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terça-feira, 12 de março de 2024

O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra; 3a e última parte - Paulo Roberto de Almeida (portal da revista Interesse National)

 Trabalho mais recente publicado: 

1552. O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra”, artigo publicado em três partes, portal da revista Interesse Nacional, 3ª e última parte, 12/03/2024 (link: https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-parte-3-a-agressao-da-russia-e-a-postura-do-brasil/). Relação de Originais n. 4455.

Primeira e segunda partes podem ser lidas aqui: 

1549. “O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra”, artigo publicado em três partes, portal da revista Interesse Nacional, 1ª parte, 27/02/2024 (link: https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-e-o-uso-de-sancoes-economicas-como-arma-de-guerra-parte-1/); transcrito parcialmente no blog Diplomatizzando (27/02/2024; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/02/o-drama-da-ucrania-e-o-uso-de-sancoes.html). Relação de Originais n. 4455.


1550. O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra”, artigo publicado em três partes, portal da revista Interesse Nacional, 2ª parte, 5/03/2024 (link: https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-parte-2-a-arma-economica-como-arma-de-guerra/); republicado no blog Diplomatizzando (5/03/2024; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/03/o-drama-da-ucrania-e-arma-economica-das.html). Relação de Originais n. 4455.

 

Terceira e última parte: 

A agressão da Rússia contra a Ucrânia e a postura do Brasil a esse respeito

A primeira acusação feita aos altos responsáveis militares nazistas em Nuremberg, em 1946, foi a de crime contra a paz, o que correspondia exatamente ao crime inicial perpetrado pelos chefes de guerra nazistas ao decidir invadir a Polônia, em setembro de 1939, dando início ao mais horrendo conflito militar da história; eles também perpetraram crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Não foi a primeira violação à Carta da Liga das Nações, pois que nem as invasões à Manchúria por tropas japonesas em 1931, assim como ao resto da China em 1937, nem a agressão italiana à Etiópia em 1935, ou outras agressões cometidas no intervalo até a invasão da Polônia, foram objeto das sanções previstas no documento. O Conselho da Liga até tentou aprovar sanções moderadas à Itália fascista, mas elas tinham de ser implementadas pelos próprios países, o que não teve seguimento.

No âmbito dos mecanismos punitivos da ONU, as únicas sanções econômicas aplicadas antes de 1990 se limitaram a dois casos: a Rodésia e a África do Sul, ambas por “denegação de direitos humanos à maioria negra e abuso doméstico do poder dentro de estados, e não para opor-se às ameaças tradicionais ou atos de agressão interestados, como previsto pelos fundadores das NU” (Stremlau, 1996, p. 1). Em contrapartida, a partir dos anos 1990, quase duas dúzias de regimes de sanções entraram em vigor, com destaque especial para os longos 12 anos de sanções particularmente reforçadas no caso do Iraque de Saddam Hussein, depois da invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas naquele mesmo ano, expulsas mediante resolução do CSNU, por tropas americanas, no ano seguinte; neste caso, o regime foi especialmente duro, compreendendo zonas de interdição de voos e um programa humanitário específico, prevendo a troca de petróleo por alimentos. 

Como indicou um diplomata brasileiro envolvido numa determinada etapa com o regime de sanções da ONU, a invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990, e a importante operação liderada pelos Estados Unidos para desalojá-lo, já no ano seguinte, promoveram importantes mudanças no próprio comportamento dos membros permanentes do Conselho de Segurança: 

As sanções impostas ao Iraque a partir de 1990 estabelecem marco no contexto da evolução dos regimes de sanções, não apenas por terem sido o primeiro caso de aplicação do instrumento após o fim da bipolaridade, mas sobretudo em função da sua abrangência e das severas consequências que geraram para a população do país-alvo. (Baumbach, 2014, p. 51).[1]

 

O mesmo diplomata, autor da tese do Curso de Altos Estudos acima referida, destaca o importante papel do ex-chanceler na coordenação de trabalhos, já em 1999, em um dos painéis sobre as sanções ao Iraque, no sentido de esclarecer diferentes aspectos do regime de sanções, cujo relatório orientou a formulação de recomendações ao Conselho sobre medidas para aperfeiçoar o regime e minimizar seus aspectos mais deletérios:

O Relatório Amorim foi o ponto de partida de iniciativas de reflexão sobre o tema das sanções que se multiplicaram no final dos anos 90 e tiveram sensível influência no desenvolvimento dos princípios que passaram a guiar o Conselho de Segurança na aplicação das medidas. (Baumbach, 2014, p. 99)

 

À semelhança do ataque hitlerista à Polônia em 1939, a invasão à Crimeia por forças russas disfarçadas, assim como às províncias orientais da Ucrânia, em 2014, também foram crimes contra a paz. Essa primeira agressão militar da Rússia de Putin à Ucrânia não foi devidamente sancionada pelo Direito Internacional, ainda que ela tenha sido objeto de sanções unilaterais dos Estados Unidos e de outros membros da ONU, em especial a União Europeia, na falta de resolução a esse propósito que deveria ter sido adotada pelo CSNU. Essa possibilidade estava praticamente excluída, em virtude do já mencionado direito de veto exercido por qualquer um dos cinco membros permanentes desse órgão, no caso a própria Rússia, como sucessora da União Soviética ao início dos anos 1990. Registre-se que a soberania da Ucrânia sobre o conjunto do seu antigo território como república federada à URSS tinha sido devidamente reconhecida em documento plurilateral firmado em Budapeste em 1994, embora não implementado na prática por diferentes razões políticas. 

Mas nem o Brasil, tradicional respeitador do Direito Internacional e da Carta da ONU, foi capaz de sancionar a Rússia por sua agressão cometida em 2014 contra a Ucrânia, o que representou a quebra de uma tradição até então irrepreensível dos valores e princípios de sua diplomacia, inatacáveis desde mais de um século, desde que Rui Barbosa proclamou, em 1907, a igualdade soberana dos Estados, cláusula que constitui, desde então, a espinha dorsal do multilateralismo contemporâneo. Junto com a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, a igualdade soberana das nações integra o conjunto de cláusulas fundamentais de relações internacionais que integra a Constituição brasileira.[2]

Desde 1945, a despeito de altos e baixos, a diplomacia brasileira exibiu, manteve e desenvolveu uma notável adesão às bases conceituais e práticas de um dos princípios centrais do multilateralismo contemporâneo, que é a igualdade soberana dos Estados. Esse princípio foi expresso de maneira clara, em 1907, por Rui Barbosa, chefe da delegação brasileira à segunda conferência internacional da paz, realizada na Haia: ele defendeu praticamente sozinho esse eixo fundamental da ordem internacional, contra a vontade das grandes potências, que pretendiam criar, ou preservar, um sistema oligárquico de solução de controvérsias, no qual elas manteriam juízes permanentes, ao passo que as potências menores teriam apenas direito a cadeiras temporárias e rotativas. Esse princípio foi desenvolvido e defendido por todos os diplomatas brasileiros ao longo de décadas, notadamente por Oswaldo Aranha, no curso da Segunda Guerra Mundial, e, entre outras ocasiões, por San Tiago Dantas, na conferência interamericana de 1962 que decidiu, contra o voto do Brasil, pela suspensão de Cuba do sistema interamericano.

O abandono pelo Brasil de sua adesão inviolável aos grandes princípios do Direito Internacional foi extremamente raro, tão raro que as poucas ocasiões podem ser identificadas precisamente. Ocorreu, por exemplo, logo no primeiro ano da ditadura militar, quando apoiamos os Estados Unidos em sua intervenção na guerra civil da República Dominicana, em 1965. Ainda assim, nossa diplomacia, contra a pressa dos militares em “pagar” o apoio recebido quando do golpe de 1964, exigiu que essa intervenção tivesse pelo menos uma cobertura multilateral, em função do que se aprovou uma resolução da OEA criando uma Força Interamericana de Paz, ao abrigo da qual nossos militares seguiram para a ilha do Caribe. Depois, durante a ditadura, e confirmando as paranoias da Guerra Fria, exibimos uma espécie de “diplomacia blindada” – apenas parcialmente conduzida pelo Itamaraty –, através da qual manobras foram feitas para sufocar ou claramente derrubar governos esquerdistas ou ameaças guerrilheiras na região. Independentemente da famosa Operação Condor – um esquema de informação e de coordenação entre órgãos repressivos da América do Sul –, militares e diplomatas brasileiros estiveram ativamente envolvidos em manobras golpistas ou diretamente em golpes de Estado em países do Cone Sul, notadamente na Bolívia e no Chile. 

O retorno à redemocratização eliminou por completo esse tipo de atitude que os vizinhos chamavam de “sub-imperialista”, mas também levou a um maior envolvimento, pelo menos pelo lado da integração, com todos os países da América do Sul, conceito que, em substituição ao de América Latina, passou a ser privilegiado pela diplomacia brasileira a partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso (que promoveu uma reunião de todos os chefes de Estado e de governo em Brasília, em 2000, quando se criou a Iniciativa de integração Regional Sul-Americana, destinada a nos integrar fisicamente com todos os nossos vizinhos). Os governos seguintes, marcados pelo PT e pela figura de Lula, introduziram um elemento indesejável em nossa política externa, uma característica que já tinha sido denunciada pelo Barão do Rio Branco desde 1902, e que sempre foi recusada ao longo do século: a “diplomacia partidária”, que no caso do PT significou uma aliança, parcialmente administrada pelo Foro de São Paulo, com todas as forças de esquerdas da América Latina, sob o escrutínio e a coordenação indisfarçável dos comunistas cubanos.

Pois foi no contexto do terceiro governo petista, em 2014, que assistiu-se a essa grave violação do Direito Internacional, ao não se ter nenhuma nota, nenhuma denúncia, sequer um pronunciamento do governo brasileiro a respeito da invasão ilegal efetuada pelo governo de Vladimir Putin, ao sequestrar a península da Crimeia da soberania da Ucrânia, em total descumprimento de acordos efetuados quando da implosão da ex-União Soviética em 1991, seguida do surgimento de mais de uma dezena de repúblicas independentes, no lugar das antigas repúblicas federadas do finado império. Enquanto os membros da União Europeia e outros países ocidentais denunciavam a violação, e introduziam sanções contra a Rússia, o governo petista ficou silente a esse respeito. 

O governo Temer, em 2016-2018, representou um breve retorno aos princípios e valores da diplomacia brasileira, tal como defendidos historicamente pelo Itamaraty, tanto que, em acordo com os demais três membros do bloco, decidiu suspender a Venezuela do Mercosul, alegadamente porque ele não tinha conseguido honrar nenhum dos dispositivos de política comercial que decidiu aceitar quando foi nele admitida – aliás ilegalmente – em 2012. A Venezuela não foi suspensa por se tratar de uma ditadura, o que em 2017 já estava claramente configurado – uma vez que o Protocolo de Ushuaia, que regula o princípio democrático no bloco é extremamente débil, no confronto, por exemplo, com o compromisso democrático da OEA –, mas por não cumprir normas básicas de funcionamento do Mercosul. 

Independentemente e em acréscimo a violações de ambos os instrumentos em várias ocasiões – notadamente em relação à Venezuela chavista –, o caso da invasão total da Ucrânia pela Rússia em 2022 configurou um grave desrespeito, pelo governo Bolsonaro, de normas basilares do Direito Internacional, sendo que o Itamaraty atuou mais pelo silêncio e omissão do que pelo desrespeito claro a princípios e normas da Carta da ONU. Para todos os efeitos, o mundo em geral, as democracias do Ocidente em particular, já não consideraram como legítima expressão do Brasil as palavras incoerentes do presidente Bolsonaro com respeito a uma suposta “solidariedade” à Rússia, antes da invasão e agressão à Ucrânia, depois uma ainda mais bizarra “neutralidade” em face do conflito, finalmente substituída, pelo seu segundo chanceler, pela noção de “imparcialidade”. Tais contorcionismos verbais não foram sequer considerados pelas democracias consolidadas como representando uma postura política aceitável por parte da diplomacia brasileira. O mundo, de toda forma, não prestava atenção a Bolsonaro, já incorporado à categoria risível dos dirigentes bizarros. 

Em contrapartida, o mundo sempre prestou atenção ao que declara o representante brasileiro nas Nações Unidos, suposto expressar a palavra e a postura oficial do Brasil no contexto das sérias discussões e tomadas de posição que são levadas a efeito no âmbito do seu Conselho de Segurança e no seio da Assembleia Geral. E o que disse, ao longo de 2022, esse representante ao longo da mais grave violação dos princípios do Direito Internacional e dos dispositivos da Carta da ONU desde o final da Segunda Guerra Mundial e da aprovação da Carta de San Francisco? Em nenhum momento se identificou e se qualificou o agressor, como tampouco se apontou a clara transgressão de artigos, quando não de capítulos inteiros da Carta da ONU, assim como o desrespeito mais brutal a normas consagradas do Direito Internacional, ou as condutas mais agressivas e desumanas registradas pela ofensiva guerreira, que de resto ferem as leis da guerra e até adentram no domínio dos crimes contra a humanidade. Em seu lugar, quais foram os posicionamentos mais comuns? 

O que se podia ler, nas burocráticas leituras do representante na ONU, certamente instruído por Brasília, foram lugares comuns, do tipo “cessação de hostilidades” – como se elas fosse recíprocas e igualmente conduzidas – ou “legítimas preocupações de segurança das partes” – como se ambas estivessem em pé de igualdade nessas “preocupações”, ou então desconformidade com a “aplicação de sanções” – pois que elas complicariam a busca de uma “solução pacífica”, ou ainda a contrariedade com o fornecimento de armas defensivas à parte agredida, sob a alegação absolutamente patética de que elas agravariam o sofrimento da população, como se a parte agredida devesse ser isolada de qualquer ajuda externa, pelo simples desejo de se defender. Foram várias as expressões tortuosas que confirmaram o abandono, não pelo Itamaraty ou pelo Brasil, mas pelo governo Bolsonaro, de nossa velha e aparentemente enterrada adesão ao Direito Internacional. 

A diplomacia do Brasil sob o governo Bolsonaro aderiu, mas formalmente apenas, às resoluções do Conselho de Segurança sobre a questão (que não aprovadas, pelo exercício do veto russo), e, mais especificamente, às da própria Assembleia Geral, que condenaram a Rússia pela sua guerra de agressão, em violação flagrante da Carta da ONU e de diversos princípios do Direito Internacional. Mas o governo Bolsonaro não seguiu nenhuma das medidas práticas adotadas pelos demais países, notadamente com respeito às sanções econômicas adotadas pelos demais países, a partir de uma interpretação especiosa da letra da Carta da ONU: elas não foram aprovadas pelo Conselho, o que era óbvio. 

Mas todos os demais países que introduziram sanções “unilaterais” seguiram o espírito da Carta, que recomendavam tais obrigações no caso de desrespeito às mais importantes cláusulas daquele instrumento multilateral. A diplomacia brasileira “esqueceu”, então – ou fizeram-na esquecer –, a grande lição de Rui Barbosa em 1916: não existe, não pode existir imparcialidade entre a Justiça e o crime. Não pode haver “equilíbrio” em face de atos não provocados de brutal agressão unilateral (Barbosa, 1983). A única atitude moral possível seria a condenação, a denúncia do agressor, a solidariedade e a ajuda ao agredido, que, na época de Rui Barbosa, se tratava da Bélgica neutra, invadida pela Alemanha. De certa maneira, a diplomacia do lulopetismo confirmou e aprofundou escolhas feitas anteriormente pela bolsodiplomacia, aquelas mais impulsionadas por um nítido oportunismo eleitoreiro – o fornecimento de fertilizantes e diesel russos, num momento de extrema dependência e de alça dos preços –, ao passo que Lula vem atuando em função de nítidos vínculos contraídos na origem pela formação do Brics, mais recentemente atraído pela miragem de uma indefinida “nova ordem mundial”, com claro sabor antiocidental e antiamericano. A febril atuação em favor de uma “moeda comum” do Brics se coloca no mesmo diapasão, mas não deriva de nenhum estudo técnico abalizado, e sim de um preconceito contra o dólar, o símbolo direto da arrogância americana nas relações financeiras internacionais. 

 

O paradoxo das sanções econômicas contra a Rússia

Do ponto de vista dos precedentes históricos com respeito às sanções econômicas aplicadas contra a Rússia, depois da invasão da Ucrânia, o que pode ser dito, em primeiro lugar, é que não existem precedentes em casos dessa magnitude, justamente contra um grande país e no largo espectro financeiro, econômico-comercial e patrimonial privado que tais sanções assumiram, unilaterais, por certo, mas praticamente uniformes entre os países envolvidos nas medidas adotadas. A despeito de ter sido alertada diversas vezes nos dias e semanas precedentes, o líder russo não acreditou que os países ocidentais fossem escalar as sanções na ampla dimensão que elas alcançaram. 

A invasão da Ucrânia pela Rússia tampouco tem precedentes na história econômica mundial em virtude da importância de ambos os países no fornecimento regional e mundial de matérias primas alimentares e energéticas da maior relevância para seus clientes na Europa e no resto do mundo. De imediato, tais medidas provocaram o recrudescimento do processo inflacionário que já vinha se manifestando nos meses anteriores, em razão de pressões sobre os mercados de combustíveis fósseis. Para os países em desenvolvimento, o choque do aumento de preços da energia e dos alimentos se revelou desastroso, nos meses seguintes, ao passo que a amplitude das sanções financeiras adotadas no âmbito do sistema Swift – que regula os pagamentos interbancários – criou novas pressões sobre o sistema monetário internacional, ainda excessivamente dependente da moeda americana. Na esteira do imediato desligamento da Rússia desse sistema começaram a ser aventadas possibilidades de adoção de sistemas de pagamentos paralelos ao existente, baseado em mecanismos não controlados pelas potências ocidentais, assim como, mais adiante, da introdução de moedas alternativas ao dólar, seja entre Rússia e China, sua aliada, seja no âmbito do Brics.

Em segundo lugar, o paradoxo das sanções se revelou no fato de que a Rússia, uma grande produtora de gás e petróleo, continuou fornecendo esses produtos para o resto do mundo, com forte destaque para os países do Brics, beneficiando-se da alta dos seus preços nesses mercados. A própria Europa, incapaz de cortar abruptamente sua dependência dos insumos energéticos russos, continuou alimentando durante certo tempo o Tesouro russo. Um paradoxo adicional é, evidentemente, o fato de que o aumento nos custos dos insumos energéticos e, na sequência, das matérias primas agrícolas, praticamente paralisadas pela extensão da guerra ao Mar Negro, representa o possível início da repetição do fenômeno conhecido nos anos 1970 como estagflação, ou seja, recessão com inflação.

O processo de desglobalização, que parecia retroceder depois da partida do grande “perturbador” da ordem econômica global que era o presidente Donald Trump, pode estar novamente no horizonte das possibilidades, dadas as reações não colaborativas com as sanções de importantes membros do G20, como os demais Brics, notadamente a China e a Índia, na medida em que eles não se alinham com a postura adotada pelos países ocidentais. Muitos países em desenvolvimento tampouco abandonaram uma postura de abstenção nas votações onusianas ocorridas recentemente: eles podem ser obrigados a recorrer a velhas formas de intercâmbio de produtos, na impossibilidade de dispor de divisas suficientes para seu próprio abastecimento em produtos estratégicos (alimentos e energia, justamente). Por outro lado, os Estados Unidos são bem mais resilientes aos efeitos adversos das suas próprias sanções – pela dimensão dos seus recursos naturais, entre outros fatores – do que os países europeus, bem mais dependentes do comércio exterior em seus respectivos mercados.

Por outro lado, um debate sobre a excessiva dependência do dólar nos mercados globais de mercadorias já se instalou, com um possível papel ampliado para a moeda chinesa ou, no sentido da economia das trocas, um retorno aos intercâmbios diretos, como ocorreu por ocasião da grande depressão dos anos 1930. Embora não existam, de fato, alternativas ao dólar no curto prazo, podem estar sendo estabelecidas linhas de reflexão sobre mecanismos alternativos de pagamentos e de finanças. O grande personagem nesse capítulo é obviamente a China, que, no entanto, tem se mantido cautelosa uma vez que seus principais mercados de fornecimento de manufaturas e de demanda de equipamentos se situam justamente nos países ocidentais que introduziram as mais fortes sanções contra o seu mais novo “aliado sem limites”. Se os países ocidentais prosseguirem em sua intenção de realmente provocar uma espécie de “lento estrangulamento econômico” contra a Rússia, a China também tem muito a perder se ela pretender vir em socorro de seu atual irmão menor por meio de expedientes que visariam esvaziar tais sanções “permanentes”. Daí sua atitude extremamente cautelosa na postura em relação à guerra de agressão do seu aliado à Ucrânia, cuja dimensão mundial e seu prolongamento no tempo escaparam, provavelmente, aos primeiros cálculos estratégicos do gigante asiático, que via a aventura putinesca como uma espécie de laboratório ocasional para testar as reações do Ocidente em face de uma eventual e futura aventura de Xi Jinping no estreito de Taiwan. Aparentemente, os exercícios militares de intimidação não tiveram o efeito que se esperava e podem ter reforçado a disposição de aderir à “contenção” da China já iniciada desde algum tempo pelo ainda Hegemon planetário.

Nesse sentido, um paradoxo adicional ao presente cenário de incertezas geopolíticas e geoeconômicas – já caracterizada por um bom número de observadores como uma “segunda Guerra Fria” – poderia ser representado por uma mudança nos planos estratégicos da ainda maior potência imperial do planeta, que havia indicado a China como virtual competidora hegemônica, nesse ato se enredando, por sua própria atitude, numa espécie de “armadilha de Tucídides”, uma fantasmagoria acadêmica que parece assumir ares de fatalidade conflituosa. Essa analogia falsamente histórica – mas toda analogia histórica é necessariamente falsa e enganosa – foi suscitada por um professor de Harvard, Graham Allison, que, nos anos 1970, tinha ficado conhecido por uma aguda análise da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, no livro The Essence of Decision (1971). 

Provavelmente influenciado pela paranoia dos generais do Pentágono – todo militar, por princípio, é pago para ser paranoico –, que seguem de perto, com extrema preocupação, o agigantamento militar da China, Allison (2015, 2020 lançou-se numa especulação claramente despropositada, listando de mais de uma dúzia de confrontos militares entre potências ascendentes e potências estabelecidas, estabelecendo, a partir daí, uma correlação historicamente fantasiosa com o equivocado conceito de “armadilha de Tucídides”, proclamando a possibilidade de uma nova “guerra do Peloponeso”, desta vez entre a Esparta-China e a Atenas-EUA (que ele afirma não desejar). Ironicamente, a longa guerra foi ganha pela Esparta autoritária, e não pela Atenas democrática, cuja liderança da Liga Ateniense foi marcada por diversos erros diplomáticos que alienaram aliados em favor do competidor.

De fato, erros diplomáticos e sanções econômicas exageradas podem, realmente, produzir resultados catastróficos para as partes em conflito, o que ainda não é o caso das relações atuais entre os dois gigantes econômicos da contemporaneidade; eles estão apenas se medindo, de forma desconfiada, mas o cálculo estratégico da China aponta mais para 2049 – o centenário da fundação da República Popular – do que para a conjuntura imediata. Mas não faltam aqueles que imaginam que o acirramento de tensões nos atuais pontos quentes do planeta – Ucrânia e Taiwan, justamente – pode levar a uma nova guerra entre impérios. Diferentemente, porém, da primeira Guerra Fria, que, na interpretação aroniana, envolvia uma potência revisionista animada por uma concepção messiânica da ordem mundial, a atual “guerra fria” é bem mais de ordem econômica e tecnológica, com uma China plenamente integrada à ordem econômica multilateral, e decidida a vencer no mesmo terreno que, no passado, sustentou a preeminência econômica britânica – o livre comércio, ainda que a seu próprio favor – durante a maior parte do século XIX e até o início do XX, passando depois o bastão do comércio, dos investimentos e finanças ao hegemon americano, desde a segunda metade desse século, até o presente. 

Longe de ser “socialista”, a China é um “capitalismo com características chinesas”, apenas que com um partido leninista no poder, mas sem as crenças toscas, simplórias até do ponto de vista marxista, dos bolcheviques que tentaram fazer um elefante voar, ao inaugurar o “modo de produção comunista”, baseado em leis antimercado. Lênin podia ser um gênio em política, mas era um inepto em economia, assim como Stalin, um mero tirano, sem qualquer “afinidade eletiva” com os sofisticados mandarins chineses, hoje representados pelos funcionários do PCC, mais próximos de Peter Drucker do que de Preobajensky ou Bukharin. A China não é uma potência revisionista, ou expansionista, como foi a União Soviética durante boa parte de sua tumultuada história de 70 anos; seu expansionismo é essencialmente comercial, e seu processo de catch-up em tecnologias avançadas já está sendo superado pela substituição da “captura” não declarada pela produção própria de patentes. Assim como as normas industriais foram basicamente europeias no século XIX, e americanas e europeias, mas também japonesas, no século XX, padrões chineses vão começar a se impor nas tecnologias de fronteira do século XXI. 

A Rússia de Putin é, sim, uma potência revisionista, mas sem condições econômicas, políticas ou diplomáticas de se impor a vizinhos regionais ou de fora, unicamente pela força de seu poderio militar. Na verdade, ela só pode ser considerada uma potência pela detenção de armas nucleares estratégicas, e por um imenso território repleto de recursos naturais, mas dificilmente exploráveis por falta de tecnologia, de investimentos e mais exatamente por falta de capital humano. Com efeito, a Rússia atravessa, há muitos anos, um declínio demográfico poucas vezes visto na história, feito de guerras (geralmente baseadas num uso intensivo de “mão-de-obra”), péssimos serviços de saúde, alcoolismo disseminado, pouca (ou nenhuma) imigração e uma emigração forçada, por razões políticas e, agora, “militares”. Ela já foi uma grande produtora de cérebros, sobretudo nas ciências duras, mas passou a fornecer quadros formados para ambientes de negócios mais receptivos em outras partes. A guerra de agressão contra a Ucrânia apenas vai acelerar esse declínio, delongado parcialmente pelo apoio do aliado chinês, mas a termo aprofundado pela relação de vassalagem que vai se estabelecer no plano bilateral. A agressividade de Putin é um problema para todos, amigos e inimigos.

Pode ser que a potência revisionista do momento, a Rússia, seja contida por algum interesse comum, ainda que não confessado, dos dois maiores impérios econômicos da atualidade, China e Estados Unidos. Anos antes que as relações se deteriorassem ao ponto das retaliações recíprocas do governo Trump, o historiador Niall Ferguson já havia aventado a possibilidade – de forma alguma quimérica, dada a quase perfeita complementaridade entre as duas economias – de uma “Chimerica”, um projeto provavelmente difícil de ser realizado na prática, mas ainda assim uma esperança acadêmica de que uma simbiose colaborativa pudesse se estabelecer entre os Estados Unidos e a China. Seria, numa visão otimista, o melhor dos cenários prospectivos, não tanto no plano da continuada competição estratégica entre os dois gigantes econômicos, mas em direção dos países em desenvolvimento, de fato, para o mundo todo. 

Esse cenário, contudo, é altamente improvável numa perspectiva à la Toynbee, pois que grandes impérios não são solúveis em água, ou seja, dificilmente podem ser combinados numa nova receita de estabelecimento consensual e pacífico de uma “nova ordem mundial”. A maior parte das “ordens mundiais”, ou regionais, sucessivas, acabaram sendo o resultado de grandes rupturas dentro das próprias nações, ou entre Estados, geralmente impérios ou grandes potências com pretensões à preeminência. Na era atômica, os líderes mundiais devem estar conscientes de que não dá mais para reproduzir os padrões históricos de rupturas do passado. Ou será que não estão?

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4445, 10 agosto 2023, 25 p.

Postado no blog Diplomatizzando (link: )

 

 

 

Bibliografia: 

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Almeida, Paulo Roberto de. “Outro mundo possível: alternativas históricas da Alemanha, antes e depois do muro de Berlim”, Espaço Acadêmico, n. 102, 2009, p. 25-29 (link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8586/4777).

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Pinheiro Machado, Paulo Fernando. Ideias e diplomacia: O Visconde do Uruguai e o nascimento da política externa brasileira– 1849-1853. Lisboa: Lisbon International, 2022.

Snyder, Timothy, The Making of Modern Ukraine; Yale courses, 2022, 23 vídeos (link geral: https://www.youtube.com/playlist?list=PLh9mgdi4rNewfxO7LhBoz_1Mx1MaO6sw_); aula 13, “Republics and Revolutions”, trata da tentativa de um Estado ucraniano, no quadro da guerra civil em 1918-1921, entre Exército Vermelho e Exército Branco (link: https://www.youtube.com/watch?v=Q9ciocrFK8w&list=PLh9mgdi4rNewfxO7LhBoz_1Mx1MaO6sw_&index=13).

Stremlau, John. Sharpening International Sanctions: towards a stronger role for the United Nations. New York: Carnegie Corporation on Preventing Deadly Conflict, 1996.

Von Sponeck, H. C. A Different Kind of War: The UN Sanctions Regime in IraqNew York: Berghahn Books, 2006; com prefácio do então chanceler brasileiro Celso Amorim.

Yekelchyk, Serhy. Ucrânia: o que toda a gente precisa saberCoimbra: Edições 70, 2022.

 

 



[1] Ver também, especificamente dedicado ao caso emblemático do Iraque, a obra de Von Sponeck (2006).

[2] Para um estudo abrangente do histórico brasileiro de adesão tradicional aos grandes princípios do Direito Internacional pode-se começar pelo fundador efetivo da política externa nacional, operada em suas duas gestões por Paulino Soares de Souza (1949-1853), Visconde do Uruguai, por meio da obra de Pinheiro Machado (2022). Para a estrutura constitucional contemporânea, vale consultar o estudo mais completo disponível na literatura jurídica brasileira de autoria do diplomata e jurista Christófolo (2019).

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