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quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Arnaldo Godoy segue as memórias de Rubens Ricupero até 1961; mas todas 684 páginas são História e Literatura...

 AS MEMÓRIAS DE RUBENS RICUPERO 

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

 Conjur, 14 de julho de 2024

https://www.conjur.com.br/2024-jul-14/as-memorias-de-rubens-ricupero/


            A Editora Unesp publicou as Memórias de Rubens Ricupero. Corra e pegue o seu. São 684 páginas que revisitam o Brasil, com ênfase na segunda metade do século XX. Um primoroso escritor. Ricupero foi diplomata de carreira, Ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e, entre outros postos na diplomacia, foi embaixador na Itália. Esse posto, penso, é talvez sua maior vitória. Explico. 

            Ricupero é filho de uma família de imigrantes italianos, que apostaram tudo no Brasil no início do século XX. De uma família lutadora, que enfrentou todos os touros para a sobrevivência, Ricupero é exemplo de triunfo e de esforço pessoal. Não é para menos. Foi impressionado com a autobiografia de Benjamin Franklin, o mais emblemático dos homens americanos que se construíram sem favores e benesses familiares. É o caso de Ricupero.

            Trata-se de um livro de memórias que é singular. Extremamente pesquisado, há uma exuberância de notas de rodapé, com indicações precisas de livros e de filmes, que revelam a cultura pantagruélica do autor. Com a desculpa de descrever a “memória dos pobres” Ricupero conta a história de sua família, a vinda para o Brasil, as dificuldades, os parentes, descrevendo tipos extremamente interessantes. 

Conta sua infância em São Paulo, cheia de dificuldades, com a referência ao Brás, ao Bexiga e à Barra Funda, livro delicioso de Alcântara Machado. Ricupero retoma versos de Mário de Andrade para explicar uma cidade de São Paulo, que infelizmente deixou de existir. Narra o momento em que os espanhóis começam a dividir espaço com os italianos, com a triste referência de que a maior parte das famílias espanholas que viviam nos cortiços eram chefiadas por viúvas. 

            Ricupero conta de seus livros de infância, com especial deferência a Monteiro Lobato. Conta que em um dia de inverno (daqueles invernos antigos de São Paulo) ao saber da morte do escritor, precipitou-se ao velório, na Biblioteca Mário de Andrade, e de lá ao cemitério da Consolação. Tinha onze anos, e registra que deve ser um dos poucos sobreviventes que foram ao enterro. O leitor imagina um menino de onze anos, sozinho, desacompanhado, atravessando a cidade de São Paulo para acompanhar o enterro de um escritor? 

            Influenciado pela biblioteca do tio, Ricupero leu de tudo ao longo da infância. Lembra as antologias da FTD, uma editora ligada aos maristas. A sigla vem de Frère Theófane Durand, que comandou os maristas na virada do século XIX para o século XX. 

Foi nas edições FTD que Ricupero conheceu Eça de Queiróz. Ricupero estudou com os maristas. Admirava um professor de português, Irmão Caetano José. Conta, em seguida, que o Irmão deixou os maristas, seguiu vida secular e se revelou como um de nossos maiores gramáticos. O Irmão Caetano José é Domingos Paschoal Cegalla, autor da Novíssima Gramática da Língua Portuguesa.

            O autor narra sua crise na escolha da profissão. Acabou estudando direito, no Largo de São Francisco, onde fez amizade como Fábio Konder Comparato e com o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, que vinha de Araraquara. A impressão da faculdade não é das melhores, embora Ricupero registre que admirava alguns professores, como Goffredo da Silva Telles, Basileu Garcia e Miguel Reale. Ricupero aproximou-se de grupos cristãos, da Congregação Mariana, ambiente no qual sentia-se à vontade, discutindo temas de política.

            Por influência de um amigo optou para o Itamaraty. Preparou-se para um concurso dificilíssimo. Concorreu com candidatos preparadíssimos. Conta que, de todos eles, era o único que não conhecia a Europa. Dedica algumas páginas para falar de Guimarães Rosa, que à época revolucionava os exames, buscando um currículo oculto, que revelasse uma propensão para as humanidades e para a compreensão da condição humana. Essas páginas valem todo o livro. 

            Ricupero conta seu encontro com Marisa Parolari, com quem se casou. Descreve com nitidez São Paulo, onde casualmente encontrou Marisa depois de um tempo sem vê-la, no Viaduto do Chá. Como seria o entorno do Viaduto do Chá no fim dos anos cinquentas? 

            O autor também descreve o Rio de Janeiro do início da década de 1960. Morava na Rua Paissandu, tomava o bonde da Light, chegava na Cinelândia, almoçava na lanchonete da Mesbla, descia para a Rua Larga, e chegava no Palácio do Itamaraty. Por que nós brasileiros deixamos que o Rio de Janeiro se degradasse tanto, e que desse tempo muito pouco ficou?  

            Ricupero descreve seu encontro com Antonio Carlos Villaça, um de nossos mais importantes críticos, autor de “O Nariz do Morto”, fascinante depoimento memorialístico, prefaciado pelo embaixador Alberto Costa e Silva, na edição de 1970. Edmilson Caminha, um dos maiores conhecedores da obra de Villaça, e do próprio Villaça, pode confirmar a descrição que Ricúpero faz do nosso grande crítico. 

            O autor esteve em Brasília, logo após a inauguração. Descreve com precisão histórica o meteoro Jânio Quadros, a UDN de porre, na expressão sardônica de Afonso Arinos, que Ricúpero registra.

            Fico por aqui. Deixo apenas uma amostra do que o leitor encontrará nesse portentoso livro. Resenhei até 1961 e o livro vai até dois mil e ontem. Trata-se de um registro autobiográfico que se aproxima do registro de Roberto Campos (Lanterna na Popa). Dois grandes brasileiros, vindos de baixo, bem de baixo, mas que triunfaram pelo esforço, pela dedicação, pela inteligência e pela devoção ao que mais singulariza nossa condição: a cultura. 

 

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