Lula e Amorim. Mensagens diplomáticas de 2008 vazadas pelo Wikileaks mostravam que Amorim estava "farto do comércio internacional", atividade principal da diplomacia brasileira nas décadas anteriores. Segundo os cabos diplomáticos americanos, Amorim decidiu então envolver o Brasil nas negociações de paz no Oriente Médio, em uma tentativa de assumir um papel de liderança global.
Os americanos, segundo os documentos do Wikileaks, criticaram o fato de que já naquela época Amorim tomava partido de ditadores, como Bashar al-Assad, da Síria, e do aiatolá Ali Khamenei, do Irã, com o aparente objetivo de se contrapor a Washington. Em 2005, Amorim já se posicionava contra Israel e dificultava negociações de paz promovidas pelos americanos na região.
O auge dessas iniciativas foi a tentativa do Brasil de liderar, em parceria com a Turquia, um acordo para interromper o programa nuclear militar do Irã em 2010. Apesar das negociações terem avançado, Washington usou sua força geopolítica para afastar brasileiros e turcos da mesa de negociação e fechar seu próprio acordo com os iranianos.
Em 2014, já sob o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, do PT, o Brasil ganhou do governo israelense a alcunha de "anão diplomático". O Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) criticou ações militares de Israel destinadas a libertar soldados que haviam sido capturados por terroristas do Hamas. A crise foi depois amenizada, mas a alcunha "pegou".
Apesar de não responder pela chancelaria brasileira neste atual mandato de Lula, é Celso Amorim quem ainda atua nas questões mais polêmicas da política externa do governo. No primeiro ano de mandato da gestão Lula 3, ele foi enviado à Rússia para buscar informações sobre o conflito do país com a Ucrânia. Amorim também se envolveu pessoalmente nas discussões que buscavam uma solução para o conflito no Oriente Médio, entre Israel e Hamas.
Mais recentemente, o diplomata também esteve presente nas negociações entre Venezuela e Estados Unidos, a fim de colocar um fim nos embargos impostos por Washington a Caracas em troca de eleições justas e democráticas no país em 2024. Foi o brasileiro quem fez o lobby para o ditador Nicolas Maduro e negociou os termos do acordo assinado entre os dois países.
Roedel explica que a política externa de Lula e Amorim possuem grande influência do PT e por isso são caracterizadas por uma mentalidade “sul-globalista”. “O sul-globalista contesta a ordem vigente e até mesmo o direito internacional. Acredita que um novo mundo possa surgir sob a égide de potências autocráticas e contestadoras do Ocidente. Preferem o pragmatismo mercantil e ideológico com ditaduras do que o caminho complexo da defesa da democracia”, avalia.
O “match” ideológico de Lula e Amorim
Antes de ser chanceler de Lula, Celso Amorim também foi ministro de Relações Exteriores do ex-presidente Itamar Franco, entre 1993 e 1995. Ainda que sua carreira no Itamaraty tenha se iniciado alguns anos antes, em 1977, os destaques na carreira diplomática tiveram início durante os governos de Itamar e Fernando Henrique Cardoso. Sob FHC, Amorim foi embaixador do Brasil em Londres e representou o país na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na ONU, em Nova York.
Amorim sempre demonstrou maior apreço pela ideologia de esquerda e nesse período não ficava à vontade com políticas alinhadas aos Estados Unidos. Ele também não era maioria no Itamaraty durante a era FHC. Naquela época, a chancelaria brasileira era composta em sua maioria por diplomatas considerados “tucanos” — apelido dado aos filiados do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), partido fundado por FHC e que tinha um tucano como “mascote” da legenda. Os diplomatas se dividiam claramente na época entre petistas e tucanos. Partidários do grupo que estivesse mais em baixa eram mandados para representações diplomáticas em países mais pobres e isolados.
Em recente entrevista à Revista Piauí, ele afirmou que, apesar das diferenças ideológicas, nunca se sentiu prejudicado no Itamaraty. Amorim ainda disse que achava a pasta “acanhada” naquela época. As coisas mudaram nos anos seguintes, quando foi escolhido por Lula para assumir o Ministério das Relações Exteriores. Amorim então deu início ao que chama de política “ativa e altiva”. A tática tinha o objetivo de lançar o Brasil como um “dos grandes” e que pudesse estar envolvido em discussões que normalmente eram guiadas pela Casa Branca e países europeus.
Antes disso, o interesse do governo brasileiro ia além de ser uma liderança regional, um porta-voz para os países sul-americanos. Amorim e Lula diziam querer alçar voos maiores com o país. Através de organismos como a ONU, a Organização Mundial do Comércio (OMC), os Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a Cúpula América do Sul - Países Árabes (Aspa) e o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (Ibas) apostaram em um alegado "multilateralismo" que ia além das Américas.
O “match”, a ligação, entre Lula e Amorim também pode ser entendida a partir desse viés. Lula, um ex-líder sindical, conhecia os países e as organizações de esquerda da América Latina e Europa e queria uma integração desses países. Amorim queria aumentar a influência do Brasil no mundo. Aumentando os laços através dos diversos blocos em que o Brasil estava inserido, Amorim tentou cavar o espaço desejado para estar presente em grandes discussões. Assim, tentou vender a imagem de um país que teria influência não só na América Latina, mas também em relação a outros países.
Para Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e diplomata de carreira, a política externa de Amorim e Lula tem pontos positivos no que diz respeito ao desejo de colocar o Brasil “entre os grandes”, mas erra ao se pautar pela ideologia. “O que eu acho que é negativo é essa obediência à visão de mundo do PT. Essa ideia de união entre Brasil, Rússia e China, contra o Ocidente e os Estados Unidos”, disse à Gazeta do Povo.
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