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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Diplomacia por Tweets, entrevista completa ao OESP - Paulo Roberto de Almeida

Esta é a versão quase completa, ou pelo menos transcrita – com pequenos problemas de transposição da versão oral para a versão escrita – da entrevista que concedi ao jornalista José Fucs, do jornal O Estado de S. Paulo, que publicou apenas uma pequena parte na sua versão impressa.


‘Fazer diplomacia pelo Twitter é errado’, diz embaixador
Diplomata critica a política externa bolsolavista e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fala dos bastidores do Itamaraty e diz que a reação do embaixador da China às críticas contra conduta do país na pandemia é “indefensável”
Entrevista com Paulo Roberto de Almeida
José Fucs, O Estado de S.Paulo
20 de abril de 2020 | 05h00


O embaixador Paulo Roberto de Almeida, de 70 anos, é um contestador nato. Quando discorda da política externa e das orientações do ministro das Relações Exteriores da hora, não costuma fazer segredo de suas divergências. Suas críticas lhe custaram o ostracismo tanto nos governos do PT, por se opor à postura “bolivariana” do Itamaraty, quanto no de Bolsonaro, por suas investidas contra o ministro Ernesto Araújo e as posições “olavistas” adotadas pela diplomacia brasileira na atual gestão.
Em represália à sua conduta, está relegado a uma função protocolar no arquivo, ao lado de estagiários e funcionários terceirizados, perdeu a vaga no estacionamento interno do órgão e teve até o salário descontado por alegadas faltas e atrasos ao trabalho em 2019. Em março, depois de ver indeferidas as suas justificativas de que estava em eventos oficiais e em atividades acadêmicas, entrou com um processo na Justiça contra o Itamaraty por “assédio moral” e pela “perseguição” de que afirma ser alvo.
“Sempre contestei chefes, com base no meu conhecimento técnico, e procurei fazer da autoridade do argumento um instrumento maior do que o argumento da autoridade”, diz. “Não por mero ‘contrarianismo’, por recusar tudo que os outros propõem, mas por acreditar que qualquer política externa deve ser analisada em seus fundamentos, no seu mérito, no custo/benefício e nos resultados efetivos oferecidos ao Brasil. Como eles não podem me punir por expressão de opinião, ficam procurando pequenas coisas para me prejudicar.”
Nesta entrevista ao Estado, Almeida revela o que está acontecendo nos bastidores do Itamaraty, fala sobre a troca de farpas do embaixador da China, Yang Wanming, com o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirma que “fazer diplomacia pelo Twitter é errado” e ironiza a influência “nefasta” do assessor internacional na Presidência, Filipe Martins, e do deputado Eduardo Bolsonaro na política externa do País. Segundo ele, por causa da rejeição ao presidente Jair Bolsonaro no exterior, a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e o acordo Mercosul-União Europeia não deverão sair do papel. Em sua visão, “a geopolítica internacional vai mudar depois do coronavírus” e "a China sairá mais forte que os Estados Unidos da pandemia”.

No governo Bolsonaro, houve uma enorme perda de inteligência na ação diplomática do País.

Como está o Itamaraty hoje, sob o comando do ministro Ernesto Araújo?
O Itamaraty vem sendo conspurcado. Desde a sua indicação ao cargo, logo depois das eleições, o Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas, de termos aderido à agenda do lulopetismo. Foi tão agressivo que o (ex-embaixador Rubens) Ricupero se levantou imediatamente em defesa da Itamaraty e virou seu inimigo número 1. Ele promoveu uma guilhotina geracional, demitindo os nove secretários que chefiavam as diferentes áreas do Itamaraty, todos embaixadores com experiência em dois, três postos no exterior, sem oferecer nada em troca. Foram todos demitidos sumariamente, por telefone. Esse extermínio em massa, com tons de humilhação, causou uma comoção muito grande, porque foi um tremendo desrespeito. Ele eliminou todos os sêniores e designou ministros de segunda classe para todas as sete novas secretarias criadas no atual governo, com exceção de um embaixador que já era subsecretário de Economia e foi deslocado para a área de América do Sul.

Qual foi a reação do corpo do Itamaraty a essa mudança?
O Itamaraty é meio autista. Eles não são nem de esquerda nem de direita. São corporativistas, carreiristas e oportunistas. Todo mundo foca primeiro no seu interesse pessoal, na sua promoção, na sua remoção, no seu posto, na sua chefia. As pessoas se dobram, são submissas. Atendem a dois princípios que eu nunca atendi: hierarquia e disciplina. Ou seja, para eles, a chefia tem sempre razão. Eu sempre me revoltei contra isso. Sempre fiz da autoridade do argumento um instrumento maior do que o argumento da autoridade. Sempre contestei chefes, o que me causou alguns problemas na vida, mas com base no meu conhecimento técnico em algumas questões. Não por mero “contrarianismo”, por recusar tudo que os outros propõem, mas por acreditar que qualquer política externa deve ser analisada em seus fundamentos, no seu mérito, no custo/benefício e nos resultados efetivos oferecidos ao Brasil. Como costumo dizer, quando saio para trabalhar não deixo o cérebro em casa nem o deposito na portaria quando entro no trabalho. 

Como essa situação está afetando a diplomacia brasileira?
Houve uma enorme perda de inteligência na ação diplomática, uma grande diminuição da estatura diplomática do País, porque o Ernesto substituiu embaixadores experientes por jovens recém-promovidos a ministros de segunda classe. Agora, é claro, todos já foram promovidos a ministros de primeira classe, mas nunca exerceram chefias de posto. Sabem menos que os subordinados. Isso diminui muito a capacidade do Itamaraty de refletir e de ter diálogo com legisladores, altos funcionários e autoridades no exterior. É uma perda enorme de capital humano, no qual o País investiu muito ao longo do tempo. Esses embaixadores designados pelo Ernesto Araújo, assim como acontecia na época do Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores de 2003 a 2011) não têm nenhuma autonomia. Têm de cumprir exatamente as determinações de Brasília.

O Ernesto Araújo era um burocrata comum que aderiu ao olavobolsonarismo por oportunismo.

Como é a relação do ministro Ernesto Araújo com o corpo de diplomatas do Itamaraty?
Não há nenhuma interação do Ernesto com os secretários e os chefes de departamento em qualquer assunto. O secretário-geral é o único que despacha com o ministro. O gabinete é um bunker fechado. Ele só faz coisas com o (deputado federal) Eduardo Bolsonaro (presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara) e o (assessor internacional da Presidência) Filipe Martins. No dia 2 de janeiro do ano passado, na cerimônia de posse, o discurso do (ex-ministro) Aloysio Nunes foi aplaudido de pé, quando ele defendeu as posturas do Itamaraty frente à previsão de que tudo mudaria. O Ernesto foi aplaudido apenas de forma protocolar, inclusive porque fez um discurso estranho, com citações em latim, grego, alemão e toda uma filosofia recheada com menções a Raul Seixas e Nietzsche. No final do ano passado, aconteceu algo parecido, na cerimônia de promoção promovida pelo Itamaraty. O mais antigo das promoções, que foi promovido a embaixador, falou em nome de todos os 10 ou 12 diplomatas promovidos para diferentes cargos. Fez um discurso puramente burocrático, mas foi intensamente aplaudido. Depois, falou o Ernesto, que foi aplaudido muito parcamente. Ficou evidente que a Casa estava lhe enviando um sinal de reprovação. Ele deve ter sentido muita raiva. Por isso, está recrudescendo nesta questão da intimidação dos diplomatas que não rezam pela sua cartilha.

Por suas críticas à atual gestão do Itamaraty, o sr. foi designado para uma função protocolar e tem sofrido punições administrativas por causa de faltas e atrasos. Há outros diplomatas na mesma situação?
Nenhum outro embaixador tem sido visado e controlado desta forma. Há claramente uma ação discriminatória contra mim, como uma forma de intimidar os demais diplomatas, para que eles não ousem fazer críticas. Agora, você tem outros diplomatas sem lotação ou com lotação meramente formal. Tem uma sala de embaixadores, que chamo de Parque dos Dinossauros, que antes era lá no Anexo 1, aquele prédio de oito andares atrás do Palácio do Itamaraty, e agora foi deslocada para o Anexo 2, o chamado Bolo de Noiva, na qual eles costumam ficar. Há dois diplomatas que estavam lotados diretamente na Secretaria de Administração e tinham, portanto, suas faltas abonadas automaticamente ou não precisavam cumprir as oito horas diárias de trabalho. Há também diplomatas não lotados e que, portanto, não precisam se submeter à catraca eletrônica ou à contagem de horas de trabalho. Alguns já se afastaram, conseguiram emprego em outros lugares da administração. Tem gente que se aposentou e outros conseguiram emprego em representações dos Estados em Brasília ou um estágio na ESG (Escola Superior de Guerra), para ter ausência justificada.

Como o sr. vê a ligação do ministro Ernesto Araújo com o escritor Olavo de Carvalho, que o teria indicado para o cargo?
O Ernesto Araújo era um burocrata comum, talvez fundamentalista religioso ou algo assim, que viu subir a onda bolsonarista e grudou nela. Ele aderiu ao olavobolsonarismo por oportunismo, hipocritamente. Ainda que pudesse concordar com algumas posições do Olavo de Carvalho, como o anticomunismo, porque é filho de um eminente personagem da ditadura (o ex-Procurador-Geral da República Henrique Fonseca de Araújo), de direita e anticomunista, ele se atinha às diretrizes principais da Casa. Tanto que sua tese para ser promovido a ministro, na qual abordava o Mercosul, está dentro da filosofia desenvolvimentista, cepalista (referência à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) do Itamaraty. Nada parecia indicar que ele aderiria a uma ideologia de direita, antiglobalista, que vem daqueles direitistas americanos que acham que a ONU e as organizações internacionais são o diabo, que o mundo é dominado pelas grandes corporações e que o (megainvestidor e filantropo) George Soros e a esquerda querem acabar com a soberania das nações e estão à frente de uma conspiração para controlar o planeta. Isso é ridículo. O Olavo de Carvalho grudou nessas ideias malucas e o Ernesto Araújo, para se qualificar, também. Na campanha eleitoral, em 2018, ele criou anonimamente um blog chamado Metapolítica 17, no qual ele falava até da China maoísta, que não existe há 40 anos, para reforçar a sua ligação com o Olavo e se credenciar ao cargo.

O Ernesto até tentou cumprir a agenda olavista, mas os militares, o agronegócio, os industriais e os mais sensatos não deixaram

Recentemente, o sr. comentou em seu blog Diplomatizzando uma publicação do escritor Olavo de Carvalho nas redes sociais, na qual ele chamou o ministro Ernesto Araújo de “prepotente” e “intolerante”, por não ter agido para evitar que o Brasil se tornasse “um protetorado chinês”. Como o sr. analisa esse episódio? Houve um rompimento entre eles?
Sim e não. Isso aconteceu, provavelmente, porque o Ernesto não pode fazer aquilo que o Olavo quer que ele faça. O Olavo quer saber se o Ernesto Araújo está cumprindo ou não as ordens dele, que são a adesão ao Ocidente, ao Trump, aos Estados Unidos, a Israel, e uma agressividade contra os países islâmicos e contra a China, especificamente. O Ernesto até tentou cumprir a agenda olavista, mas os militares, o agronegócio, a (ministra) Tereza Cristina (da Agricultura), os industriais e os mais sensatos não deixaram. O Olavo gostaria que a política externa fosse mais ideológica, mas nem a Casa se dispõe a isso. Agora, ele nunca falou uma palavra contra o Olavo. Há pouco tempo, numa entrevista, ele se esquivou de responder uma pergunta sobre a pandemia, embora o Olavo partilhe da visão da direita americana de que você tem um vírus chinês, de que o Partido Comunista Chinês é responsável pela pandemia e de que se deve isolar a China e impor sanções contra o país. Antes, já haviam perguntado ao Ernesto se a terra é plana, como o Olavo insinuou, e ele falou: “Para mim, a terra é redonda”. Ou seja, ele está procurando se dissociar do Olavo sem dizer isso.

Da mesma forma que o sr. critica hoje a influência ideológica na diplomacia brasileira, o sr. também fazia criticava relação à política externa praticada nos governos do PT. Qual a diferença entre o que acontecia nas gestões do PT e o que acontece agora na política externa e no Itamaraty?
Sob o lulopetismo, houve aquele famoso discurso do Celso Amorim em 2003 em que ele dizia que era preciso vestir a camisa do governo. O Celso Amorim aderiu totalmente, fez coisas clandestinas, em acordo com o (então assessor internacional da Presidência) Marco Aurélio Garcia, em relação a Venezuela, Cuba, Honduras, Bolívia, mas era um grande diplomata. Além dele, talvez uns 15% ou 20% do Itamaraty tenham realmente aderido às ideias do governo. Todo o resto era puro Itamaraty: desenvolvimentismo, cepalianismo, unctadianismo (referência à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), multilateralismo, regionalismo e antiamericanismo moderado. Agora, poucos são bolsonaristas ou olavistas, porque é uma vergonha. Ninguém cultiva o olavismo, o antiambientalismo, o anticomercialismo o nacionalismo exacerbado. Todas essas invenções estapafúrdias do Olavo de Carvalho absorvidas pelo Ernesto Araújo, pelo Felipe Martins, pelo Eduardo Bolsonaro e pelo próprio presidente são tão absurdas que é impossível para um diplomata normal, tenha ele uma postura de esquerda, de direita ou neutra, ser a favor do que foi anunciado e do que vem sendo praticado na diplomacia brasileira. Hoje, o olavobolsonarismo afeta apenas a superfície, só o gabinete. O corpo do Itamaraty continua produzindo coisas boas, mas quando elas vão para o gabinete são transformadas em votação pró-americana contra Cuba, em apoio ao plano de paz para a Palestina, em posições contra a ideologia de gênero, contra o meio ambiente. Essa é a grande diferença.

Como nos governos do PT, quando o assessor internacional da presidência, Marco Aurélio Garcia, exercia uma grande influência na política externa do governo, o governo Bolsonaro também tem um assessor internacional fora da estrutura do Itamaraty. Como o sr. vê a ação do Filipe Martins, na política externa?
O Filipe Martins é uma influência nefasta sob todas as hipóteses. É um olavista fanático e conseguiu ser designado contra a vontade dos militares, que não o queriam no governo. Nem o (general Hamilton) Mourão (vice-presidente), nem o (general Augusto) Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional) nem o (general Eduardo) Villas Bôas (ex-comandante do Exército) queriam esse “garoto”, como eles o chamavam, sem experiência, lá. Mesmo assim, ele conseguiu pelo Olavo e sobretudo pelo Eduardo Bolsonaro, a quem ele é muito ligado, não apenas se firmar, mas ainda colocar o Ernesto Araújo como chanceler. O Ernesto Araújo dependeu totalmente do Filipe Martins e do Eduardo Bolsonaro, que eram a verdadeira ponte com o Olavo de Carvalho para ser escolhido para o Itamaraty e do Nestor Foster (hoje embaixador em Washington) para levá-lo ao Olavo de Carvalho, na Virgínia. Embora tenha um cargo equivalente, o Filipe Martins não tem a mesma proeminência do Marco Aurélio, que foi durante 20 anos secretário de Assuntos Internacionais do PT, amigo fiel dos castristas cubanos, a quem prestou serviços caninamente pelo Foro de São Paulo, do qual ele era um dos coordenadores. O negócio dele era América Latina. Ele tinha uma dimensão muito maior e muito mais leitura e mais abertura do que o Filipe Martins, que é um júnior, um Robespirralho, como costumam chamá-lo por aí.  

O Brasil não é mais prioridade para a China enviar equipamentos para enfrentar o coronavírus

Em meio à crise do coronavírus, o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, fizeram críticas à China pelas redes sociais e acabaram gerando uma forte reação do embaixador chinês no País, Yang Wanming. Como o sr. viu os dois episódios? Que efeitos isso pode ter nas relações do Brasil com a China?
Acho que são duas coisas diferentes. O Eduardo Bolsonaro reproduziu um post que apontava o Partido Comunista Chinês como culpado pela disseminação do vírus. Ele provocou uma celeuma e não quis se retratar. Depois da resposta do embaixador chinês pelo Twitter, o Ernesto Araújo soltou uma nota censurando o embaixador que foi muito ruim. Deve ter sido ditada pelo Filipe Martins, pelo próprio Eduardo Bolsonaro. A coisa ficou tão feia que o pai percebeu e fez aquela ligação para o Xi Jinping e teoricamente acalmou a coisa. Aí, do nada, surgiu o Weintraub e fez aquela loucura, que foi muito mais grave. Pegou os personagens da revistinha do Maurício de Souza, a Turma da Mônica, que circula aos milhões na China, e ironizou os chineses de forma até preconceituosa. Aí, sim, o embaixador exigiu desculpas, mas nem o Planalto nem o Itamaraty se pronunciaram ainda. O próprio Weintraub deu uma desculpa esfarrapada, provocadora, inclusive, falando que se estiver errado dirá que é um imbecil. Recentemente, o ministro-conselheiro da China, Qu Yuhui, apareceu adotando um tom conciliador. Ele chamou de irresponsável o Eduardo Bolsonaro, mas disse que o episódio não vai impedir a cooperação, as boas relações entre os dois países.  Aparentemente vão deixar mesmo a coisa acalmar e continuar fazendo negócios com o Brasil normalmente. Só que, agora, o Brasil não é mais prioridade para envio de equipamentos de segurança para enfrentar o coronavírus. Se não eles teriam atendido o (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta rapidamente, mas isso não aconteceu. Embora o setor privado responda por mais de 65% do PIB (Produto Interno Bruto) na China, talvez o governo intervenha em algumas coisas, como em atender os Estados Unidos, Itália, Espanha, para demonstrar boa vontade, deixando Brasil como segunda ou terceira prioridade. 

Como o sr. avalia as reações do embaixador chinês aos posts do Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub no Twitter?
Achei muito ruim aquela reação do embaixador chinês, totalmente antidiplomática. Fazer diplomacia pelo Twitter é errado. Os governos expedem notas ou falam oficiosamente quando querem se pronunciar. Ninguém proclama abertamente discordâncias. Isso que o embaixador da China fez não é um comportamento de diplomata. Foi realmente fora da curva diplomática, totalmente despropositado. Ainda que o embaixador quisesse reagir nunca poderia ter feito daquela forma, naquele tom, que é indefensável, dizendo que o Eduardo Bolsonaro havia “contraído vírus mental”. É claro que os chineses podem comprar soja e carne dos Estados Unidos, mas eles dependem muito do Brasil, do agronegócio, de minérios, e outras coisas. Tem todo o interesse de preservar boas relações com o Brasil.

O sr. acredita que o embaixador chinês agiu por conta própria ou teve o aval do Pequim?
Acredito que ele agiu por conta própria, mas Pequim provavelmente não se opôs a que ele reclamasse da família Bolsonaro. Talvez o embaixador tenha procurado ganhar alguns pontos em Pequim ao confrontar os malucos daqui. Pequim sabe que o governo Bolsonaro é nefasto para a China, para bons negócios. Então o que o embaixador fez é algo não veio nem da chancelaria nem foi uma manifestação oficial. Foi um tweet que não vai ficar nas notas diplomáticas. Mas os chineses são muito pragmáticos. Eles separam o que é gente racional no Brasil, a ministra da Agricultura, o ministro da Saúde, todos os setores de interesse deles, e a família Bolsonaro, que eles sabem que é um horror. Eles não perdoam o Bolsonaro desde a viagem a Taiwan, em fevereiro de 2018. Então eles querem dar uma sinalização muito forte de que a família tem que se corrigir se não o Brasil vai ser prejudicado. A China é uma ditadura orwelliana, mas não quer exportar o seu regime político. Ela quer ficar rica, fazer negócios, e apesar do erro inicial em relação ao coronavírus, quando eles reprimiram e censuraram as informações, tem um know-how essencial, além de oferecer equipamentos e recursos humanos para outros países. Ou seja, a gente não pode hostilizar a China.

A ONU, é verdade, tornou-se um grande dinossauro ao longo dos anos

O sr. faz duras críticas à política externa atual, mas não é natural que com a ascensão de um governo de direita, que estava afastada do poder há décadas, tenha havido uma guinada na política externa, como aconteceu quando o Lula assumiu a Presidência em 2003?
Eu o desafio a me dizer qual é a política externa deste governo. Não há nenhum documento, nenhum statement do presidente, do chanceler ou de qualquer outra fonte neste sentido. Existem slogans, instintos proclamados, invectivas. Não há política externa nova. O que há é um amálgama de más ideias. O Ernesto Araújo, que tem algumas ideias, que eram as do mainstream do Itamaraty, aderiu a um amálgama mal concebido de instintos primitivos que estão guiando ações da política externa, sem doutrina, sem fundamento, sem teoria, sem nada. Claro que a nossa tradição do Itamaraty, que é mais ou menos progressista, avançada, politicamente correta, se encaixa um pouco nisso, na social democracia, de um liberalismo social como dizia o (filósofo José Guilherme) Merquior, no comércio internacional, na ajuda aos pobres. Você nunca teve aqui liberais puros. O próprio Roberto Campos, que nunca foi um liberal de origem, foi o homem que comandou a maior estatização da história brasileira no regime militar. Eles têm instintos primitivos da direita anticomunista como se o comunismo fosse um problema hoje. Não é. Esse pessoal é um retrocesso absoluto nas ideias. Aliás eles não têm ideias, tem instintos anticomunistas, religiosos, pró-americanos ou pró-Trump, anti-China, pró-Israel, que não têm nada a ver com a postura tradicional do Brasil, não têm nada a ver com o que a gente defende que são os nossos interesses nacionais. Tanto que os militares, o agronegócio e outros bloqueiam todas essas bobagens.

O sr. critica a posição antiglobalista do atual governo, mas quem a defende diz que ela se baseia na visão de que instituições multilaterais, como a ONU e até a OMS (Organização Mundial de Saúde), muitas vezes se colocam acima dos interesses dos países e têm forte viés de esquerda. Na ONU, por exemplo, muitos países têm regimes autoritários, são governados por ditaduras, e acabam aprovando as propostas mais estapafúrdias. Faz sentido isso?
É importante fazer uma distinção importante: as organizações internacionais não são supranacionais. Elas são intergovernamentais. Elas dependem em tudo e por tudo do acordo dos países. Então, todas essas resoluções aprovadas por maioria de 170, 180 membros do Terceiro Mundo, contra os Estados Unidos, contra Israel, contra alguns poucos aliados americanos, como o Japão e a Grã-Bretanha, não têm nenhuma função executiva. Se forem esquecidas na gaveta não vai acontecer nada. Todas essas bobagens que são aprovadas na Assembleia Geral não têm nenhum efeito prático, porque o Conselho de Segurança não vai implementar. Agora, você tem a burocracia desses órgãos internacionais. A ONU, é verdade, tornou-se um grande dinossauro ao longo dos anos. O General De Gaulle chamava a ONU de Le Grand Machin (a grande geringonça), porque havia se transformado num dinossauro mesmo que existia pela sua própria sobrevivência burocrática. Metade da agenda da ONU vem dos países e a outra metade vem da burocracia, que faz aquilo para se multiplicar e para justificar o seu trabalho. Os Estados Unidos da era Reagan saíram da Unesco pela primeira vez porque ela estava dominada por um africano só apoiava projetos esquerdistas e gastava 75% do seu orçamento em Paris, realizando seminários, pagando passagem para todo mundo, diárias.  Agora, você tem também organizações como o Clube de Paris ou Bretton Woods, que não são “assembleísticas”, como a ONU e outras agências públicas. São órgãos por ações. Quem domina o capital domina a política. Infelizmente no mundo, você tem crises de dívida, crises fiscais e outros problemas econômicos e tem de apelar a quem tem dinheiro, como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial, os bancos multilaterais e o Clube de Paris.

Um exemplo que é muito usado pelo antiglobalistas é a União Europeia e o poder exercido pela burocracia de Bruxelas sobre os países-membros.
Esse globalismo na Europa é mais avançado pela supranacionalidade, que não existe em nenhum outro lugar. Como eu disse há pouco, nenhuma entidade internacional é supranacional. Todas são intergovernamentais e dependem da vontade dos países. A única entidade supranacional é a Comissão de Bruxelas, que tomou uma rasteira do Parlamento. Havia um projeto de Constituição Europeia que o Giscard d’Estaing (ex-presidente francês) formulou e criaria um presidente europeu, um federalismo na Europa. Queriam enfiar isso pela guela dos europeus, mas a Holanda e a França rejeitaram e o projeto acabou sendo deixado de lado. Depois, outro projeto mais ameno acabou sendo adotado pela via do Tratado de Lisboa. O Parlamento Europeu também passou a controlar mais o comissariado. Hoje, os comissários têm de ser aprovados pelo Parlamento, que aprova o orçamento e dá palpite na União Europeia. Foi contra essa supranacionalidade que se revoltaram ingleses, poloneses, húngaros, italianos e outros, por diferentes razões. Isso explica essa ascensão do nacionalismo nos Estados Unidos com o Trump, porque tanto o Clinton quanto o Bush e Obama (ex-presidentes americanos) eram internacionalistas e nunca tentaram sabotar os organismos internacionais, exceto [o Bush] ao ignorar o Conselho de Segurança na invasão do Iraque. Esse nacionalismo explícito do (Matteo) Salvini (ex-vice-primeiro-ministro e ex-ministro do Interior da Itália), do (Viktor) Orban (primeiro-ministro da Hungria), dos poloneses, de alguns ingleses e do Trump, é uma coisa que encantou alguns intelectuais que ficam falando contra o globalismo. Agora, nunca vi nenhum deles provar que o globalismo interfere na soberania, retira poderes dos estados nacionais. Aonde está esse complô contra a soberania nacional de que falam os antiglobalistas? Isso não se traduz em nenhuma proposta de trabalho para reduzir o poder dos governos nacionais.

O Itamaraty é terceiromundista, antiamericano, ainda que moderadamente, e desenvolvimentista

Acredito que boa parte das críticas às organizações multilaterais se deve às posturas e resoluções terceiromundistas, que o Brasil muitas vezes apoiou, como no caso da condenação do sionismo como forma de racismo, em 1975, em vez de se alinhar com a visão dos países desenvolvidos. Por que o Brasil não pode seguir um novo caminho neste sentido?
O Brasil, é verdade, votou na maior parte das vezes com o Terceiro Mundo, com a maioria, que é um pouco a orientação do Itamaraty, porque é um pouco o direito internacional, mas sem nenhum efeito prático. O que vale para todos os efeitos são as decisões do Conselho de Segurança. Uma coisa é o direito internacional que a gente sempre defendia enfaticamente, e parou de defender, desde Rui Barbosa, que proclamou a igualdade soberana das nações em 1907, de Oswaldo Aranha, dos vários juristas da diplomacia brasileira, como Raul Fernandes, Vicente Rao, Hermes Lima, Santiago Dantas, e que se manteve até o Celso Lafer, o Fernando Henrique Cardoso. Depois houve uma certa acomodação na era lulopetista, com teses desenvolvimentistas, e agora se acomodou novamente, dentro das orientações antiglobalistas do governo Bolsonaro. Outra coisa são as adequações que você tem de fazer por realismo puro à situação do País em acordos econômicos, comerciais, de cooperação, resoluções sobre transferência de tecnologia, que têm o lado utópico dos países em desenvolvimento na ONU, Unesco, na própria FAO, às vezes, e outras entidades. O que conta são as decisões do Conselho de Segurança, como as sanções contra o antigo apartheid na África do Sul, que você tem que obedecer. A defesa do direito internacional, que a gente agora parou de

Agora, essa tradição diplomática do Itamaraty de que o sr. fala também é passível de críticas. De repente, ela pode ser revista e o Brasil adotar uma nova postura em sua política externa, respeitando o direito internacional. Isso não é possível?
O Itamaraty realmente é terceiromundista, antiamericano, ainda que moderadamente, e desenvolvimentista. O (Fernando) Collor (senador e ex-presidente) procurou mudar isso, ao conferir um perfil mais liberal à política externa e chocou muita gente no Itamaraty. Até o Sarney nós éramos perfeitamente terceiro-mundistas. Aí o Collor veio com a famosa frase: “Nós não queremos mais ser o primeiro dos subdesenvolvidos, queremos ser o último dos desenvolvidos.” Ele acabou com todas as teses desenvolvimentistas do Itamaraty, aceitou patentes farmacêuticas, mudou toda a política externa. A parte econômica foi defenestrada e entrou novo dogma: abertura, liberalização. O Mercosul foi mudado de forma considerável. Já naquela época, ele fez aquilo com ideia de abrir o país e colocá-lo no caminho da OCDE. Mas agora o que acontece é que você adere aos Estados Unidos nas coisas mais estapafúrdias como esse Plano Trump para a Palestina, que é contra o povo palestino e confronta o direito internacional. É favor do Netanyahu e da direita israelense. Isso é vergonhoso para o Itamaraty.

Qual a sua expectativa em relação ao ingresso do Brasil entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e ao acordo Mercosul-União Europeia?
Tanto o ingresso na OCDE quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia não vão ocorrer sob o atual governo. Por causa do presidente e do chanceler, os países europeus fecharam as portas para o acordo com o Mercosul. Já falei com embaixadores europeus e não há nenhuma chance de eles aprovarem esse acordo. Para o ingresso, na OCDE, o Brasil depende precisamente da aceitação de todos os 35 países que são membros da organização. Embora o (Donald)Trump (presidente americano) tenha falado que os Estados Unidos apoiavam o Brasil, depois de eles terem afirmado que iriam apoiar a Argentina e a Bulgária, deixando o País de fora, nunca houve qualquer formalização disso. Na prática vale o que está escrito. Mesmo que isso aconteça, o ingresso do Brasil na OCDE não deve sair agora, por outras razões, como meio ambiente, direitos humanos, democracia. A Alemanha, a Noruega e a França vão dizer não, por mais que o Brasil siga toda a cartilha da OCDE. Infelizmente não tem mais chance por causa do Bolsonaro e de todos os outros. Será uma grande frustração para a burocracia econômica, que é liberal, defende a abertura econômica e que quer o Brasil na OCDE.

Depois do coronavírus, o comércio não vai crescer duas vezes mais do que o PIB global

Como o sr. avalia as reações do embaixador chinês aos posts do Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub no Twitter?
O Trump só anunciou que iria suspender pagamentos até que se investigue o que houve na OMS em relação ao que ele chama de “vírus chinês”. Não houve ainda corte de cota americana na organização, que nem sei se é paga de uma vez só ou por remessas periódicas, O que aconteceu foi só um anúncio do Trump para sua tropa, com fins eleitorais, já que os mortos pelo coronavírus nos Estados Unidos estão se acumulando e ele quer tirar o foco do assunto.

O coronavírus levou a um isolamento da maioria dos países, com o fechamento de fronteiras. Na sua visão, como isso poderá afetar o mundo depois da pandemia? 
A gente já sabe que depois da pandemia o mundo não vai voltar a ser o que era. A geopolítica mundial vai ser diferente. Vai mudar tudo. Infelizmente, para pior. Nos últimos 60 anos, o comércio internacional cresceu praticamente o dobro do PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Isso mudou na crise de 2008 e depois voltou ao normal. Mas após o coronavírus o comércio não vai crescer duas vezes mais do que o PIB global. Agora eu aposto que a China vai sair muito mais forte que os Estados Unidos da pandemia. A China está em todas as cadeias de valor do mundo. As empresas americanas dependem dos chineses. É claro que há movimentos nacionalistas, na Europa e nos Estados Unidos, dizendo que eles não podem mais ficar dependentes da China, porque numa hora de desespero ela não consegue atender à demanda nem querendo. A questão é que a China está ficando cara. Quando começou a globalização um operário chinês custava US$ 30 dólares por mês e hoje está custando mais de US$ 200. Fábricas americanas estão mudando para o Laos, o Vietnã, Banglasdesh, Índia, África ou voltando para o México, porque a China ficou cara. Agora, eu lamento profundamente o nacionalismo no combate à epidemia do coronavírus. O mundo estaria muito melhor se houvesse uma coordenação estreita da OMS com os governos nacionais, tanto nas medidas de restrições, que são necessárias, quanto na pesquisa e na cooperação para desenvolvimento de vacina e métodos curativos.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Jose Fucs (2): disputas entre bolsonaristas

Um repórter especial só pode produzir matérias especiais.
Paulo Roberto de Almeida

Grupos bolsonaristas têm diferentes projetos para o país
Como as ideias das diferentes alas ideológicas presentes no governo Bolsonaro poderão moldar o destino do Brasil

José Fucs, repórter especial
O Estado de S. Paulo, 20/01/2019

O "cabo de guerra" entre os grupos ideológicos que compõem o governo Bolsonaro deverá afetar muito mais que o dia a dia da administração. O apoio do presidente a uma ou outra ala nos grandes temas poderá moldar o destino do País nos próximos anos e talvez até décadas. 
Se a ala liberal, liderada pelo ministro Paulo Guedes, conseguir emplacar seu receituário na economia, defendido por Bolsonaro na campanha eleitoral, o Brasil provavelmente terá condições de crescer de forma mais acelerada e sustentável, favorecendo a prosperidade geral. 
Centrada nas reformas estruturais, como a da Previdência e a tributária, no equilíbrio fiscal, na redução do tamanho do Estado, na abertura comercial e na descentralização dos recursos hoje concentrados em Brasília, a plataforma da ala liberal poderá descortinar novos horizontes ao País. 
"O Brasil foi a economia de maior ritmo de crescimento durante três quartos do século passado, depois perdeu potência. E perdeu potência pela insistência no modelo de economia de comando central, ao invés de uma economia de mercado", disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, ao assumir o cargo.
Se, ao contrário, Bolsonaro travar a liberalização e encampar a visão desenvolvimentista que marcou sua trajetória política até a propalada conversão liberal, poderá comprometer o crescimento econômico, por mais que isso possa parecer um resultado incompatível com o ufanismo embutido no termo que dá nome ao modelo.
Implementado pelo general Ernesto Geisel no regime militar e reproduzido com perdas pelas gestões do PT, a partir do segundo mandato de Lula, deixou um saldo dramático nos dois períodos, com desequilíbrio nas contas públicas, inflação em alta, estagnação econômica e aumento significativo do desemprego.
Baseado na intervenção do Estado na economia, na substituição de importações, com apoio de medidas protecionistas, na concentração dos recursos no governo federal e no assistencialismo, o modelo desenvolvimentista ainda tem muitos adeptos nas alas militar, política, evangélica e olavista (seguidora das ideias do pensador e escritor Olavo de Carvalho), que dão suporte a Bolsonaro.

Além disso, se a política externa do novo governo se pautar por questões ideológicas, em vez de adotar o pragmatismo nos relacionamentos comerciais, o impacto na economia também tende a ser negativo. Em princípio, a maior inserção do Brasil na arena global não é incompatível com a rejeição do multilateralismo e do globalismo, defendida pelos olavistas e pelo próprio presidente, sob a alegação de que podem ampliar a influência de organizações internacionais no País. Mas isso não pode implicar em deixar em segundo plano o desenvolvimento do comércio exterior e a globalização da economia nacional. 
Em tese, a liberalização econômica também não é incompatível com o conservadorismo nos costumes, apoiado pelo presidente e por praticamente todos os integrantes das diferentes alas ideológicas que participam do novo governo. Muitos adeptos do liberalismo, porém, defendem a tese de que, para se realizar plenamente, o sistema tem de incluir a liberalização comportamental em sua plataforma. 
Na prática, independentemente desta discussão teórica, pode-se esperar que, no governo Bolsonaro, a chamada "ideologia de gênero" deixe de ser uma política de Estado, imposta de cima para baixo à população, e haja um fortalecimento dos valores morais tradicionais, que teriam ficado para trás nos últimos tempos, de acordo com a visão do presidente e de seus aliados. "A minoria tem de se curvar à maioria", costuma dizer Bolsonaro. 
Por fim, do apoio de Bolsonaro às propostas da ala lavajatista, capitaneada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, dependerá o combate a corrupção, o fim da impunidade e o império da lei e da ordem no País. Para ser bem-sucedido, o projeto dos lavajatistas dependerá, em boa medida, da redução do peso do Estado na vida das empresas e dos indivíduos, já que é no setor público que a corrupção prospera. 
Agora, se Bolsonaro perder a oportunidade de promover a mudança e se deixar influenciar pela ala política, amansando as propostas dos lavajatistas para beneficiar quem tem "culpa no cartório", o Brasil continuará a ser o paraíso dos criminosos, de colarinho branco ou não.

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia com Fernando Azevedo e Silva (ministro da Defesa), Onyx Lorenzoni (ministro Casa Civil), Hamilton Mourão (vice-presidente), Sergio Moro (Justiça e Segurança) e Augusto Heleno (GSI). 
O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia com Fernando Azevedo e Silva (ministro da Defesa), Onyx Lorenzoni (ministro Casa Civil), Hamilton Mourão (vice-presidente), Sergio Moro (Justiça e Segurança) e Augusto Heleno (GSI).  Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Jose Fucs (1): a balcanização do governo Bolsonaro

Excelente matéria do jornalista José Fucs, repórter especial do Estadão.
Paulo Roberto de Almeida

Divergências afetam frente de apoio a Bolsonaro

Vinte dias depois da posse, conflitos entre alas ideológicas causam fissuras no governo

José Fucs - O Estado de S.Paulo
Ao completar os primeiros vinte dias, o governo Bolsonaro começa a revelar os traços básicos de seu perfil. Com as movimentações iniciais dos 22 ministros e as nomeações de boa parte dos ocupantes do segundo e terceiro escalões, tornou-se possível identificar algumas marcas do novo governo. É um período curto para tirar conclusões definitivas, mas já dá para ter ao menos uma ideia do que pode vir por aí. 
Em meio a declarações desencontradas e recuos do presidente e de seus ministros em anúncios de medidas oficiais, ficou clara a existência de uma babel ideológica no governo, que gerou diversos conflitos desde a posse, em 1.º de janeiro. 
Aparentemente, as divergências até agora não deixaram feridas profundas. Mas podem ameaçar a unidade da grande frente formada para eleger Bolsonaro, refletida no novo Ministério, se os conflitos aumentarem, em vez de diminuírem, nas próximas semanas e meses. 
A frente inclui seis grandes grupos, com pesos diferentes na administração e influência distinta junto ao presidente – os militares, os liberais, os lavajatistas, os políticos, os evangélicos e os ideólogos e olavistas, que seguem as teorias do pensador e escritor Olavo de Carvalho (veja o quadro)





Em paralelo, com forte influência sobre as decisões do presidente e uma identidade maior com militares e olavistas, opera o núcleo familiar, composto pelos três filhos de Bolsonaro: Flávio, senador eleito pelo Rio de Janeiro, suspeito de envolvimento em operações irregulares com funcionáriosEduardo, deputado federal por São Paulo e talvez o mais influente da troika, e Carlos, vereador no Rio, todos integrantes do PSL, o mesmo partido do pai. 
Mosaico ideológico. Muitas vezes, esses grupos têm ideias e visões divergentes e contraditórias sobre o País e o mundo. Não por acaso alguns analistas estão chamando esse processo de “balcanização”, em referência à divisão de poder entre grupos conflitantes ocorrida na Península Balcânica, localizada na região sudeste da Europa, entre o início dos séculos 19 e 20. 
De certa forma, o mosaico ideológico montado pelo novo governo também existia nas gestões do PT e mesmo do PSDB. Agora, porém, a fragmentação parece mais acentuada, talvez porque os grupos só tenham se aproximado para valer após as eleições e, em alguns casos, só depois da posse. 
Um exemplo que ilustra com perfeição o “cabo de guerra” travado dentro do governo é a disputa pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), entre a ala liberal, liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a ala dos olavistas, representada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo
Guedes contava com a transferência da Apex para sua órbita, com o objetivo de dinamizá-la e transformá-la numa ferramenta poderosa de negócios no exterior. Mas o órgão, que já foi ligado ao extinto Ministério do Desenvolvimento, Comércio Exterior e Serviços, acabou ficando mesmo com o Itamaraty, onde já estava no governo Temer. A decisão foi consumada apesar dos sinais emitidos por Araújo de que poderá levar em conta aspectos ideológicos na atuação da Apex, em prejuízo de uma filosofia mais pragmática do comércio internacional. 
Pivô das divergências. Para completar o quadro, Araújo ainda nomeou dois diretores da Apex ligados a Eduardo Bolsonaro – a empresária Letícia Catelani e o advogado Márcio Coimbra, ex-assessor parlamentar do Senado, que acompanhou o filho do presidente em sua recente viagem aos Estados Unidos. Letícia teria sido responsável pela tumultuada saída do ex-presidente da empresa, Alex Carreiro, substituído pelo diplomata Mário Vilalva apenas uma semana depois de nomeado. 
Numa outra frente, o grupo dos lavajatistas, capitaneado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, levou a pior num conflito com a ala dos políticos, à qual pertence o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, talvez o grande pivô das divergências no governo desde a eleição de Bolsonaro. Moro, a quem a Fundação Nacional do Índio (Funai) era ligada até ser transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, havia determinado a exoneração de Azelene Inácio, diretora de Proteção Territorial do órgão. Mas uma semana depois Onyx ainda não havia levado adiante a decisão e publicado o desligamento de Azelene no Diário Oficial da União. 
Nas próximas semanas, novas disputas do gênero estão no radar. No início de fevereiro, com o provável encaminhamento do projeto de reforma da Previdência ao Congresso, tudo indica que as tensões vão se acentuar entre a ala dos militares, que defende em público a manutenção dos privilégios da categoria – com a exceção do vice-presidente, o general Hamilton Mourão –, e a dos liberais, que apoia uma mudança ampla, englobando o pessoal da caserna. 
O próprio presidente terá de tomar partido nesta questão e pelo que se pode deduzir do que tem dito a tendência é ele cerrar fileira com os militares e a ala política representada por Onyx, também defensor de uma reforma mais branda, mesmo com o déficit da Previdência chegando à estratosfera e comprometendo o equilíbrio das contas públicas. “A melhor reforma é a que passa na Câmara e no Senado”, disse Bolsonaro, sugerindo que está pouco inclinado a apresentar um projeto mais duro para resolver o problema de vez, como propõe a ala liberal
Vantagem militar. A avaliação da força dos grupos não pode ser feita apenas com base no número de ministérios conquistados por cada um. Ela tem de incluir seus tentáculos nos escalões inferiores em todas as pastas. Depende também do orçamento total controlado por cada ala, do impacto das pastas na economia e do grau de prestígio de seus representantes junto ao presidente e a seus filhos, cuja participação ativa no governo preocupa até os aliados mais próximos. 
Dito isso e levando em conta apenas o primeiro escalão, pode-se dizer que os grupos militar e político, à frente de sete ministérios cada um, são os que concentram a maior fatia de poder no governo. Depois deles, vêm as alas liberal, com três ministérios, incluindo o Banco Central, lavajatista e olavista, com dois cada, e evangélica, com apenas um ministério. 
Quando se consideram também as nomeações de segundo escalão claramente identificadas com uma das alas, o grupo militar leva larga vantagem, com nada menos que 32 representantes, espalhados por 13 ministérios, seguido pelos núcleos político, com 16 integrantes, liberal, com 13, olavista, com 12, lavajatista, com 10, e evangélico, com 3. 
Cartilha. Conhecido até pouco tempo atrás por um contingente restrito de iniciados e seguidores, entre eles Bolsonaro e seus filhos, Olavo de Carvalho ganhou os holofotes e conquistou trincheiras importantes na nova gestão. “Vivi para ver um filósofo indicar mais gente para o governo que o MDB”, afirmou na semana passada o cineasta Josias Teófilo, diretor do filme O Jardim das Aflições, sobre a vida e a obra de Olavo. No primeiro escalão, o MDB amealhou apenas o Ministério da Cidadania, ocupado pelo deputado federal gaúcho Osmar Terra. 
Além de ter indicado os ministros Ernesto Araújo, de Relações Exteriores, e Ricardo Velez Rodriguez, da Educação, duas áreas consideradas essenciais pelos seus pupilos para determinar o sucesso do governo, Olavo também é o “padrinho” de Filipe Garcia Martins Pereira, assessor internacional de Bolsonaro, instalado no Palácio do Planalto, de Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização do Ministério da Educação, e de Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, um território dominado por liberais que não rezam pela sua cartilha. 
Como se pode observar, na babel ideológica do governo Bolsonaro, parece complicado os diferentes grupos falarem a mesma língua. Só o tempo vai dizer se o presidente conseguirá administrar as divergências entre as alas e se ele vai enfrentar o problema sem causar grandes solavancos. 
Para manter unida a frente heterogênea que lhe dá suporte, Bolsonaro terá de mostrar que está preparado para atuar como um magistrado nos conflitos. 
Divisor de águas. Segundo relatos de quem já teve contato com Bolsonaro e por tudo o que se pôde observar desde a campanha, ele tende a mudar de opinião conforme a visão de seu interlocutor sobre uma questão qualquer. Ele também já mostrou que costuma falar sobre temas que não domina, antes de formar uma convicção a respeito do melhor caminho a seguir. Assim, acaba dando a impressão de ser uma espécie de biruta, que oscila de acordo com a direção do vento, gerando insegurança não só no mundo dos negócios, mas para todos os brasileiros que acompanham seus movimentos e têm de tomar decisões para si mesmos e suas famílias. 
Como diz a expressão criada pelo poeta inglês John Donne (1572-1631) e imortalizada pelo escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961), a grande questão é saber por quem dobrarão os sinos de Bolsonaro nos próximos meses e anos. 
Aparentemente, nas primeiras semanas de governo, ele se curvou às alas política, militar e olavista nas questões que envolviam a economia, em detrimento da ala liberal, encarregada de conduzir as reformas de que o Brasil precisa para voltar a crescer. 
Bolsonaro também demonstrou enorme interesse nas questões de costumes e educacionais, caras às alas olavista e evangélica, e nas de política externa, uma espécie de fetiche para os seguidores de Olavo. Sua postura em relação à reforma da Previdência pode ser um “divisor de águas” ou confirmar as previsões mais sombrias. Logo mais, se o envio da reforma previdenciária ao Congresso no início de fevereiro se confirmar, a gente saberá a resposta. 

Bolsonaro e seu grupo de ministros após a posse
Bolsonaro e seu grupo de ministros após a posse Foto: Joédson Alves/EFE
Jair Bolsonaro e ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo
Jair Bolsonaro e ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo Foto: Dida Sampaio/Estadão
Sérgio Moro foi o primeiro a ser empossado como ministro do governo Bolsonaro
Sérgio Moro foi o primeiro a ser empossado como ministro do governo Bolsonaro Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Economia, Paulo Guedes.
O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADAO
O filósofo Olavo de Carvalho
O filósofo Olavo de Carvalho Foto: REPRODUÇÃO
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terça-feira, 17 de julho de 2018

Forum Estadao: A Reconstrucao do Brasil - Jose Fucs, SP 25/07

No próximo dia 25/7, quarta-feira, o Grupo Estado realizará a quinta rodada do Fórum Estadão A Reconstrução do Brasil, cujo objetivo é debater os grandes desafios do País neste ano eleitoral decisivo para o nosso futuro.

Serão dois painéis – “O combate à corrupção” e “Alternativas à segurança pública” -- com a participação do juiz Sergio Moro, do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, do advogado Antonio Claudio Mariz de Oliveira e de outras personalidades envolvidas com os temas em debate (confira a programação abaixo).


Forte abraço,
Fucs

Quer Saber? Estadão

José Fucs
Repórter Especial O Estado de S. Paulo 
Av. Eng. Caetano Álvares, 55
6º andar - São Paulo - SP - 02598-900 

jose.fucs@estadao.com +55 (11) 3856-2652 | 9-9991-3271 (cel.)