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sábado, 18 de março de 2023

Elogio da Exploração (1990) - Paulo Roberto de Almeida

 ELOGIO DA EXPLORAÇÃO

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Cinco séculos depois de Erasmo ter ousado proceder a um elogio da loucura (Encomium moriae) e cem anos após Paul Lafargue ter defendido o direito à preguiça (Le Droit à la Paresse), não deveria haver nada de muito surpreendente no fato de se pretender encontrar aspectos positivos na Exploração. Antes de ser mal interpretado, esclareço que estou referindo-me efetivamente à velha e abominável “exploração do homem pelo homem”.

Se existe algum elemento de verdade no conhecido apotegma, segundo o qual “existe apenas uma coisa pior do que ser explorado, que é a de não ser explorado”, a exploração deveria ter lugar assegurado no panteão das realizações humanas. Com efeito, ela se apresenta como um dos elementos de organização social de maior força agregadora e de maior vitalidade institucional. No entanto, a legitimidade da exploração sempre foi expurgada da memória social, constituindo-se numa espécie de mito fundador rejeitado universalmente pelo inconsciente coletivo. Apesar disso, ela parece ser estruturalmente necessária enquanto sustentáculo da vida social, surgindo historicamente como um verdadeiro requisito de civilização e como um componente indispensável de toda e qualquer sociedade dinâmica. 

Ao lado da Dominação, a Exploração é uma das forças mais poderosas que motivam o progresso social e o avanço material das civilizações, ao organizar a sociedade para o crescimento do produto em bases mais racionais e ao permitir, contraditoriamente, o surgimento de condições sociais favoráveis ao estabelecimento de uma maior igualdade de chances no conjunto da sociedade. 

Mas, antes de que se tome este exercício de crítica intelectual como uma mera provocação — o que ele, de certo modo, o é, efetivamente — devo esclarecer que pretendo tão somente oferecer algumas notas sobre os condicionantes históricos do desenvolvimento social como forma de sustentar um novo tipo de discurso sobre essa relação social tão execrada e no entanto tão generalizada, a ponto de ser verdadeiramente universal nas sociedades complexas. 

Mais do que um simples elogio, a Exploração requer explicação e compreensão, ou aquilo que em termos metodológicos weberianos se chamaria de Verstehen. Minha intenção é, sucintamente, de proceder ao alinhamento de uma série de proposições relativamente diretas — mas de cunho geralmente abstrato — e pedir a meus leitores que tentem encontrar contra-proposições historicamente credíveis e empiricamente sustentáveis. 

É evidente que os partidários da vulgata unilinear marxista sobre a sucessão dos “modos de produção” poderão desde logo argumentar com exemplos retirados da chamadas “sociedades primitivas”. A estes devo, no entanto, advertir que estou referindo-me a sociedades históricas, isto é, dotadas da mola do Progresso e aptas a retirar da atividade produtiva um excedente para investimento futuro e incremento das oportunidades de consumo. Apesar de que este modesto ensaio possa ser também considerado como um exercício de antropologia cultural, ele não pretende circunscrever seus argumentos a um determinado tipo de formação social, mas sim generalizá-los em função da categoria mais comum de sociedade histórica, que é aquela dividida em classes (incluídas neste conceito igualmente as que algum dia tiveram a pretensão de se considerar “socialistas”).

Sem pretender oferecer aqui a teoria e a prática da Exploração, as proposições de caráter abstrato que faço — procurando aproximar-me das categorias universais que Weber chamaria de Ideal-typus — são as seguintes:

 

1) Todas as sociedades organizam-se estruturalmente segundo uma relação mais ou menos estreita com o seu meio ambiente, mas é nas chamadas sociedades primitivas que a “ditadura da natureza” é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é, dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a emancipação do Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão sexual e social do trabalho, base ulterior da divisão da sociedade em classes. 

2) Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes sociais, ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplos, na antropologia ou na história comparadas, de sociedades históricas que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessas sociedades, uma determinada categoria de pessoas detém a capacidade de comandar outras pessoas (de fato, a maioria) e delas extrair recursos excedentes em termos de produção econômica.

3) A apropriação de excedentes econômicos produzidos pelas classes trabalhadoras (exploração), e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário sobre o conjunto da população (dominação), parecem obedecer a uma mesma lógica social: a monopolização, por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens raros, nesse caso representados pela Propriedade e pelo Poder. O conceito econômico de “raridade” — ou “escassez relativa” — parece apropriado para caracterizar tanto essa concentração do excedente disponível na esfera econômica como a monopolização do poder político em mãos de uma elite social.

4) A concentração e a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante são normalmente legitimadas por algum tipo de racionalização, já que aqueles processos não podem ser mantidos unicamente através do emprego constante (ou da ameaça de uso) da violência institucionalizada. Uma “ideologia da dominação” — que é, ao mesmo tempo, uma justificativa da exploração — tende assim a acompanhar todas as situações de desigualdade estrutural.

5) Nas sociedades de classe modernas e contemporâneas, a exploração assume principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro “modo de produção inventivo”, transformando o progresso tecnológico em rationale da vida econômica e social.

6) A exploração nem sempre pode ser qualitativamente aferível: em todo caso sua percepção é, mais bem, de ordem subjetiva. Tampouco ela parece ser quantitativamente mensurável, embora exercícios marxianos tenham tentado medir tal indicador através da “taxa de mais valia”. Todas as avaliações estimativas no sentido de traduzir esse conceito na prática econômica corrente se viram, no entanto, frustrados por sérias dificuldades metodológicas e por barreiras empíricas não menos importantes.

 7) O sucesso relativo de uma nova forma de organização social da produção material significa, concretamente, uma maior disponibilidade de bens e serviços anteriormente raros ou de alto custo unitário; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades humanas.

8) Ao disseminar mercadorias e transformar ecossistemas, o progresso tecnológico cria desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. A transformação criativa que deriva do modo de produção inventivo gera, igualmente, desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas também na marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais desenvolvidos. Enquanto novos espaços sociais são incorporados aos circuitos da exploração, outros deixam de ser funcionalmente rentáveis na cadeia de expropriação de excedentes, ou seja, sua exploração já não é mais compatível com os custos marginais.

9) As relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito puramente interclassista ou intra-societal, mas prevalecem igualmente num nível inter-societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre classes sociais.

10) A racionalização conceitual do desenvolvimento histórico e social, ao coincidir no tempo com a formação e o fortalecimento dos Estados-nacionais (séculos XVI-XVIII), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado do Progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State building.

11) Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas à prática da exploração. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, posteriormente, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos, no plano econômico, os conceitos de “equilíbrio dos mercados”, da “mão invisível”, de “vantagens comparativas” ou de “laissez-faire”. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes dos próprios países submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) ou a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do desenvolvimento material das sociedades envolvidas. Mas, mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial, ou seja, na incorporação de novas áreas à exploração capitalista, um grande fator de desenvolvimento material em sociedades mais atrasadas.

12) O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do desenvolvimento nas formações dominantes e, inversamente, naqueles dois fenômenos os principais fatores de subdesenvolvimento nas primeiras. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao - e não efeitos do - exercício da vontade imperial. 

13) A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas dominadora. Embora uma das fontes de “acumulação primitiva” possa ser constituída pela exploração de sociedades dominadas, esta não é nem o mais importante fator de avanço material das sociedades centrais, nem o requisito suficiente para o desenvolvimento contínuo destas últimas. A chamada “aventura colonial” foi antes uma busca de prestígio político do que um empreendimento econômico, envolvendo, na maior parte dos casos, custos superiores aos benefícios incorridos. 

14) A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na auto-capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.

15) As sociedades que conheceram rupturas violentas da ordem política, durante seu processo de modernização econômica e social, eram, via de regra, as menos desenvolvidas materialmente em relação a seu entorno geográfico, em suma, sociedades onde a exploração menos tinha feito progressos. Em termos históricos concretos, é a insuficiência de desenvolvimento capitalista, e não uma pretendida “super-exploração capitalista”, que abre as portas a revoluções burguesas e anti-burguesas. Isto é válido tanto para as revoluções burguesas “clássicas”, de que a francesa constitui o paradigma par excellence, como para as revoluções sociais na Rússia, na China e, mais perto de nós, no México.

16) As tentativas de superar a “democracia formal”, de caráter burguês, e de eliminar radicalmente a exploração de tipo capitalista, substituindo-as pela “democracia real” e pelo igualitarismo social, não conseguiram, nem mesmo no caso das experiências de cunho auto-gestionário, sequer arranhar o sólido edifício da exploração, logrando apenas destruir toda e qualquer possibilidade de governo democrático, sem adjetivos. Como diz a conhecida anedota, se o capitalismo é um sistema de exploração do homem pelo homem, sob o socialismo ocorre exatamente o inverso.

17) Da mesma forma, não se conseguiu até agora conceber, colocar em prática e fazer funcionar, efetivamente, qualquer sistema de organização social da produção que combinasse eficiência produtiva e equidade social, eliminando, total ou parcialmente, qualquer vestígio de exploração, isto é, que não fosse baseado num sistema de alocação de recursos e de redistribuição de excedentes caracterizado por um processo decisório autoritário e mesmo antidemocrático, em escala microeconômica. A propriedade coletiva dos meios de produção, que, junto com o “planejamento democrático” da produção, deveria garantir o desaparecimento definitivo de qualquer tipo de exploração social, não apenas deu início a formas disfarçadas (quando não abertas) de exploração dos trabalhadores diretos, como conduziu a um sistema eminentemente caracterizado pelo desperdício de recursos materiais e humanos (e, portanto, a uma maior exploração da sociedade, em seu conjunto) e marcado pelo florescimento de práticas políticas antidemocráticas, em escala macrossocial.

18) A experiência histórica indica que a difusão do desenvolvimento, em suas diversas formas materiais (incluindo suas manifestações culturais), emana sempre dos diversos centros de poder econômico e político. Os benefícios da acumulação revertem inevitavelmente aos mesmos centros, após ter o processo global de exploração cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. 

19) Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema interestatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional que logrem superar a assimetria estrutural da relação centro-periferia: ou as sociedades e nações dominadas conseguem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico ou elas estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a continuarem como meros objetos da História. 

20) No entanto, como todo processo histórico, a relação centro-periferia é eminentemente instável e perfeitamente mutável, tanto em seu contorno como em sua composição, podendo substituir atores, transformar cenários e ocupar novos palcos sociais. A História, absolutamente indeterminada, sempre oferece uma margem de liberdade, tanto aos homens quanto às nações.

 

As proposições alinhadas acima, deliberadamente provocativas, deveriam incitar sua contestação, tanto no plano lógico como no terreno histórico. É, aliás, desejo de seu autor que o presente “elogio da exploração” não seja simplesmente visto como um mero divertissement acadêmico, mas como uma tentativa de engajar a responsabilidade do intelectual na discussão de um tema essencialmente incômodo e altamente propenso a considerações de natureza ideológica. Tanto a crença liberal como a imaginação dialética deveriam se sentir desafiadas a descer na arena conceitual para expor seus próprios argumentos sobre a legitimidade histórica ou a inaceitabilidade moral desta realidade social que constitui a exploração. Pelo menos até aqui, ela parece estar empiricamente validada pelos laboratórios da história.

Deve-se finalmente acrescentar que, o “discurso realista”, de que estas notas constituem um simples exercício, encontra sérias objeções morais a nível da praxis política e social - num contexto nacional ou internacional - razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer, porém, de que a realidade subjacente a ele - ou seja, a estrutura das relações de exploração e de dominação - constitui o fundamento último e a razão imanente que sustentam a atuação dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas.

 

 

Paulo Roberto de Almeida é Mestre em Economia Internacional, Doutor em Ciências Sociais e ex-Professor de Sociologia Política na UnB.

[Montevideo, 15/08/1990]

[Relação de Trabalhos nº 194]

Publicado in Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999).