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segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Hipolito da Costa, o primeiro americanista brasileiro - Paulo Roberto de Almeida

O trabalho abaixo, redigido originalmente em Washington, em 20 de setembro de 2002, com base na leitura anotado do Diário de Minha Viagem para a Filadélfia, de Hipólito José da Costa (publicada pela Academia Brasileira de Letras em 1955), e tinha como seu primeiro título “Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do americanismo”, e se dedicava a mostrar as características pioneiras de primeira obra representativa do americanismo brasileiro. 
Ele foi publicado sob esse título de “Hipólito José da Costa, reporter”, como tal acolhido pelo grande jornalista Alberto Dines, no Observatório da Imprensa (nº 191, 25/09/2002; link: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/al250920021.htm).
Reproduzo-o aqui como homenagem a ambos, Hipólito da Costa, a quem considero o primeiro estadista brasileiro, e Alberto Dines, a quem considero um dos maiores jornalistas brasileiros.
Paulo Roberto de Almeida 


ENVIADO ESPECIALHipólito José da Costa, repórter
Paulo Roberto de Almeida (*)

O francês Alexis de Tocqueville é geralmente considerado como um dos founding fathers da moderna ciência política, assim como dessa vertente especial das ciências sociais (que usualmente adota o método comparativo, mesmo se de forma inconsciente) voltada para o estudo das formações nacionais, no seu caso o "americanismo". Com efeito, seu De la démocratie en Amérique tornou-se um clássico praticamente desde a publicação de sua primeira parte, poucos anos depois de sua viagem exploratória ao novo mundo, em 1831-32, a ponto de suscitar as maiores expectativas quanto à divulgação da segunda parte, vários anos depois. Esse trabalho sobre os fundamentos sociais da igualdade na jovem nação americana granjeou-lhe uma reputação de primeira grandeza, não apenas em sua França natal (onde ele logo galgou os degraus da Academia), mas igualmente nos países anglo-saxônicos.
Poucos sabem, no entanto, que uma geração antes de Tocqueville, Hipólito José da Costa, muito antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio Braziliense, viajou pela costa leste dos Estados Unidos, tendo deixado um pouco conhecido Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799, encontrado inédito na Biblioteca de Évora por Alceu Amoroso Lima e publicado pela Academia Brasileira de Letras, em 1955. Não se tratou, propriamente, de um estudo de especialista, uma vez que o jovem (24 anos) português nascido na Colônia do Sacramento, criado no território do Rio Grande do Sul e formado em Coimbra, viajou a serviço do cortesão dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, futuro ministro dos Negócios Estrangeiros, tendo produzido um relatório específico e detalhado sobre suas observações agrícolas, industriais e botânicas nos Estados Unidos.
Tratou-se, contudo, da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de fato. Não destinado à publicação, mas sumamente adaptado ao formato do ensaismo bem informado, seu Diário poderia ser comparado, sem nenhum deslustro, a uma espécie de Baedecker de alto vôo, um ensaio intelectual que ainda hoje surpreende pela pertinência e acuidade das observações sociológicas, bem como pela atualidade dos seus julgamentos certeiros, a começar pelos hábitos e características da população, pela proliferação de sua "indústria religiosa" e por uma certa "rusticidade" de sua classe dirigente.

"Pai da imprensa"
Recém-formado em Direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses depois, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Grande estadista português da transição para o século 19, dom Rodrigo de Souza Coutinho ostentava uma concepção essencialmente econômica da administração pública, preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas industriais. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões econômicas – inclinação que ele manteve durante toda a sua vida, aliás revelada de maneira cabal nas páginas do seu "Armazém Literário".
Com efeito, a rubrica "Commercio" (geralmente acompanhada das "Artes") vinha logo após a importante seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua carreira jornalística, ele protestava solenemente contra a velha proibição dos estudos de economia política na Universidade de Coimbra ("Os estudos de Economia Política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se aprendam"; cf. Correio Braziliense, janeiro de 1819, vol. XXII, pág. 84, citado por Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957, tomo I, pág. 44).
Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à "espionagem industrial ou tecnológica", numa etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção absoluta como na atualidade.
O futuro "pai da imprensa" brasileira estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido formado em outras matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro "pai da independência", José Bonifácio, freqüentador das academias européias.
Mobilidade nos negócios
Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o México, no final de 1798, ele era, portanto, nada mais do que um recém-formado, alguém que de certa forma completou seu "mestrado" numa missão de trabalho, mais do que na forma de estudos suplementares – virtualmente inexistentes, aliás. As instruções de Linhares eram no sentido de se obter informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira.
Nos Estados Unidos, atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e de prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos finais do século 18.
Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização para tanto ou diploma legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito, nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de "espionagem industrial" pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma "embaixada" voltada para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das nações.
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu "diário de viagem" não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e monetárias.
Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo.
Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano. Como se vê, nada de muito novo em termos de funcionamento do sistema econômico, particularmente no que toca a "infectious greed" (apud e copyrightAlan Greenspan) que não parece ter contaminado apenas recentemente os executivos das empresas americanas.

Gênio "escrevinhador"
Os Estados Unidos do final do século 18 estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta apenas no final do século 19, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o "modo inventivo" americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial.
Ainda que não descritas com tal estilo "sociológico" em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século 19 – devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários "brazilienses".
Lido à distância de mais de dois séculos, não tanto pela sua forma mas pelo conteúdo efetivo, o Diário de Viagem de Hipólito sustenta muito bem a comparação com o bem mais cuidadosamente elaborado ensaio de Tocqueville, este sim feito para expor aos franceses os contornos sociais e políticos do imenso laboratório humano e societal que então constituía a América do Norte. Justamente por não pretender, primariamente, à divulgação, as anotações e observações de Hipólito adquirem um caráter de ensaismo sociológico avant la lettre, possuindo todos os requisitos literários para figurar como obra fundadora do americanismo brasileiro, e quiçá universal. Seu diário é uma mina de boas trouvailles e de desconcertantes antecipações da sociedade americana, numa espécie de "planejamento utópico do futuro" (a expressão pertence ao filósofo da história Reinhart Koselleck) que confirma, também por antecipação, a densidade analítica e o gênio de "escrevinhador" do futuro jornalista (aliás único) do Correio Braziliense.

Recomendação de leitura
Hipólito José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955.
O livro possui uma segunda edição (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974) mas mereceria, de todo modo, ser traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos. Como a Embaixada do Brasil criou, juntamente com as editoras das universidades de Duke e da Carolina do Norte, uma coleção Brasiliana, destinada a facilitar a tradução e a publicação de títulos brasileiros naquele país, trata-se de uma mais que bem-vinda sugestão para inclusão nesse empreendimento editorial conjunto.

(*) Diplomata; URL: <www.pralmeida.org>, e-mail: <pralmeida@mac.com>

terça-feira, 24 de abril de 2012

Os tratados desiguais de 1810: o julgamento de Hipolito da Costa e contemporaneos

Retirado do GuardaMoria, blog do meu amigo e pesquisador de questões aduaneiras e de comércio exterior Paulo Werneck: 



Posted: 23 Apr 2012 06:52 PM PDT
Paulo Werneck

Rubens Ricupero, ao comentar os "tratados desiguais" firmados entre Portugal e a Grã-Bretanha em fevereiro de 1810, assevera que:
Os historiadores brasileiros são unânimes em condenar os tratados, retomando os argumentos de um observador contemporâneo privilegiado, o jornalista Hipólito José da Costa, que acompanhou passo a passo as negociações nas colunas de seu Correio Braziliense, editado em Londres. A análise partia de uma verdade incontestável: não tinha sentido transplantar ao Brasil estipulações decorrentes da peculiar situação de Portugal em relação à Inglaterra pela evidente diferença das condições vigentes na colônia.
Um deles foi o "Tratado de commercio e navegação entre o Principe Regente de Portugal e ElRei do Reino Unido da Grande Bretanha e Irlanda", assinado no Rio de Janeiro aos 18 de fevereiro de 1810 e ratificado pela Carta de Lei do dia 26. 

Crítica aos fundamentos desse tratado encontra-se na edição nº 9 do Correio Braziliense, de fevereiro de 1809, Seção Commercio e Artes, p. 129 a 133. 

Não era um crítica ao tratado, que não existia, mas uma análise das dificuldades de sua elaboração, já em curso, uma vez que o Príncipe Regente tinha concedido, em 7 de setembro de 1808, plenos poderes a D. Rodrigo de Souza Coutinho para ajustar um tratado de aliança e comercio com a Grã-Bretanha. 

Vejamos o artigo do Correio Braziliense:
Extracto dos jornaes de Londres de 8 de Fevereiro. 
"Em uma assemblea publica, que houve a semana passada, onde se ajunctáram os Negociantes interessados no Commercio do Brazil, o Presidente informou a assemblea, de que tanto aqui, como no Brazil, se tinham obtido varios importantes objectos. Os Directores da Companhia do Mar do Sul liberalmente consentîram, em que os Ministros de S. M., no Rio de Janeiro, concedecem licenças da companhia, para a protecçaõ geral do Commercio da America Meredional. O Ministro abolio, aqui, os direitos, que pagavam os productos Portuguezes, guardados em armazéns para exportaçaõ. No Brazil concordou-se em uma nova tarifa a qual reduz concideravelmente a avaluaçaõ das mercadorias Inglezas, sobre a qual se cobravam os direitos de alfandega nos portos do Brazil; e entende-se que este regulamento terá um effeito retrogado. Estava em contemplaçaõ um systema de metter as fazendas em armazens, que seria arranjado, de maneira semelhante ao nosso: assim como se tratava de outras medidas, para pôr n'um pé mui liberal a communicaçaõ commercial com aquelle paiz. Nos estamos persuadidos, que todos estes pontos serîam comprehendidos no tratado, que se diz estar negociando o Lord Strangford com o Príncipe Regente." Alem desta informaçaõ, sabe-se, que na quella assemblea se leo uma copia da memoria apresentada, pela parte da Inglaterra, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, no Brazil, e a resposta deste Ministro, a qual parece ser escripta com mais reserva do que se esperava. 
Um tratado de commercio, entre o Brazil, e a Inglaterra, he uma das mais delicadas emprezas, em que pode entrar a Corte do Brazil; porque o Negociador Braziliense naõ tem precedentes, que o guiem. Os tratados que existîam entre a Inglaterra, e Portugal, éram fundados nos interesses mútuos da exportaçaõ dos artigos Portuguezes, de grande consumo em Inglaterra, taes quaes o vinho, azeite, &c. e na situaçaõ politica da quelle pequeno Reyno, que ameaçado constantemente por seus vizinhos, se vîa obrigado a solicitar a protecçaõ da Inglaterra, ainda á custa de pezados sacrificios. Estas duas razoens céssam agora; porque os productos principaes do Brazil estaõ taõ longe de terem grande consumo em Inglaterra, que saõ nella prohibidos, por causa da competencia em que se acham com as Colônias Britânicas : e quanto á situaçaõ Politica, do Brazil, este immenso território acha-se de maneira isolado pela natureza; que nenhuma potencia da terra lhe pode metter susto; nem ainda causar prejuizos consideráveis; salvo se for a Inglaterra, embaraçando-lhe o Commercio. Donde se segue que, faltando os dous principios (do interesse mutuo e do temor,) que originaram as principaes estipulaçoens dos tratados de commercio, entre Portugal e Inglaterra, naõ podem aquelles servir de norma a este tratado do Brazil. 
Outra difficuldade, em que se deve achar o Negociador Braziliense, he a impossibilidade de prever a vereda, que tomaraõ os differentes ramos de agricultura, ou de manufacturas do Brazil; principalmente se o tratado tiver de existir em força por muitos annos; porque, supponhamos ser um dos artigos deste tratado a admissaõ do papel de Inglaterra, avaluado a tal preço, e pagando tanto de direito, continuando o tratado em vigor por 20 annos: suppunhamos mais, que antes de cinco annos algum genio inventor descobre alguma substancia vegetal, ou mineral, capaz de fazer papel, estabelece uma fabrica no Brazil; esta fabrica deve ficar desde o seu principio arruinada pela importaçaõ do mesmo artigo de Inglaterra, que, segundo o supposto tratado, nem se pode prohibir, nem proporcionar com a fabrica interna; pela addiçaõ de novos direitos da alfandega. Supponhamos outra hypotese (mui provavel) de que varios artigos, que agora se tem de receber da Inglaterra, saõ offerecidos dos Estados Unidos a mais commodo preço: ¿será politico que o Governo Braziliense se constitua agora, na necessidade de naõ aceitar depois aquella vantajosa offerta? 
He logo uma das consideraçoens importantissimas do Negociador Braziliense, a probabilidade, que ha, de que taes, ou taes artigos se possaõ, com o tempo, manufacturar no Brazil, ou importar de paizes d'onde resultem maiores vantagens que da Inglaterra. Até que ponto os homens de talentos, e sciencia politica, que passáram com a Corte para o Brazil estaraõ em circumstancias de conhecer a fundo o estado actual da agricultura, e industria do Brazil, naõ se pertende por hora decidir; mas até aqui he certissimo, que as circumstancias actuaes da insdustria do Brazil eram mui pouco conhecidas em Portugal; e os productos naturaes do paiz totalmente ignorados; de maneira que por mais talentos e perspicacia, que supponha no Negociador Braziliense, se elle naõ tiver a mais profunda experiencia das produçoens do Brazil, e provável caminho, que tomaraõ os differentes ramos de industria, arrisca-se seguramente a lançar os grilhoens áquelle paiz, demaneira, que o reduza a uma se naõ perpetua, ao menos mui duradoira dependencia das naçoens estrangeiras. 
Mas he possível, dir-me-haõ, achar-se entre os grandes Políticos, que fôram para o Brazil, um homem, que, conhecendo a fundo o estado actual da quelle paiz, e sabendo conjecturar, com justeza, a provavel vereda, que levará a insdustria dos Brazilienses, possa comparar os males, que resultam de certas estipulaçoens commerciaes, com o bem que se pode obter das offertas, que Inglaterra fizer para sua compensaçaõ. 
A isto diria eu, que he possível obter de uma naçaõ taes vantagens reciprocas, que se lhe dê a preferencia, a outras naçoens, na importaçaõ de certas mercancias ; mas o pezar com exacçaõ estas vantagens he ponto de grande difficuldade. Quanto á introducçaõ de productos ou manufacturas estrangeiras, em prejuízo da industria nacional, naõ ha vantagens, que lhe sejaõ equivalentes. 
Quando pois aquelle paragrapho, dos jornaes de Londres, annuncia a diminuiçaõ na avaluaçaõ dos preços das mercadorias Inglezas, para o fim de se cobrarem os direitos da alfandega, e igualmente diz, que este regulamento terá um effeito retrogrado ; isto he que comprehenderá as mercadorias, que de Inglaterra fôram para o Brazil, antes dos mesmos regulamentos; naõ pode deixar de trazer á lembrança as circumstancias em que ellas daqui sahîram, o estado em que se achavam as propriedades Portuguezas detidas em Inglaterra, e muitas outras observaçoens, que a seu tempo sahiraõ a publico. 
A inteligencia das Ordens, em Conselho, que a Inglaterra promulgou, sobre o Commercio das naçoens neutraes, e que forma uma das queixas do Governo dos Estados Unidos, he de summa importancia, na formaçaõ deste tratado de Commercio com o Brazil; porque he certissimo, que duas naçoens podem offerecer uma a outra os mesmos artigos de um tratado, perdendo uma, e ganhando a outra. Por ora baste o que fica dicto, mas logo que o tratado sahir á luz do dia, se lhe fará a sua analyse, com aquella franqueza, e imparcialidade, que se deseja sejaõ characteristicas de Correio Braziliense. 
A Inglaterra pode, sem duvida offerecer vantajens ao Brazil, que nenhuma naçaõ da terra poderîa appresentar-lhes. Os Inglezes podem enriquecer-se no Brazil, fazendo felizes os seus habitantes. As sciencias, as artes, a industria, só podem passar ao Brazil da Inglaterra, no estado actual das cousas, e no caso de que os Inglezes trabalhem por communicar aos Brazilienses aquelles bens reaes, de que elles gozaõ no seu paiz, seja a gratidaõ da quelles povos igual aos beneficios, que receberem; mas aquelle Ministro, aquelle Negociador, que consente em contractos leoninos, fazendo-se objecto de escarneo de seus contrarios, merece a execraçaõ da sua Pátria.
Na Coleção das Leis do Brasil de 1808 e 1809 não há nenhuma referência a qualquer redução de tributos em favor das mercadorias inglesas, mas, apenas, duas decisões, a de nº 45, de 18 de outubro de 1808, que permitiu aos comerciantes ingleses o descarregarem suas mercadorias, pagando os direitos de baldeação correntes, para aguardarem o resultado das negociações, e outra, a nº 47, de 2 de novembro do mesmo ano, explicando a anterior, ou melhor, restringindo a aplicação da mesma, de modo a preservar a arrecadação. 

Não havendo modificação da tarifa, ou seja, da alíquota do imposto, a matéria inglesa citada deve se referir à pauta, ou seja, à lista de mercadorias usada pelos fiscais, que determinava o quantum a ser cobrado por mercadoria, por base na avaliação dos preços correntes do mercado. Talvez os comerciantes ingleses tenham negociado com as autoridades aduaneiras e demonstrado, de uma maneira ou de outra, que os preços anteriormente utilizados para a elaboração das pautas estariam muito elevados, resultando assim na redução efetiva dos tributos a serem arrecadados. 

De resto, a avaliação que Hipólito fez ANTES do tratado ter sido negociado e firmado concorda com a avaliação dos historiadores, dois séculos DEPOIS... 

Fontes: 
PORTUGAL. Colecção das Leis do Brasil de 1808. Plenos Poderes de 7 de setembro de 1808. Dá plenos poderes a D. Rodrigo de Souza Coutinho para ajustar um Tratado de Alliança e Commercio com a Gram Bretenha. 
PORTUGAL. Colecção das Leis do Brasil de 1808. Decisão nº 45. Brazil. Em 18 de outubro de 1808. Concede aos negociantes inglezes baldeação das mercadorias que estiverem a bordo dos navios fundeados neste Porto. 
PORTUGAL. Colecção das Leis do Brasil de 1808. Decisão nº 47. Brazil. Em 2 de novembro de 1808. Explica o despacho de baldeação concedidas ás mercadorias inglesas. 
PORTUGAL. Colecção das Leis do Brasil de 1810. Carta de Lei de 26 de fevereiro de 1810. Ratifica o Tratado de commercio e navegação entre o Principe Regente de Portugal e ElRei do Reino Unido da Grande Bretanha e Irlanda assignado no Rio de Janeiro aos 18 deste mez e anno. 
COSTA, Hipólito José. Correio Braziliense, nº 9, fevereiro de 1809, Seção Commercio e Artes, p. 129 a 133. 
RICUPERO, Rubens. O Brasil no Mundo. in COSTA E SILVA, Alberto (org). Crise Colonial e Dependência 1808-1830. Rio de Janeiro: Fundación Mapfre; Objetiva, 2011 [História do Brasil Nação: 1808-2010, v. 1]

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Hipolito da Costa - Matias Molina


HIPÓLITO DA COSTA (1774-1823)

Pelos reis, com limites

Por Matías M. Molina em 10/01/2012 na edição 676
Reproduzido do Valor Econômico, 6/1/2012; intertítulos do OI
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Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça foi o jornalista mais influente do Brasil no período anterior à Independência. Seu jornal, o Correio Braziliense, áspero crítico do governo, contribuiu para a formação da consciência nacional. Vários de seus escritos não perderam atualidade. Como disse Afonso Arinos de Mello Franco, “ainda hoje ficamos admirados com a precisão do julgamento de Hipólito”.
Hipólito nasceu em 25 de março de 1774, na Colônia do Sacramento, então um enclave português às margens do Rio da Prata e que agora forma parte do Uruguai. Estudou em Porto Alegre e se formou em direito e filosofia em Coimbra. O governo português o enviou aos Estados Unidos com a missão de estudar o cultivo de plantas úteis ao Brasil, a mineração e a indústria do país. Dessa viagem, que durou dois anos, resultou a sua filiação à maçonaria e o contato direto com a democracia e a liberdade de expressão, que contribuiriam de maneira decisiva para sua formação política. Em Lisboa, onde chegou em fins de 1800, foi nomeado diretor da Impressão Régia.
Em 1802, viajou a Londres com a missão de adquirir livros para a Biblioteca Pública e material para a Impressão Régia. Fez contato com os maçons ingleses, principalmente o príncipe Augustus Frederick, duque de Sussex, sexto filho do rei George III, irmão do rei William IV e alto cargo da maçonaria britânica. Ele seria seu protetor. Quando retornou a Lisboa, Hipólito foi preso por ser maçom e transferido para a prisão do Santo Ofício. Conseguiu fugir três anos depois, chegando a Londres em 1805 através de Gibraltar.
Fonte independente
Hipólito casou em 1817 com Mary Ann Troughton, inglesa, com a qual teve três filhos. Publicou o Correio Braziliense durante 17 anos. Levou uma vida confortável e tinha outros negócios, além do jornal. Morreu aos 49 anos e foi nomeado cônsul-geral do Brasil nove dias depois de sua morte.
Correio Braziliense, ou “Armazem Literario”, começou a circular em junho de 1808. Foi publicado mensalmente até dezembro de 1822, com um total de 175 edições. Circulava na Inglaterra, onde era lido por comerciantes com interesses no Brasil, em Portugal e, principalmente, no Brasil. Suas páginas se distribuíam por quatro seções: “Política”, que era, de longe a mais importante; “Comércio e artes”; “Literatura e ciências”; “Miscelânea”. Nesta seção eram incluídas as “Reflexões sobre as novidades do mês”, nas quais Hipólito comentava os acontecimentos da atualidade.
Foi o primeiro dos jornais em língua portuguesa publicado em Londres naquele período e, sem dúvida alguma, o mais influente. O Correio foi também o primeiro esforço sistemático de oferecer informações sobre o Brasil aos leitores do exterior, embora não fosse esse seu principal objetivo. Hipólito deu ao jornal o nome de “braziliense” porque era essa, em sua opinião, a designação de quem nasceu no Brasil; “brazilianos” eram os indígenas e “brazileiros”, os portugueses e estrangeiros que aqui moravam.
Hipólito escrevia com clareza e convicção; tentava mostrar que suas opiniões eram fruto da razão e da observação da experiência de outros países, que podia ser aplicada no Brasil. Francisco Adolpho Varnhagen não o considerava um bom escritor: “Não é modelo de estilo ou de linguagem; antes pelo contrário, nesse sentido há muito o que desculpar a um homem que vivia em país estrangeiro”. Mas, para Carlos Rizzini, manejava a pena “com tino e firmeza”; Antonio Candido viu nele um bom mestre do estilo jornalístico.
Ao Correio é atribuída uma importante participação “na queda do absolutismo e no advento das liberdades e instituições civis”, como observa Rizzini. Mas o objetivo inicial do jornal era bem mais modesto. Hipólito, na apresentação do primeiro número, escreveu que, “desejando aclarar os meus compatriotas, sobre os fatos políticos, civis e literários da Europa, empreendi este projeto”, para informar aos leitores no Brasil sobre as melhorias em outros países nas ciências e nas artes e “transmitir a uma nação longínqua e sossegada, na língua que lhes é mais natural e conhecida, os acontecimentos desta parte do mundo”. Hipólito se coloca como um correspondente, para informar ao Brasil do que acontece na Europa. No primeiro volume do Correio, por exemplo, que reúne os sete primeiros números, apenas umas 45 páginas, das aproximadamente 650 de texto publicadas, se referem ao Brasil. Predominam as informações da Guerra Peninsular contra as tropas de Napoleão e as notícias sobre questões portuguesas. Só vários anos depois é que daria mais atenção às questões brasileiras.
Correio foi editado em Londres por não ser possível fazê-lo no Brasil. Conforme ele escreveu: “A dificuldade de publicar estas obras periódicas no Brasil, já pelo entrave da censura prévia, já pelo perigo a que os redatores se exporiam falando livremente das ações dos poderosos, fez cogitar o expediente de imprimir semelhantes obras em países estrangeiros”. Dessa maneira, “pode dizer-se que se estabeleceu a liberdade de imprimir para o Brasil, posto que não no Brasil”.
O primeiro número chegou ao Brasil em outubro de 1808. O transporte era irregular, pois as remessas, “pela incerteza da saída dos paquetes e navios, inutilizam a pontualidade da publicação mensal de um Periódico cujo escopo é unicamente o Brasil: e aonde não pode chegar com regularidade de tempo”. No entanto, era a principal fonte independente de informações disponível no país e certamente causou um forte impacto numa minoria dirigente no Brasil.
Ação “criminosa”
As grandes questões que ele abordou e suas reflexões sobre elas, que mostram um racionalismo raro no Brasil, fazem de Hipólito um escritor atual. Num período em que o monarca tinha poderes absolutos, ele pregava a monarquia constitucional, a segurança jurídica e um sistema de pesos e contrapesos políticos, e alertava sobre os perigos da extrema submissão às opiniões do governo. Temia também as consequências inevitáveis de entregar poderes ilimitados a uma pessoa. “Conceder a um indivíduo, poderes sem restrição, como têm os déspotas chamados governadores no Brasil, e supor que não empregarão esse poder em satisfazer as suas paixões, é supor uma contradição na natureza humana.”
Como alternativa ao poder absoluto do soberano, defendia a necessidade de uma Constituição, o direito do povo, a soberania das cortes – na época, sinônimo de Parlamento. Para reforçar a necessidade de limitar o poder régio, Hipólito lembrou das “excelentes instituições” espanholas, que tinham sido aniquiladas, e mencionou “a fórmula que repetia em Aragão o Juiz do Povo (el Justicia) a El Rey na sua Coroação: 'Nos, que valemos quanto vos, os hacemos nuestro Rey y Señor, con tal que guardeis nuestros fueros, y libertades, que si no, no'“. Isto é, o rei era soberano por delegação do povo, que era igual a ele, e desde que cumprisse o contrato com os súditos.
Sobre a vida política, observou que era “vício de novos políticos, e infelizmente de alguns mais velhos, suporem que na política tudo é permitido. Isto é um erro fatal. A política não é a arte de obrar contra a Justiça; mas sim a ciência de conhecer quando convém usar dos direitos”.
Em relação à ordem econômica, ele estava preocupado com a falta de infraestrutura no Brasil. Pedia “um Conselho de Minas, uma inspeção para abertura de estradas, uma redação de mapa, um exame da navegação de rios, mas nada disto se arranjou”. Insistiu no combate aos monopólios, como o “pau-brasil, sal, tabaco, que sufocavam a indústria, destruíam o espírito de emulação, perpetuavam os abusos”, além de corromper os funcionários do setor público, inclusive ministros. Reclamava que era uma pouca- vergonha que o açúcar fosse exportado em bruto para ver os ingleses refiná-lo e fornecê-lo a outros centros, inclusive as possessões portuguesas.
O ensino foi uma de suas constantes preocupações e lamentava que no governo “não aparece o menor intento de estabelecer universidades, colégios, ou outros estabelecimentos semelhantes; e sem isto é quase impossível que o Estado tenha homens capazes de governar”. Pregou também a mudança da capital para o interior do país.
A questão da escravidão tornou-se uma área de conflito. Nas cortes de Lisboa, que estavam elaborando a primeira Constituição, Portugal, tendo abolido a escravidão, seus delegados queriam estender a medida ao Brasil, enquanto os representantes brasileiros defendiam o trabalho escravo como necessário para a lavoura. José Bonifácio instruiu os representantes brasileiros nas cortes para que pedissem a “igualdade de direitos políticos e civis, quanto o permitisse a diversidade dos costumes e território e das circunstâncias estatísticas” – essa diversidade e essas circunstâncias eram os escravos. Hipólito foi contra a opinião dominante da delegação brasileira e combateu o tráfico de escravos e a escravidão. Dizia que “se a sua abolição repentina seria um absurdo rematado, a sua perpetuação num sistema de liberdade constitucional é uma contradição de tal importância, que uma coisa ou outra deve acabar”. Concluía que os “brazilienses” nunca seriam um povo livre se não se resolvesse a questão da escravatura. Quem se educa em meio a escravos considera o despotismo como algo natural.
Ele defendeu a imigração, para aumentar a população do Brasil e substituir o trabalho escravo pelos braços livres. Mencionava a necessidade de “atrair emigrados de todas as partes da Europa, para o que é necessário assegurar-lhes a liberdade pessoal e o direito de propriedade”, além da segurança pessoal.
Tão importante como todas essas medidas, Hipólito quis despertar a consciência da população em si mesma. “Um povo, para obrar com energia, é necessário que sinta a sua existência política; que tenha voto mais ou menos direto nos negócios da nação. O povo, que não goza isto, facilmente se reduz a um rebanho de carneiros, incapazes de ações grandes; e até de defender a pátria.” Ele insistia em mostrar a necessidade de estabelecer um objetivo comum, livremente definido, para a formação da identidade do país.
Hipólito pregava a liberdade individual, a representação nas cortes, a monarquia constitucional. Mas, alarmado com a inquietação social e com os rumos que tomara a Revolução Francesa, tinha pavor da desordem pública e se opunha a qualquer sistema republicano. Ele era partidário de mudanças profundas e pacíficas. “Desejamos as reformas, mas feitas pelo Governo, e urgimos que as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo”. Isso soa como uma advertência: ou o governo faz as reformas já, ou serão feitas com violência à sua revelia. Era isso que queria evitar.
Essa atitude explica sua áspera reação ante a Revolução de Pernambuco, em 1817. No começo, ele a viu com simpatia e a atribuiu ao descontentamento geral provocado pela “forma de administração militar, e por consequência despótica”, da província. O movimento de revolta ocupou Recife, instituiu um governo provisório e promulgou uma Constituição com base na dos Estados Unidos. Um dos líderes era Domingos José Martins, amigo de Hipólito, também maçom, a quem conhecera em Paris e Londres. Os revolucionários pediram sua ajuda e lhe ofereceram o cargo de ministro plenipotenciário da República junto a sua majestade britânica. Hipólito nunca respondeu e foi mudando de opinião sobre a rebelião, alarmado com a radicalização do movimento e com a proclamação de Pernambuco como Estado independente. Ele temia a fragmentação do país em vários países soberanos, como estava acontecendo nas colônias espanholas. Achou que os revoltosos tinham se excedido, numa ação “criminosa e imprudente”. Muitos foram fuzilados. Entre eles, Domingos José Martins, sem que Hipólito, amigo e companheiro de maçonaria, lamentasse sua morte.
Edição fac-similar
O acordo comercial com a Inglaterra, assinado em 1810, era “indefensável”, escreveu Hipólito. A cláusula de “perpetuidade” dos acordos comprometia o futuro do Brasil e a reciprocidade oferecida pelos ingleses era ilusória. Era um acordo leonino, que eximia os ingleses de serem submetidos à Justiça brasileira e portuguesa; só poderiam ser julgados no Brasil por tribunais ingleses. O acordo, segundo o Correio, colocava obstáculos insuperáveis ao desenvolvimento da agricultura e da indústria. Ao jornal, as cláusulas do acordo pareciam um insulto ao senso comum.
Hipólito foi um paladino da manutenção de um Reino Unido entre Brasil e Portugal, mas com a capital no Rio de Janeiro, não em Lisboa. O Rio seria o centro de decisões de um império que incluía o Brasil, Portugal e as colônias na África e na Ásia. Ele afirmava que o Brasil não estava, no momento, preparado para ser independente. Um dos obstáculos era “o pequeno número de gente instruída, relativamente à população” e outro, que era um país “sem conhecimentos políticos, sem nenhuma prática de formas constitucionais”. Só quando o Brasil se habituasse gradualmente ao regime constitucional e de liberdade poderia ser independente. Mudou de ideia ante a intransigência das cortes de Lisboa e quando estas, para controlar diretamente o país, decidiram mandar tropas ao Brasil, uma medida, ao seu ver, inútil e sem propósito. Na edição de setembro de 1822, o Correio escreveu: “Está enfim decidido que o Brasil vai ser um Estado soberano independente”.
Num regime absolutista, acostumado à vigilância do Santo Ofício e com uma imprensa censurada, o Correio tinha necessariamente que incomodar. Causava “mais perturbações na sociedade que os mesmos franceses causaram com suas pérfidas invasões”, segundo escreveu um jornal concorrente financiado pelo governo. Sua circulação foi proibida em várias ocasiões e houve mandados de apreensão. O juiz do crime do Porto lamentava a influência doCorreio, que continha “princípios e máximas subversivas da ordem social e ofensivas das regras estabelecidas para espalhar a insurreição e introduzir a insubordinação”. Uma ordem régia mandou proibir a circulação doCorreio e “todos os escritos do seu furioso e malvado autor”.
No entanto, o jornal era lido em Portugal e no Brasil. Aparentemente, não houve muito empenho em dificultar sua circulação. Na Bahia, podia ser encontrado na Biblioteca Pública de Salvador. No Rio, “lê-se o Braziliense até no Paço, sem rebuço algum”, escrevia Hipólito. O príncipe-regente, d. João, era um dos leitores mais assíduos.
O embaixador português em Londres tentou repetidas vezes “paralisar esta terrível invenção de um jornal português em Inglaterra”. Abriu um processo contra Hipólito, acusando-o de falso, escandaloso, malicioso e difamatório, mas teve que desistir; tentou também outro processo, igualmente sem resultados, para que fosse expulso do país. Alguns historiadores afirmam que Hipólito se teria nacionalizado inglês para impedir a expulsão, mas o assunto é controvertido. Também há ainda controvérsias a respeito de um subsídio que ele teria recebido para suavizar as críticas ao governo. Na verdade, o custo de editar o Correio era certamente superior à receita das assinaturas. Não se sabe com certeza como o seu editor cobria a diferença. Além do eventual dinheiro da corte do Rio de Janeiro, outras hipóteses aventadas foram a ajuda dos comerciantes portugueses em Londres, o apoio da maçonaria e do duque de Sussex e, ainda mais improvável, do governo britânico.
Em 1821, levantada a censura à imprensa, foram publicados no Brasil jornais, panfletos e folhas avulsas em grandes quantidades. O Correio já não era a única voz independente. Escrito longe do Brasil, perdia atualidade ao concorrer com as publicações locais. Hipólito considerou encerrada a sua missão. Como escreveu no último número, de dezembro de 1822, “os acontecimentos últimos do Brasil fazem desnecessário ao Redator o encarregar-se da tarefa de recolher novidades estrangeiras para aquele país, quando a liberdade de imprensa nele, e as muitas gazetas, que se publicam nas suas principais cidades, escusam este trabalho d'antes tão necessário”.
Varnhagen, talvez o maior admirador da contribuição de Hipólito para a formação da identidade do Brasil, escreveu: “Não cremos que nenhum outro estadista concorresse mais para a formação no Brasil de um império constitucional, do que o ilustre redator do Correio Braziliense. (...) Talvez nunca o Brasil tirou da imprensa mais benefícios do que lhes foram oferecidos nessa publicação”. Segundo Oliveira Lima: “É no Correio que devemos ir buscar o mais seguro esteio de um juízo franco sobre a administração e justiça no Brasil em tempos de d'el-rei Dom João VI”. Sílvio Romero escreveu que Hipólito foi “o jornalista mais notável do Brasil e Portugal no primeiro quartel do século XIX”.
Nelson Werneck Sodré discorda: diz que o Correio apresentava um quadro do Brasil “visto do ângulo da burguesia inglesa.” Se defendia a abertura dos portos e se opunha ao regime de monopólio é porque refletia os interesses britânicos mais que os dos brasileiros. Mas o que diria Sodré se o Correio defendesse os monopólios e o fechamento dos portos? A quais interesses estaria servindo?
O jornalista Fernando Segismundo escreveu nos anos 1950, com base na biografia de Mecenas Dourado, uma curta obra extremamente hostil retratando Hipólito como jornalista venal, antipatriota, corrupto, depravado e colocado a serviço da guerra. Suas acusações são evidentemente exageradas e ele próprio reconheceria, décadas mais tarde, que, quando escreveu, estava sob forte influência do Partido Comunista Brasileiro, ao qual estava filiado, e que “se escrevesse hoje” seria muito mais brando. No entanto, algumas das suas afirmações merecem ser levadas em consideração.
Essas percepções desencontradas podem ser tão reveladoras sobre Hipólito José da Costa e seu jornal como sobre seus próprios autores, que filtram suas opiniões através de posições ideológicas firmemente assumidas. Historiadores nacionalistas tendem a minimizar a influência do Correio; os liberais o consideram uma das pedras fundamentais na construção da nacionalidade.
As dúvidas a respeito das relações e das finanças de Hipólito são razoáveis. No entanto, a influência que o Correioexerceu decorre dos 175 jornais mensais que ele publicou. Mais que outras considerações, é o conteúdo dessa publicação que deve ser analisado. O jornal foi fundamental para explicar a um país que tinha passado três séculos sob o regime colonial e que fora proibido de ter indústrias ou de instalar tipografias, como eram a liberdade individual e os direitos políticos, como funcionava um regime político com Parlamento e uma Constituição. Repetindo Afonso Arinos, “ainda hoje ficamos admirados com a precisão do julgamento de Hipólito”.
Uma bem cuidada edição fac-similar de todos os números do Correio Braziliense, um projeto da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que foi incluída na Coleção Rodolfo Garcia da Biblioteca Nacional, foi editada por Alberto Dines e Isabel Lustosa. O Correio Braziliense está disponível para acesso pela internet por meio da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo.
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]

sábado, 1 de maio de 2010

Istvan Jancso - Um historiador do Brasil

ISTVÁN JANCSÓ (1938-2010)
Um historiador do Brasil
Observatório da Imprensa, 27/4/2010

Lançado na segunda-feira (26/4), no Teatro da Memória, em São Paulo, o livro Um historiador do Brasil – István Jancsó, da Editora Hucitec, traz em depoimento a trajetória intelectual e política deste professor e pesquisador, falecido no dia 23 de março. Nascido na Hungria em 1938, sua vida foi atravessada pelos grandes conflitos do século 20.

Entre os trabalhos publicados por István, encontra-se uma contribuição à história da imprensa brasileira. Seu ensaio (em coautoria com Andréa Slemian) sobre o Correio Braziliense, "Um caso de patriotismo imperial", publicado na edição fac-similar do pioneiro periódico (ver, neste Observatório, o texto na íntegra) analisa como a idéia de Brasil era formulada por Hipólito da Costa desde o início de seu jornal, em 1808, até o encerramento da publicação, no ano da Independência.

István idealizou e coordenava a Biblioteca Brasiliana Mindlin, da USP, em cujo site encontra-se em acesso gratuito a coleção completa e indexada do Correio.

Um historiador do Brasil – István Jancsó, organizado pelos historiadores Marco Morel, Andréa Slemian e André Nicacio Lima, revela a ação e o pensamento de um historiador que viveu de forma intensa e corajosa o período da ditadura pós 1964, na medida em que considerava seu ofício não apenas como emprego, mas sobretudo ligado à ética de uma dimensão cidadã e libertária.

Hipólito da Costa, Correio Braziliense (íntegra)