Segunda parte de um grande artigo sobre as sanções econômicas, com referência à guerra da Ucrânia e à posição do Brasil nesse conflito.
O drama da Ucrânia parte 2 – A arma econômica como arma de guerra
Paulo Roberto de Almeida
A arma econômica como arma de guerra: as sanções nas frentes de combate
A Alemanha esteve no centro de sangrentos conflitos no coração da Europa, desde a guerra franco-prussiana de 1870 até a “segunda Guerra de Trinta Anos”, entre 1914 e 1945, que retirou a Europa do centro do mundo – que ela comandou praticamente desde a era dos descobrimentos, e mais exatamente desde a primeira revolução industrial – e que criou uma nova geopolítica mundial, uma bipolaridade entre os Estados Unidos e a Rússia, antecipada no século XIX por ninguém menos do que Tocqueville (Almeida, 2009). A Rússia, bem antes dos EUA, já intervinha nos assuntos asiáticos, nas franjas do Império Otomano ao sul, nos Balcãs e também no coração da Europa, do Elba até o Danúbio e nas partes geladas do Norte. A potência americana só aparece, de fato, bem depois da guerra civil, com a industrialização maciça ao norte e a rápida mecanização da agricultura nas planícies centrais. Seu début nos assuntos mundiais se dá na guerra hispano-americana de 1898 – quando Puerto Rico, Cuba e Filipinas passam ao seu controle –, quando uma nova praça financeira, Nova York, passa a oferecer capitais que anteriormente partiam majoritariamente da City londrina, e, mais concretamente, em 1917, quando os boys chegaram aos campos de batalha da França, e foram determinantes, com os ingleses e os próprios franceses, obviamente, na derrota do Império alemão, que se estiolou na frente ocidental, sem nunca ter perdido na frente do leste.
Na verdade, o Reich pode ter sido levado ao armistício, em novembro de 1918, não tanto pela sorte dos soldados nas trincheiras da França, mas bem mais pelo peso das sanções econômicas que foram decisivas no seu enfraquecimento, dada a falta de combustíveis e insumos em geral, e sobretudo pela fome do povo alemão, isolado do resto do mundo pelo cerco das canhoneiras inglesas. O presidente Woodrow Wilson, que fez campanha em 1916 para sua reeleição, prometendo aos americanos que manteria os Estados Unidos fora da guerra europeia, teve de entrar no conflito devido ao afundamento de barcos comerciais e de passageiros americanos pela campanha submarina do Império Alemão, e a partir daí passou a propor formas de se estabelecer um armistício ou a cessação de hostilidades. Uma das “armas” de que dispunha para essa finalidade era a “arma econômica” das sanções, por ele descritas, no documento que apoiou seu projeto de paz mediante uma organização dedicada à sua defesa, no contexto das negociações de paz de Paris, em 1919. Um historiador descreveu a mobilização dessa arma da seguinte forma:
That instrument was sanctions, described in 1919 by U.S. president Woodrow Wilson as ‘something more tremendous than war’: the threat was ‘an absolute isolation… that brings a nation to its senses just as suffocation removes from a individual all inclinations to fight… Apply this economic, peaceful, silent, deadly remedy and there will be no need for force. It is a terrible remedy. It does not cost a life outside the nation boycotted, but it brings a pressure upon that nation which, in my judgment, no modern nation could resist’. (Mulder, 2022; “Introduction: Something More Tremendous Than War”; Kindle edition)[1]
De fato, como informa Mulder, o bloqueio dos Impérios centrais e do Império Otomano na Grande Guerra, pelas forças navais da Grã-Bretanha e da França, levou centenas de milhares de pessoas à morte por fome e enfermidades. Como explica ainda o mesmo historiador, “As sanções mudaram a fronteira entre a guerra e a paz, produziram novos meios de mapear e manipular o tecido da economia mundial, mudaram a concepção do liberalismo sobre a coerção e alteraram o itinerário do Direito Internacional” (idem). Na verdade, o uso de sanções econômicas e mesmo o bloqueio naval completo não era novo na história dos conflitos internacionais. Um dos primeiros exemplos históricos de sanções econômicas está relatado na história da guerra do Peloponeso, por Tucídides: ele se refere ao banimento de mercadores da cidade-porto de Megara de comerciar com Atenas, em 432 AC, o que foi um dos vários exemplos de iniciativas infelizes da cidade-Estado democrática que lhe acarretou reveses diplomáticos que contribuíram para a vitória final de Esparta naquela longa guerra.
Na era moderna e contemporânea, entre outras oportunidades, sanções econômicas foram aplicadas, por exemplo, nas guerras napoleônicas. Depois da paz de Amiens, em 1802, uma pequena trégua nas lutas entre Napoleão e as monarquias europeias, a luta retomou em diversas frentes, inclusive na esfera naval: para derrotar a Grã-Bretanha, Napoleão tinha de vencer as forças coligadas anglo-espanholas, o que resultou na grande vitória do Almirante Nelson, em Trafalgar, nas costas espanholas do Mediterrâneo, em 1805. Mas, Napoleão conseguiu infligir pesadas derrotas contra a Áustria e a Prússia no continente, em 1806. Com essas vitórias, Napoleão decretou o bloqueio continental contra a Grã-Bretanha, invadindo, em 1807, os dois reinos ibéricos que ainda não tinham se submetido às suas pretensões, Espanha e Portugal. A Espanha deu início a uma guerra de guerrilhas contra o ocupante, mas a corte dos Braganças preferiu desertar o país e fugiu para o Brasil, sob a proteção britânica. O poderio naval britânico, no entanto, inverteu o sentido do bloqueio, e foi a França que se viu privada dos mares devido à vigilância da Royal Navy.
As sanções previstas na convenção da Liga da Nações, nos artigos 16 e 17, em caso de ameaça de guerra ou de guerra efetiva, compreendiam a cessação de todas as relações comerciais ou financeiras, assim como a proibição de todo e qualquer intercâmbio entre os nacionais dos Estados membros e os nacionais da parte agressora, assim como com nacionais de quaisquer outras partes, mesmo não membros da Liga. Elas pareciam efetivamente fortes o suficiente para impedir ou limitar o recurso à guerra entre os Estados membros, assim como com outros Estados não membros. A despeito da convenção da Liga, Estados membros e não membros recorreram à guerra nos anos 1930, começando pela invasão da Manchúria pelo Império do Japão em 1931, pelo ataque à Abissínia (Etiópia) pela Itália fascista em 1936), pela intervenção armada na Guerra Civil Espanhola em 1936-39 pela Alemanha hitlerista e pela mesma Itália fascista, a despeito da neutralidade da maior parte dos demais Estados, assim como por toda a violência armada e ameaças de uso da força pela Alemanha hitlerista na anexação da Áustria e de parte do território da Tchecoslováquia, em 1938-39 (esta última seguida da anexação do resto do território em 1930-40), assim como, a invasão e esquartejamento da Polônia pela Alemanha nazista e pela União Soviética em 1939, sem esquecer a guerra da URSS contra a Finlândia em 1940 e a anexação dos Estados livres da Estônia, Lituânia e Letônia igualmente em 1940. A Liga ainda recomendou e ameaçou sanções contra os Estados agressores, mas elas foram totalmente inoperantes ou não implementadas pela maior parte dos Estados membros.
Sanções econômicas, no mundo contemporâneo da ONU, previstas nos artigos 41 e 42 da Carta, foram amplamente utilizadas contra certos Estados membros, muitas vezes de maneira unilateral – e, portanto, em princípio de forma ilegal –, como por exemplo dos EUA contra Cuba, contra o Irã e outros países menores, mas também de forma legal, ou pelo menos sancionadas por alguma resolução do CSNU, como contra a África do Sul dos tempos do Apartheid, ou contra o Iraque de Saddam Hussein, antes e depois de sua invasão do Kuwait. Mas, o que diz a Carta das Nações Unidos sobre as sanções? Os dispositivos principais estão contidos nesses dois artigos, mas sua aplicação depende, obviamente da aprovação do seu Conselho de Segurança, algo que é extremamente difícil de ser obtido quando os interesses nacionais de um dos membros permanentes do CSNU estão em jogo. A razão é muito simples, uma vez que as sanções econômicas são ofensivas por sua própria natureza, impondo restrições aos intercâmbios com a parte agressora, uma espécie de exercício de força, ainda que feita à distância. Eis o teor dos dois artigos da Carta tratando diretamente da questão:
Artigo 41
O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas as suas decisões e poderá instar os membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de qualquer espécie, e o rompimento de relações diplomáticas.
Artigo 42
No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam inadequadas ou demonstrarem que são inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessário para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas. (Legislação de Direito Internacional, 2008, p. 1097)
Em outros termos, de forma similar, mas não semelhante, à Liga das Nações, a Carta da ONU prevê medidas muito constrangedoras do ponto de vista econômico, incluindo a interrupção das relações diplomáticas, a cessação dos intercâmbios econômicos e até o bloqueio do país agressor, por diversos meios, por forças das Nações Unidas, mas tudo isso depende de uma decisão do CSNU, o que é virtualmente impossível caso o direito de veto atribuído a cada um dos seus cinco membros permanentes seja exercido. Mas, registre-se também, que o artigo 24 da Carta afirma que os membros da ONU “conferem ao Conselho de Segurança a principal (main) responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais” (idem, p. 1094), ou seja, essa responsabilidade não pode ser exclusiva do CSNU, pois que, como dito no inciso 5 do artigo 2º.:
Todos os membros darão às Nações toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qualquer Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo. (idem, p. 1091)
A questão do cumprimento dos princípios e objetivos da Carta da ONU apresenta um paradoxo impossível de ser solucionado, sem uma reforma da própria Carta, o que também se afigura uma quadratura do círculo, como implícito ao seu artigo 6º:
O Membro das Nações Unidas que houver violado persistentemente os Princípios contidos na presente Carta [o que inclui, objetivamente, todas as ações perpetradas pela Rússia em sua guerra de agressão à Ucrânia], poderá ser expulso da Organização pela Assembleia Geral [mas, e este é um enorme, gigantesco, mas, apenas] mediante recomendação do Conselho de Segurança. (p. 1091)
A menção, feita acima, a “forças das Nações Unidas”, refere-se à existência, prevista no artigo 47, de uma Comissão de Estado Maior,
destinada a orientar e assistir o Conselho de Segurança, em todas as questões relativas às exigências militares do mesmo Conselho, para a manutenção da paz e da segurança internacionais, utilização e comando das forças colocadas à sua disposição... [e que]
...será responsável... pela direção estratégica de todas as forças armadas postas à disposição do dito Conselho. (op. cit., p. 1098)
Esse mesmo inciso (3) do artigo 47, termina pateticamente por afirmar que “As questões relativas ao comando dessas forças serão resolvidas ulteriormente.” Dispensável dizer que elas nunca foram resolvidas, pois que cada força de intervenção da ONU (de imposição ou de manutenção da paz) apresentou um histórico peculiar quanto ao comando: supõe-se, por exemplo, que as forças americanas presentes na Coreia, em 1950-53, ou na Arábia Saudita e no Kuwait, em 1991, tenham respondido mais aos generais do Pentágono, e ao próprio presidente americano, do que a qualquer Comissão militar do CSNU.
Antes de qualquer ação de imposição da paz em algum conflito levado a debate na ONU, é presumível que os membros das Nações Unidos, assim como seu Conselho de Segurança, tenham aplicado as sanções previstas nos artigos já referidos. Um debate talvez especioso – sobretudo no caso do Brasil – instalou-se a respeito de serem essas sanções legítimas ou ilegítimas, no caso sancionadas multilateralmente (e só o são pelo CSNU, que dita a Lei, mas nem sempre o Direito), ou aplicadas unilateralmente, o que, alegadamente, as tornariam não passíveis de cumprimento pelos países membros. Cabe, todavia, ressaltar que as sanções unilaterais impostas por alguns membros da ONU contra a Rússia, desde o início de sua guerra de agressão contra a Ucrânia, ainda que não autorizadas expressamente pelo CSNU, situam-se, inteiramente, dentro do espírito e da letra dos artigos da Liga das Nações e dos da Carta da ONU que tratam da possibilidade de sua aplicação contra violadores de suas respectivas convenções constitutivas. Diversas sanções foram aplicadas, por exemplo, contra a África do Sul do Apartheid por vários membros da ONU, unilateralmente, portanto, antes que várias delas se convertessem em multilaterais, quando a pressão da opinião pública internacional – vale dizer, dos países ocidentais – obrigou o Conselho a finalmente tomar uma posição, convertendo-as em obrigatórias para todos (ainda que muitos elidissem o espírito e a letra das determinações do CSNU).
[1] Tradução livre: Esse instrumento eram as sanções, descritas em 1919 pelo presidente americano Woodrow Wilson como ‘uma coisa mais tremenda do que a guerra’: a ameaça era de um ‘absoluto isolamento… que leva a nação aos seus sentidos, assim como a sufocação remove de um indivíduo qualquer disposição a lutar… Aplique esse remédio econômico, pacífico, silencioso, mortal, e não haverá mais necessidade do uso da força. É um remédio terrível. Não custa nenhuma vida fora da nação boicotada, mas ele cria uma pressão sobre aquela nação, a que, em meu entendimento, nenhuma nação moderna pode resistir’.
* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.
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