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sábado, 9 de março de 2024

Irã, por Carmen Lícia Palazzo - uma aula de história

Texto meu sobre o Irã, que já foi publicado e também foi parte de apresentação em um seminário. (Foto minha: arte do Irã Sassânida, século IV. Na exposição sobre a Rota da Seda, Sackler Gallery, Smithsonian, Washington. DC.) 

IRÃ

Carmen Licia Palazzo

9 de março de 2024

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Carmen Lícia Palazzo

 IRÃ

Carmen Lícia Palazzo

Entender o Irã e as imensas possibilidades que este país tem de retomar o caminho da modernização sem o abandono de suas raízes culturais passa, necessariamente, por uma análise do longo prazo sobre diversos temas que antecedem e transcendem as atuais discussões em torno do fundamentalismo religioso. O objetivo desse texto é apenas o de apontar alguns dos aspectos relacionados com as especificidades da cultura iraniana, importantes para o acompanhamento das mudanças e retrocessos que ocorrem naquela sociedade, as mudanças tendo sido consideráveis especialmente durante a presidência de Mohamed Khatami (presidente de 1997 a 2005), um período que merece estudo detalhado dos especialistas.

No entanto, sempre é bom lembrar que a História não segue sempre um caminho ascendente, há permanências e mudanças, há retrocessos em qualidade de vida, mas há também novas perspectivas e melhorias importantes de qualidade de vida, há paz e guerras, nem sempre nas mesmas áreas geográficas, nem sempre nas mesmas sociedades. Conhecer a História só é possível levando em conta a longa duração.

Fazer referência à revolução que derrubou a monarquia em 1979, contextualizado-a apenas no quadro estrito do expansionismo muçulmano, pouco esclarece sobre uma sociedade que teve seu raio de ação estendido, durante muitos séculos, à Ásia Central e a diversas regiões do subcontinente indiano. Tanto a ocidentalização forçada dos xás Reza e Mohamed Reza Pahlevi quanto o posterior estabelecimento da república teocrática dos aiatolás sufocaram apenas parcialmente a diversidade de uma cultura que agora, mais uma vez, dá mostras de estar emergindo e que poderá vir a modelar um Irã renovado ainda que só daqui a algum tempo. Olhar só para o presente limita qualquer análise mais profunda.

Sem retroceder a reflexão a um passado tão distante quanto o das dinastias dos aquemênidas, dos selêucidas e dos partos, cabe, porém, uma referência ao império sassânida, já que foi no seu âmbito que o zoroastrismo, religião formadora do imaginário iraniano e influência fundamental no xiismo, atingiu o status de fé oficial e cimento da sociedade.

Em outros aspectos, também, as permanências da cultura sassânida permearam o que viria a ser o mundo islâmico. A literatura persa tinha já uma antiga tradição, tanto no gênero épico quanto na poesia e nos contos populares. E, com a grande valorizacão dos escribas durante os reinos sassânidas, o respeito à palavra escrita sedimentou-se e passou a ser um dos grandes legados da cultura persa (1). Por outro lado, a burocracia letrada que podia ser encontrada em grande parte do território iraniano permitiu aos árabes estabelecer uma eficiente administração à medida que se expandia a conquista.

Com o surgimento do Islã, modificaram-se as relações de força em todo o Oriente Médio e, em seguida, também na Ásia Central. Maomé e seus sucessores beneficiaram-se das rivalidades perso-bizantinas que enfraqueceram consideravelmente os dois grandes impérios, abrindo caminho para a avassaladora conquista árabe. Num primeiro momento, os Omíadas, que governaram após a morte do Profeta, discriminaram os não-árabes, mesmo os convertidos, no acesso a funções importantes da administração, mas a partir de 750 a nova dinastia Abássida valeu-se do descontentamento dos persas, conquistados e marginalizados, para chegar ao poder. A partir de 754, com o início do reinado de Al-Mansur, cresceu muito a influência persa na administração abássida (2), justamente com o aproveitamento dos escribas e funcionários de alto nível que haviam sido parte da estrutura sassânida. Foi um tempo de grande avanço cultural, da chamada Idade de Ouro do Islã, do seu encontro com outras culturas, com intelectuais da Índia, entre muitos outros.

O que, no início, havia se caracterizado como um impressionante movimento de tribos árabes tomando o poder no Oriente Médio, passa então a se constituir numa conquista que agrega outras culturas. Os resultados, no decorrer dos séculos, não serão homogêneos e novos invasores ameaçam os governantes estabelecidos, criando um clima de instabilidade que vai marcar profundamente toda a região. O Irã, porém, destaca-se nos diversos aspectos de continuidade que podem ser observados em muitos séculos de História. A conquista árabe e a islamização não destruíram as características da cultura persa – ao contrário, foi esta última que influenciou em profundidade a organização administrativa, a literatura e a arte dos conquistadores.

Quando o império sassânida caiu, em 637, não ocorreu, associada às conversões ao Islã, uma arabização completa do Irã, que até hoje conserva o idioma persa, marco significativo de continuidade cultural. A religião muçulmana foi o elo que ligou os povos do Oriente Médio no decorrer de uma conturbada história de invasões, de ascenções e quedas de dinastias e de conflitos tribais que conduziram a períodos de desorganização administrativa. A comunidade de uma mesma crença assumiu, pois, a função de estreitar os laços entre os fiéis, reforçando solidariedades. Mas a nova fé se desenvolveu em meio a referências anteriores, entre elas o zoroastrismo, o judaísmo e o cristianismo.

No caso do Irã, o zoroastrismo deixou marcas profundas e, embora seu surgimento remonte talvez ao século VII ou VI a.C, foi com a dinastia sassânida que seu poder se associou ao dos monarcas, tornando-se uma força que permeou toda a sociedade iraniana. Em alguns aspectos, o zoroastrismo antecipa o judaísmo, o cristianismo e o islã, pregando a existência de um paraíso que receberá os bons e um inferno para aqueles que se colocarem ao lado do mal. No entanto, para a doutrina de Zoroastro, o Criador (Ahura Mazda) e o Destruidor (Ahriman) detêm igual poder, são forças equiparadas num permanente combate (3) e, neste aspecto, talvez seja possível observar certa semelhança na avassaladora preocupação com o mal na vertente iraniana do xiismo.

Língua, cultura e religião eram as bases sobre as quais se afirmava o poder islâmico. No entanto, diferente do Egito onde foi desaparecendo a língua copta, associada à minoria cristã, o Irã não apenas manteve o persa como o viu estender-se pela Ásia Central e através do subcontinente indiano, alcançando a estatura de idioma das chancelarias. Juan R. I. Cole analisa o contexto no qual o imperador da Índia, Akbar, fez do persa o idioma oficial de sua corte, procurando justamente atrair funcionários iranianos reconhecidamente qualificados. Akbar, que reinou entre 1556 e 1605, ordenou, inclusive, que o persa fosse ensinado nas escolas religiosas (4).

O caminho de expansão acentuada da influência iraniana em uma larga área geográfica certamente favoreceu a permanência de uma cultura que continuava se afirmando como original e não simples tributária da expansão árabe, embora por ela também influenciada. O encontro arabo-persa enriqueceu ambas as partes e o Irã, mesmo convertendo-se à religião dos conquistadores, não abdicou de suas raízes. A excelência na produção de manuscritos, reconhecidos internacionalmente pela qualidade da caligrafia e das iluminuras, fez com que a arte persa fosse admirada muito além de suas fronteiras. Na literatura – e em especial na poesia – o Irã deu valiosas contribuições ao mundo islâmico. Escritos como os de Omar Khayyam (1048-1131), Rumi (1207-1273), Hafez (1320?-1389) e Jami (1414-1492) atravessaram os séculos e ainda hoje iluminam nossa compreensão do Oriente.

No século XX, a dinastia Pahlevi, que se auto-atribuiu origens históricas discutíveis, tinha consciência de que era necessário afirmar-se levando em conta uma cultura milenar e o orgulho persa de suas origens. No entanto, ao buscar a modernização forçada e imediata, o primeiro xá, Reza, quis também apelar para o nacionalismo, evocando o mito ariano que pretensamente considerava os indo-europeus superiores a todos os outros povos, demarcando assim o Irã dos demais países do Oriente Médio (5).

Tanto Reza quanto seu filho e sucessor, Mohamed Reza, buscaram justificativas na história pré-islâmica para seus governos autoritários, afrontando, desta maneira não apenas o clero xiita, mas todo um imaginário que desde o século VII vinha sendo construído da mescla de culturas árabe e persa. Se o regime do último xá caiu, sob a Revolução Islâmica, em 1979, devido ao descontentamento geral com os abusos de poder, com a corrupção e com a violência da repressão e da tortura, não seria menos verdade afirmar que o desrespeito a treze séculos de história após a conquista árabe também contribuíram para seu final.

Atualmente o fundamentalismo religioso dos aiatolás não consegue ocultar a realidade de uma nação cuja especificidade cultural inclui, mas vai muito além das questões de fé. O dinamismo da sociedade iraniana e a valorização da cultura têm, em diversos momentos, rompido a camada de repressão que tenta abafar suas melhores realizações, como o cinema, a literatura e as artes plásticas. O movimento feminista, talvez poucos saibam, no Ocidente, é ativo no Irã e inclui em suas fileiras jovens e idosas trabalhando lado a lado.

Sem dúvida a longa tradição de interesse pela escrita e o orgulho pela especificidade persa são alguns indicadores das possibilidades de abertura, resgatando raízes históricas que, transformadas, podem conduzir o país a um novo patamar de desenvolvimento. Mohamed Khatami, eleito presidente em 1997, falou, durante todo o seu governo, insistentemente, em tolerância e diversidade. Em se tratando de um ex-ministro da Cultura, suas palavras podem ser interpretadas como um estímulo à reflexão e não como simples “slogans” políticos.

É importante destacar também que, apesar do discurso muito fundamentalista, por exemplo, na época em que era presidente Ahmadinejad (presidência de 2005 a 2013), sua eleição se deu muito mais em virtude do descontentamento da população com a crise econômica do que por motivos religiosos. Por outro lado, o que Ahmadinejad pretendia, na época, com sua retórica inflamada, era assumir uma posição de liderança no Oriente Médio, ainda mais quando já havia deixado de existir a ameaça daquele que havia sido seu grande rival, Saddam Hussein.

Atualmente, tem se mantido e até reforçado a busca da liderança, mas o grande rival é a Arábia Saudita. E os sauditas contam com o apoio dos EUA, o que mostra que nada é simples no jogo de alianças da região. E é interessante observar justamente como foi esse caminho desde a derrubada de Saddam (um evidente erro do governo Bush até para a segurança regional) e também desde o tempo de Ahmadinejad no Irã até os dias atuais, nos quais as alianças se voltam para isolar o Irã, ainda que para tal seja necessário fechar os olhos para o que faz Bin Salman. É nesse terreno minado de muitas disputas que os grupos terroristas prosperam.

As disputas que envolvem xiitas e sunitas, sempre insisto, não são, quando se trata de política regional, de doutrina e de práticas religiosas, mas sim de poder. Um dado importante para que se possa refletir sobre a modernidade no Irã é o fato de que as mulheres, apesar das imensas limitações impostas pelos aiatolás, são atualmente maioria nas escolas e mesmo nas universidades e a taxa de fecundidade feminina caiu de seis filhos para dois. O país, portanto, está apto a alcançar níveis maiores de desenvolvimento, inclusive porque investe na pesquisa científica.

Apesar do discurso extremista e da inegável repressão interna, a sociedade iraniana é dinâmica, bem estruturada e está preparada para futuras mudanças. Resta saber quando a sociedade civil, ou ao menos parte dela, terá força suficiente para enfrentar uma teocracia intolerante, abrindo, a médio prazo, o caminho para as necessárias transformações. Que não parecem impossíveis, já que a nova geração tem avançado muito nos estudos e nos contatos externos.

NOTAS:

1 Para uma síntese de todo o período sassânida, ver FRYE, Richard. The Golden Age of Persia. London: Phoenix Press, 2000, p.7-26

2 LEWIS, Bernard. The Middle East: A Brief History of the Last 2000 Years. New York: Touchstone, 1997, p.75-78.

3Sobre o Zoroastrismo, ver FOLTZ, Richard. Religions of the Silk Route. New York: St. Martin’s Griffin, 1999, p. 27-30.

4 COLE, Juan R.I. “Iranian Culture and South Asia, 1500-1900” in KEDDIE, Nikki R. e MATHEE, Rudi. Iran and the Surrounding World, Seattle: Washington University Press,, 2002, p.16-17.

5 Sobre Reza e Mohamed Reza Pahlevi, ver MACKEY, Sandra, The Iranians: Persia, Islam and the Soul of a Nation. New York: Plume Book, 1998 ,p.157-268.

 

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