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quarta-feira, 29 de março de 2023

Jacob Gorender: um livro antigo, mas ainda atual, por Ricardo Musse - Marxismo Sem Utopia (1999) (A Terra é Redonda)

 

Marxismo sem utopia

A Terra é Redonda, 

Por RICARDO MUSSE*

Considerações sobre o livro de Jacob Gorender

Jacob Gorender. Marxismo sem utopia. São Paulo, Ática, 1999, 288 págs.

Sob muitos aspectos, Marxismo sem utopia é um livro notável. Diferentemente do usual na tradição do marxismo local, não busca adaptar as teorias de Marx e de seus seguidores à especificidade brasileira nem destacar as singularidades de nossa formação social (assunto abordado com brilhantismo por Jacob Gorender em O escravismo colonial). Propõe-se nada mais nada menos que atualizar o próprio marxismo. Sintoma de maturidade intelectual (do autor e do marxismo brasileiro), mas também de lucidez diante dos impasses da prática e da teoria depois da derrocada do socialismo do Leste europeu e da ascensão do neoliberalismo.

A flexibilidade, implícita no projeto de revisar as teses marxistas levando em conta a atual situação do mundo, destoa do disseminado dogmatismo de teóricos e militantes de esquerda e não deixa de ser inesperada (apesar de sua trajetória heterodoxa) em um antigo membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro. Tampouco é comum – numa época em que prevalecem expectativas de curto prazo – a atitude de elaborar propostas que assumidamente só poderão ser efetivadas pelas gerações futuras.

Por fim, o leitor haverá de se surpreender com a riqueza enciclopédica do livro. Encontram-se lá sumariados, com clareza, didatismo e uma espantosa capacidade de destacar o essencial: (i) as discussões contemporâneas acerca de temas como os desdobramentos do capitalismo no século XX, (ii) a história da tradição marxista e do “socialismo real”; (iii) a dita globalização e tudo que afeta a atualidade e o futuro do mundo do trabalho; (iv) a situação presente das classes, dos partidos e do Estado, bem como suas mútuas relações; (v) o debate acerca da pertinência da teoria de Marx acerca da extração da mais-valia, da queda tendencial da taxa média de lucro e das crises de superprodução; (vi) a questão da transição e das características da sociedade socialista etc.

A construção enciclopédica do livro nos esclarece sobre a variante do marxismo retomada por Jacob Gorender. A organização do legado de Marx como um sistema aberto, atento às discussões internas nos diversos campos do saber, foi a estratégia utilizada por Friedrich Engels para atualizar o materialismo histórico após a morte de Marx. Nessa versão, denominada “socialismo científico”, ascendeu ao primeiro plano a dicotomia ciência/utopia presente no título e retomada no decorrer do livro.

No que tange ao método, Jacob Gorender está mais próximo de Eduard Bernstein, um discípulo de Engels que, levando ao pé da letra a associação entre marxismo e ciência, não hesitou em adotar como fio a tese de que “Marx desviou-se da disciplina científica e cedeu a propensões utópicas”. A proximidade entre Eduard Bernstein e Jacob Gorender, no entanto, é puramente formal. Como a convergência entre teoria e prática, método e política é ainda apenas um ideal, Jacob Gorender pôde retomar o mote a partir do qual Eduard Bernstein procedeu à revisão do marxismo e, ao mesmo tempo, rejeitar peremptoriamente o reformismo social-democrata preconizado por ele. Mas nem por isso está imune, por exemplo, às críticas metodológicas que György Lukács endereçou a Eduard Bernstein em História e consciência de classe, particularmente à ilusão de que a simples seleção dos fatos relevantes já não contenha uma interpretação.

Para Jacob Gorender, a fonte dos equívocos de Marx e do marxismo, dado fundamental que o impele a revisar essa tradição, seria a constatação de que, ao contrário do que sempre se supôs, “o proletariado é ontologicamente reformista”. Para corroborar o que considera uma evidência, recorre ao artigo “Século Marxista, Século Americano” de Giovanni Arrighi (em A ilusão do desenvolvimento, Vozes) que destaca a cisão do marxismo em movimentos reformistas no centro e revolucionários na semi-periferia do capitalismo.

Entretanto, o que preocupa Giovanni Arrighi não é uma definição sobre o caráter ontológico da classe operária, mas sobretudo o fato de que a desigualdade do sistema interestatal (entre os países do núcleo orgânico e os demais) parece ter determinado a ação do proletariado mais fortemente que o objetivo socialista. Isto é, a classe operária das nações do centro esforça-se por manter a posição privilegiada de seu país, enquanto os trabalhadores da periferia anteviram (equivocadamente) na revolução um meio de alcançar o padrão dos países centrais.

Diante desse dilema não basta propor a substituição da força social preponderante no processo revolucionário, como fez Jacob Gorender ao apostar suas fichas nos assalariados intelectuais (os assim chamados “colarinhos brancos”). A existência de um sistema interestatal hierarquicamente estruturado e imune a alterações tornou-se uma questão incontornável para quem quiser propor modificações no modo de organizar o mundo, sejam marxistas ou não.

*Ricardo Musse é professor no Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Émile Durkheim: Fato social e divisão do trabalho (Ática).

Versão modificada de artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 6 de fevereiro de 2000 [http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0602200012.htm].

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Jacob Gorender, um comunista um pouco mais realista (1923-2013)

Depois do desastre que foi a guerrilha urbana na época do regime militar, Gorender dedicou-se mais às armas da crítica  (inclusive dos seus próprios companheiros) do que à crítica das armas, mas, como vários outros, sempre acreditou que os militantes de esquerda estavam reagindo a uma violência pré-existente, quando foram eles que provocaram as reações extremas dos defensores do regime ao passarem ao ataque indiscriminado.
O que ele escreveu, no posfácio a uma obra que indica vvários equívocos da esquerda armada, simplesmente não corresponde à verdade dos fatos: "Objetivamente, a esquerda não tinha condições sequer mínimas para o enfrentamento pelas armas com a ditadura militar. O que conseguiu fazer, em termos concretos, foi protestar com atos de violência, em resposta à violência terrorista institucionalizada pelos generais."
Não foi assim: a esquerda passou aos ataques antes que os militares se deixassem levar por uma repressão sem controle. 
Os aprendizes de feiticeiro jamais fizeram auto-crítica, e ainda pretendem, mentirosamente, ter lutado pela democracia, uma tremenda desonestidade que a tal "Comissão da Verdade" quer consagrar. Vai terminar sem qualquer credibilidade.
Quanto aos aportes teóricos de Gorender, creio que cabem ressalvas. Como os marxistas brasileiros, a partir de certo momento, deixaram de ler, eles nunca produziram obra teórica nenhuma. Gorender era um intelectual, sem dúvida, mas suas digressões sobre o modo de produção escravista não vão além de uma tentativa de acomodação dos esquemas marxistas à imensa diversidades dos processos históricos. Não existe, obviamente, nenhum modo de produção escravista, mas os marxistas não conseguem se libertar dessa verdadeira camisa-de-força teórica que são os conceitos e materializações históricas de modos de produção, e suas variantes pré- ou não-capitalistas.
Enfim, ele pelo menos lia e pesquisava, a despeito dessas limitações conceituais, o que nem sempre acontece com o pessoalzinho, que fica nos dogmas sem qualquer sentido.
Paulo Roberto de Almeida

Folha de S.Paulo, 11/06/2013

Jacob Gorender, um dos mais reputados intelectuais militantes da esquerda brasileira, morreu nesta terça-feira (11) aos 90 anos. A sua trajetória inclui tanto obras importantes, como "O escravismo colonial", quanto a atuação em organizações de esquerda, chegando a membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Gorender nasceu em Salvador (BA) em 20 de janeiro de 1923, filho de imigrantes judeus russos. Em 1941, entrou para a Faculdade de Direito de Salvador, época em que se aproxima do PCB.
O período de estudante durou pouco: em 1943, ele se voluntaria para a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e embarca para a Segunda Guerra Mundial. Volta da Europa em 1945, quando retoma a militância comunista.
Com o golpe de 1964, passa à clandestinidade. A sua obra mais conhecida é "Combate nas Trevas", considerada referência sobre a luta armada durante a ditadura militar, é baseada nessa experiência, que inclui a fundação PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), em 1968, ano em que deixou o PCB após 26 anos.
Na obra, Gorender conta que ele e os demais integrantes do PCB que se opunham a Luís Carlos Prestes foram expulsos no sexto Congresso do partido, em dezembro de 1967. A mesma resolução que excluiu Gorender também expulsou os militantes Carlos Marighella, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira e Apolônio de Carvalho, entre outros.
Depois disso, Gorender se dedicou à criação do PCBR. A nova organização contava com Apolônio de Carvalho, veterano da Guerra Civil Espanhola, e Mário Alves, desaparecido desde 1970. No mesmo ano, ele acabou preso em São Paulo, período que durou dois anos e foi marcado por sessões de tortura.
Solto, passou a se dedicar mais à vida intelectual, com a publicação de vários livros e artigos, chegando a professor do Instituto de Estudos Avançados da USP.
"Objetivamente, a esquerda não tinha condições sequer mínimas para o enfrentamento pelas armas com a ditadura militar. O que conseguiu fazer, em termos concretos, foi protestar com atos de violência, em resposta à violência terrorista institucionalizada pelos generais", escreveu, no posfácio de "Combate nas Trevas".
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Historiador Jacob Gorender morre aos 90 em São Paulo

Reportagem da Folha informa que professor abraçou o comunismo, lutou na Segunda Guerra e foi preso quando combatia o regime dos militares

Protagonista de uma das trajetórias mais singulares da história recente, o intelectual autodidata, dirigente comunista, preso político e veterano da 2ª Guerra Mundial Jacob Gorender morreu ontem aos 90 anos, em São Paulo.

Foi autor de "O Escravismo Colonial", de 1978, e de "Combate nas Trevas", de 1987, sua obra mais conhecida, um clássico sobre a história da esquerda na ditadura militar.

"Gorender descreveu e questionou práticas problemáticas das organizações da luta armada, como o justiçamento de militantes. Ao abrir esse debate, provocou uma consideração mais complexa sobre as esquerdas", disse o brasilianista James Green, da Universidade Brown.

A presidente Dilma Rousseff, em nota, lamentou a morte "do amigo e companheiro Jacob Gorender", "um pensador do Brasil". A presidente disse ter recebido com "tristeza" a notícia e deixou condolências a seus amigos.

"Nós nos conhecemos presos no Dops, em São Paulo. Ele estava convalescente de torturas e foi conselheiro importante num momento crucial na minha vida", afirmou.

"Gorender tem importância tanto pela trajetória, que acompanha o Brasil desde os anos 1940, quanto por morrer falando, sem medo de uma posição crítica", diz a professora de história da USP Maria Aparecida de Aquino.

FUNDADOR DO PCBR

Gorender nasceu em Salvador em 20 de janeiro de 1923, filho de imigrantes judeus russos. Em 1941 entrou para a Faculdade de Direito de Salvador, época em que se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Ele interrompeu os estudos em 1943 quando, aos 20 anos, se alistou na Força Expedicionária Brasileira. Lutou na Europa em batalhas como a de Monte Castelo, na Itália.

Finda a guerra, mudou-se para o Rio, onde trabalhou em jornais de esquerda e, em 1953, para São Paulo. Dois anos depois, embarcou para Moscou, onde permaneceu até meados dessa década.

O golpe de 1964 pegou o PCB de surpresa e rachou o partido. Gorender foi expulso em 1967. No ano seguinte criou o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), com Apolônio de Carvalho e Mário Alves.

"Há um debate no PCB com três correntes. A do [Luís Carlos] Prestes, de resistência na legalidade; a do [Carlos] Marighella, luta armada estilo foco guerrilheiro; e a de Gorender, Carvalho e Alves, que era a combinação de organização de partido, trabalho de massas e luta armada", disse o sociólogo Emir Sader.

Gorender acabou preso em São Paulo, em 1970. Por não ter participado de nenhuma ação armada, foi condenado a dois anos, mas não se livrou de ser torturado várias vezes.

Companheiro de cela, o jornalista Alípio Freire disse que, uma vez por semana, dava aulas sobre escravidão.

Os livros de história eram levados pela mulher, Idealina, já morta, com quem Gorender teve uma filha, Ethel.

Libertado, trabalhou como tradutor e passou a escrever.

"Foi um grande dirigente político e um grande intelectual", afirmou Sader.

(Fabiano Maisonnave / Folha de S.Paulo)

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3. Autodidata, deixou 2 clássicos da historiografia brasileira

Em texto análise, Mauricio Puls escreve sobre a obra do professor Jacob Gorender

Jacob Gorender (1923-2013) deixou duas contribuições fundamentais à historiografia brasileira. Lançado em 1978, sete anos após sua saída do presídio Tiradentes, "O Escravismo Colonial" abriu novo caminho para a interpretação do período colonial.

Distanciando-se das concepções dominantes, que tratavam o escravismo como uma modalidade de capitalismo atrasado (como Caio Prado Jr.) ou de feudalismo incompleto (Alberto Passos Guimarães), Gorender passou a considerá-lo como um modo de produção autônomo.

Com isso, ele permitiu uma compreensão mais profunda de algumas de suas características --como a dinâmica da população escrava-- e dissolveu mitos que ainda persistiam na época --como a impossibilidade do emprego de escravos na pecuária.

A segunda grande obra de Gorender foi "Combate nas Trevas". Publicada em 1987, tornou-se rapidamente uma das principais fontes de referência sobre a luta armada no Brasil. Sua imparcialidade como historiador era atestada inclusive por expoentes da própria ditadura militar. O ex-ministro Jarbas Passarinho sempre o considerou um "historiador honesto", a "quem leio sempre com o cuidado de não me deixar convencer".

O último grande estudo de Gorender foi "Marxismo sem Utopia" (1999), no qual defendia a necessidade de uma atualização do marxismo. O livro rendeu ao autor, no ano seguinte, o Troféu Juca Pato de "Intelectual do Ano".

Tendo dedicado sua vida à militância política, Gorender não conseguiu concluir sua formação acadêmica, o que dificultou a absorção de seus trabalhos pela academia. Começou a estudar direito em 1941, mas interrompeu o curso em 1943 para se alistar voluntariamente na Força Expedicionária Brasileira.

Só em 1994 ele recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal da Bahia. De 1994 a 1996 foi professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Ainda em 1996, recebeu o título de especialista de notório saber da USP, o que lhe permitiu integrar bancas de mestrado e doutorado e lecionar na pós-graduação da mesma universidade.


(Mauricio Puls/Folha de S.Paulo)