Fernando Gabeira defende, em seu artigo de hoje, que os cortes de gastos devem ser feitos no “andar de cima”, basicamente supersalários do funcionalismo público e subsídios a grandes empresas. Sem entrar no mérito da proposta do jornalista, em si boa e justa, atacar esses problemas proporcionaria um alívio de curto prazo e traria uma bem-vinda sensação de justiça, mas seria uma questão de tempo para termos o mesmo problema de volta, dado que as despesas obrigatórias e as vinculações constitucionais referem-se, basicamente, aos “gastos sociais”. Ou seja, sem mexer nisso, é questão de tempo para que tenhamos, novamente, o mesmo problema, qual seja, gastos obrigatórios crescendo acima da capacidade do PIB.
Gabeira relembra a saga da Grécia, e alega que os programas de austeridade fiscal foram colocados em cheque depois daquilo que o mercado financeiro, através do FMI e União Europeia, obrigou a Grécia a fazer. Não por outro motivo, um partido de esquerda radical, o Syriza, foi eleito em 2015 e reviu todas as políticas de austeridade, segundo o jornalista. O único problema dessa história contada por Fernando Gabeira é que ela não é verdadeira.
Eu detalho a saga da Grécia em um dos capítulos de meu livro Descomplicando o Economês. O problema da Grécia, em primeiro lugar, foi o de ter escondido sua real situação financeira através de subterfúgios contábeis. Sim, eles também tiveram suas “pedaladas contábeis”. Quando ocorreu a Grande Crise Financeira, com a quebra do setor de imóveis nos EUA em 2008, a água da piscina baixou e descobriu-se quem estava nadando pelado. Revelou-se, então, que a Grécia estava rodando um déficit fiscal da ordem de 14% do PIB, muito mais do que os 3% de limite imposto pelo tratado de Maastricht, que estabeleceu as bases do Euro. A Grécia havia adotado o Euro no ano 2000, e aderido às regras do tratado.
Em 2011, o país tinha duas alternativas à sua frente: ou levava a cabo um ajuste brutal de suas contas públicas para permanecer no Euro, ou voltava ao Dracma, que se desvalorizaria também de maneira brutal, queimando todas as suas dívidas e provocando uma inflação monstruosa para os gregos. Ambas as alternativas envolviam sofrimento para os cidadãos, não havia saída fácil. O governo grego optou por continuar no Euro, provocando uma recessão de 25% em 4 anos. Alguns vão dizer que os gregos ficaram 25% mais pobres. Eu digo que os gregos estavam artificialmente 25% mais ricos, e o corte do cheque especial só mostrou a realidade.
Do jeito que Gabeira coloca, parece que a austeridade foi adotada por uma espécie de sadismo do mercado financeiro. Não, foi uma imposição da realidade econômica. A Grécia aproveitou-se, durante uma década, para se endividar com as taxas de juros baixas proporcionadas pelo fato de emitir dívidas em Euro, uma moeda não inflacionária. Agiu como o playboy, filho do magnata, que usa o cartão de crédito do pai para viver loucamente. No caso, o pai da Grécia era a Alemanha. Como era um país pequeno, passou debaixo do radar durante vários anos, até ser descoberto. Se a Grécia tivesse que pagar suas próprias contas desde o início, o espaço para o déficit fiscal seria bem menor e bem mais caro.
Gabeira afirma que o Syriza foi eleito em 2015 como uma resposta a essa política de austeridade. Só esqueceu de dizer que o partido de esquerda manteve a disciplina fiscal e, talvez por isso, tenha perdido as eleições de 2019 para o Nova Democracia, o mesmo partido que havia implantado as medidas de austeridade em 2012. Afinal, se é para fazer a mesma coisa, pra que mudar, não é mesmo?
O jornalista diz que a situação do Brasil não é a mesma. Fato. Aqui temos o Real, não o Euro, e o nosso banco central fica em Brasília, não em Frankfurt. Aqui não temos que obedecer o duro Tratado de Maastricht, mas o muito mais malemolente Novo Arcabouço Fiscal. Essas diferenças fazem com que a pressão para adotar políticas austeras sejam muito menores. Afinal, a nossa moeda pode desvalorizar-se e a inflação decorrente vai fazer o serviço, o que não era uma alternativa para os gregos dentro do Euro. Temos a licença poética para discutirmos os males da austeridade, pois, no final, a inflação “resolverá” o problema da dívida.
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