Poucas vezes, consegui ler um posicionamento da esquerda brasileira, sobre a política externa de um governo de esquerda, com tal transparência quanto esse artigo não assinado de Opera Mundi, um dos canais tradicionais da esquerda mais fiel ao que pensam os chamados "petistas raiz".
Tudo se explica, segundo o artigo, pela "falência histórica da política de colaboração de classes", que na visão da esquerda falhou e precisa ser substituida por uma política de enfrentamento ao imperialismo, o responsável por todos os nossos problemas, que estariam melhor encaminhados na colaboração com os países do BRICS+, e sobretudo os os países de esquerda da AL, como a própria Venezuela.
Só nos cabe agradececer ao redator pela transparência de opinião.
Paulo Roberto de Almeida
Política externa em cima do muro é reflexo da esquerda brasileira e pode abreviar Governo Lula
O Brasil não precisava ter vetado a entrada da Venezuela como parceiro do BRICS.
É sabido que essa decisão foi tomada para não ficar mal com os Estados
Unidos. Mas poderia muito bem ter se abstido e justificado que seria
errado ir contra a vontade de todos os outros membros. Não era difícil
ter deixado passar a decisão da maioria. Lula demonstrou fraqueza e isso é o pior que um chefe de Estado pode fazer. O inimigo viu que Lula
fraquejou e isso vai animá-lo a aumentar as pressões. Essa é uma
síndrome da esquerda nacionalista e reformista. Só que a fraqueza que Lula demonstrou foi muita - foi uma capitulação totalmente desnecessária.
Ao lado da Fazenda e Defesa, o Itamaraty
é um dos três principais ministérios do governo brasileiro. Como tratam
o Brasil como uma colônia, os EUA precisam ter o controle sobre esses
três ministérios-chave. É inadmissível que algum deles seja independente
do controle imperialista. A composição social do Itamaraty
é perfeita para a penetração da influência imperialista: uma casta
burocrática e familiar formada pela burguesia e os extratos superiores
da pequena burguesia. Sempre foi assim.
Como uma entidade extremamente tradicional e de elite, ela é
inerentemente conservadora, mesmo reacionária, que visa manter o status
quo e seus privilégios absolutamente inalterados.
O imperialismo americano se aproveita disso e já há mais de 100 anos,
quando começou a dominar a política brasileira, cooptou e colocou em sua
folha de pagamentos senão toda a estrutura desse ministério, ao menos
uma parte importante dos seus integrantes.
Como em tudo, o PT não conseguiu (se é que tentou) mudar o quadro da
instituição. Os embaixadores e diplomatas de primeiro escalão colocados
por Lula e Dilma foram rifados logo quando Bolsonaro assumiu o governo. Trocou muitos "petistas" por olavistas ou semi-olavistas.
Dividiram o controle com os burocratas tradicionais da corporação, deixando os poucos "esquerdistas" de canto. Agora que Lula
voltou, ao invés de fazer a mesma limpeza que Bolsonaro fez e retirar
os bolsonaristas e direitistas de cena, praticamente não mexeu no Itamaraty. O Itamaraty
não está sob o controle do presidente da República - como deveria
estar, sendo um dos principais ministérios e, portanto, devendo obedecer
fielmente ao presidente.
Política de conciliação esgotada
A vida política institucional de Lula
já está indo para o seu desfecho e ele tem a chance de deixar um legado
positivo histórico, conduzindo o Brasil para um caminho soberano em
relação ao jugo imperialista. Não há sucessor na esquerda e, se Lula
falhar na tarefa (que ele talvez almeje e a qual seus apoiadores
acreditam que ele é capaz de realizar) de abrir as portas do Brasil para
a nossa soberania, a esquerda pagará um preço enorme. Haverá uma crise
histórica de lideranças absolutamente adaptadas à submissão imperial,
que só não se abateu com toda a força porque Lula ainda existe.
O veto do Brasil à Venezuela no BRICS
é consequência da insistência da esquerda em manter a política não
apenas de conciliação, mas de colaboração com a direita tradicional,
vendida como a "menos pior" - que se expressa, novamente, no apoio aos
candidatos dessa direita contra os "mais piores" bolsonaristas no
segundo turno das eleições municipais.
As eleições municipais consolidaram a ressurreição dessa direita (o
centrão). Depois da débâcle histórica de 2018, a direita conseguiu se
recuperar aos poucos, graças ao resgate proporcionado pela esquerda. As
eleições de 2022, com a formação de uma frente ampla desnecessária para
eleger Lula, levaram este à presidência, mas ao custo de que essa direita tradicional se apoderasse do governo.
Centrão, sempre no poder
Na verdade, o centrão nunca saiu do poder. É a grande chaga que mantém o
Brasil como uma semicolônia do imperialismo desde a proclamação da
república. Nenhuma revolução ou contrarrevolução o tirou do poder - no
máximo reduziu ou fortaleceu o seu domínio, mas nunca o erradicou. A
maior parte do tempo do governo Bolsonaro já havia sido, de fato, de um
governo do centrão.
A direita tradicional conseguiu neutralizar a força avassaladora da
extrema-direita ao longo da primeira metade do governo Bolsonaro, e foi
ainda mais rápida em neutralizar o governo Lula.
Há mais de um ano o presidente não passa de um refém do centrão, da
direita oligárquica e dependente do imperialismo americano.
O último bastião da resistência de Lula
dentro do governo - a política externa - já está sendo conquistado pela
direita. O imperialismo não pode tolerar uma política brasileira na
cena mundial que apoie a resistência palestina e tampouco o
fortalecimento de Rússia, China e do enfrentamento ao seu domínio,
representado pelo BRICS. As engrenagens pró-imperialistas do Itamaraty já foram ativadas a fim de completar o cerco do próprio aparelho do Estado brasileiro ao presidente Lula e àquilo que ele representa.
Há, ainda, um problema crucial: a extrema-direita, apesar de suas
contradições internas, está com sua força e popularidade praticamente
intactas já há uma década. E, como sempre, é favorecida pela sabotagem e
propaganda da direita tradicional (centrão, imprensa, bancos e grandes
capitalistas) contra Lula.
Além do mais, a forte presença da extrema-direita influenciou a
política da própria direita tradicional, agora ainda mais reacionária.
Política de não-alinhamento
O presidente, assim, vive uma situação muito delicada. Há quem acredite
que ele está certo em buscar uma suposta equidistância tanto dos Estados
Unidos quanto da China. Mas um país como o Brasil, uma semicolônia do
imperialismo americano submetida atualmente a uma crescente pressão de
Washington, não pode se dar ao luxo de buscar uma pretensa neutralidade,
ao contrário de outros, como Índia ou Turquia, que são geograficamente
distantes dos EUA e vizinhas de China e Rússia e cuja dependência
política e econômica do imperialismo americano (embora ainda seja
grande) não é tanta quanto a nossa.
Mesmo países fronteiriços com a Rússia não suportaram as pressões contra
a aplicação de uma política não-alinhada e tiveram seus governos
derrubados por golpes de Estado promovidos pelo imperialismo. Foi o caso
da Ucrânia, em 2014, e é o que tende a ocorrer na Geórgia novamente.
Essa também é a tendência do Brasil, se Lula
continuar cedendo e não tomar um rumo verdadeiramente soberano, o que
significa se aliar com China e Rússia e deixar de depender dos Estados
Unidos.
O imperialismo americano tem o controle do Brasil. Tanto o centrão quanto a extrema-direita são seus aliados contra Lula.
Ainda que tenham desavenças (às vezes encarniçadas), na hora H eles
deixarão essas discordâncias de lado e lutarão juntos contra o inimigo
comum, como a história já demonstrou em incontáveis ocasiões. E os
aparelhos burocráticos do Estado, como o Judiciário - principal
ferramenta do imperialismo no Brasil, junto com a grande imprensa
burguesa -, marcharão ao seu lado.
Falência histórica
Aparece com crescente saliência, novamente, a falência histórica da
política de colaboração de classes. Sua estabilização já não é mais
viável desde que foi rompida com o golpe de 2016 e a ascensão da
extrema-direita por obra da burguesia e do imperialismo. O que temos
hoje é um monstrengo: a ala pretensamente nacionalista da burguesia, a
quem Lula e o PT insistem em se apegar, sente-se ainda mais pressionada pelo imperialismo do que Lula - e cede muito mais facilmente e com muito menos hesitação do que o presidente.
Quaisquer coincidências de interesses com a classe operária e as demais
classes populares que ainda possam existir se esvaem em uma situação de
polarização política continuada e que volta a crescer, elevando
particularmente as contradições das camadas populares com o imperialismo
americano.
A burguesia "nacional", os aliados civilizados, democráticos e progressistas de Lula
vão pular fora do barco (mesmo que não o façam abertamente) porque
sabem que não há futuro nenhum dentro dessa aliança anti-histórica, na
expressão usada por Mário Pedrosa ao analisar um cenário parecido, a
crise do PTB de Jango com o PSD poucos anos antes do golpe de 1964.
Lula
também vai ter de abandonar essa ambivalência na política externa e
escolher um lado. Se não fizer, não vai durar. E se capitular
definitivamente para o imperialismo, tampouco terá algum sucesso. O
problema é que não dá para adotar uma política externa e uma política
interna antagônicas. Para adotar uma política externa independente e,
portanto, oposta ao controle do imperialismo, ele vai ter de se voltar
contra os agentes do imperialismo dentro do próprio país, começando por
aqueles que infestam o governo mesmo.
Pressões
Mas, se na política externa Lula sofre a pressão positiva do BRICS
ampliado em contraposição à pressão negativa dos Estados Unidos, no
cenário interno, a pressão popular - a única que poderia contrapor a
pressão da direita - quase não existe, ao menos de forma organizada.
Daí também a parcela de culpa da esquerda, dos partidos (a começar pelo
próprio PT), dos sindicatos e da imprensa progressista na política
capituladora de Lula com relação ao BRICS e à América Latina. Na realidade, as posições de Lula, em geral, ainda são mais acertadas do que as da maioria da esquerda.
Não é Lula,
somente, quem está na corda bamba. É toda a direção da esquerda
brasileira. Sua política medíocre e rebaixada é a grande responsável
pelos erros cometidos por Lula
e pelo governo. Os movimentos populares precisam dar um giro de 180
graus em sua política e começar a combater de fato os inimigos de Lula,
ou seja, os agentes do imperialismo no Brasil, pressionando o
presidente e as suas próprias direções. Porque as pressões do outro lado
da corda são cada vez mais fortes e Lula não vai conseguir se equilibrar por muito tempo.
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