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sábado, 25 de fevereiro de 2017

O Brasil e a Grande Guerra, impactos economicos, politicos e sociais - Paulo Roberto de Almeida

Reprosuzo  

 

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Brasil e a Primeira Guerra Mundial no Observatorio da Imprensa - texto de Paulo Roberto de Almeida

O Alberto Dines, coordenador do Observatório da Imprensa, pediu-me para colaborar com um programa que está montando para ser transmitido pela TV Educativa em agosto, quando se comemoram (ugh!) os cem anos da Primeira Guerra Mundial. Eu deveria, em princípio, falar de seus impactos sobre o Brasil, nos aspectos econômicos, políticos, culturais, etc.
Para guiar minha participação, como sempre faço quando vou falar em público, na rádio ou na TV, mesmo que não leia absolutamente nada, eu costumo preparar um texto, que me permite organizar as ideias, separar os temas relevantes e sistematizar os argumentos.
Agora me dizem que eu tenho direito a 1 minuto e meio, já que o programa tem menos de uma hora, e são várias entrevistas, documentários, documentos, narrador, enfim, o normal costumeiro num programa desse tipo.
1,5 minuto não dá para falar grande coisa, por isso vou ter de selecionar.
Para não perder o texto já escrito, vou postar aqui, apenas para receber comentários dos interessados no assunto, e depois preparar algum artigo mais estruturado para publicação.
Portanto, é o que segue, escrito às pressas, sem intenção de ser artigo ou ensaio, apenas um texto-guia para servir no momento da gravação.
Paulo Roberto de Almeida

A guerra de 1914-18 e o Brasil
Impactos imediatos, efeitos permanentes

Paulo Roberto de Almeida
Texto-suporte para gravação-vídeo de programa especial do
Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Grande Guerra sobre o Brasil.

Sumário:
1. O que era o Brasil em 1914, e o que representou a guerra europeia?
2. Impactos imediatos do conflito iniciado em 1914
3. Impactos de mais longo prazo, efeitos permanentes

1. O que era o Brasil em 1914, e o que representou a guerra europeia?
Para abordar o impacto da guerra de 1914-1918 sobre o Brasil seria preciso ter bem presente o que era o Brasil em 1914, o que era a Europa, o que ela representava para o Brasil nessa época, e o que a guerra alterou no padrão de relacionamento, direta e indiretamente. Vamos resumir um complexo quadro político, econômico e diplomático.
O Brasil de cem anos atrás era o café, e o café era o Brasil. Toda a política econômica, aliás toda a base fiscal da República e dos seus estados mais importantes, assim como a própria diplomacia, giravam em volta das receitas de exportação, que compreendiam tanto ao próprio produto, e que faziam a riqueza dos barões do café, quanto os impostos de exportação, que afluíam ao orçamento de São Paulo e dos demais estados produtores. Dez anos antes, angustiados por um problema que eles próprios haviam criado, a superprodução de café, esses estados realizaram um esquema de valorização do produto, via retenção de estoques, no famoso Convênio de Taubaté, para cujo financiamento tivemos, pela primeira vez, a participação de bancos americanos. Os próprios banqueiros oficiais do Brasil, os Rothchilds de Londres, haviam se recusado a fazer parte do esquema, pois se tratava de uma típica manobra de oligopolistas contra os interesses dos consumidores. O Brasil dominava então quase quatro quintos da oferta mundial de café, e essa posição lhe assegurava a capacidade de fazer grandes manobras.
Mais tarde, em 1914, justamente, outros concorrentes tinham entrado nesse lucrativo mercado, a Colômbia, por exemplo, que sem poder competir em quantidade, começou a dedicar-se a melhorar a qualidade dos seus cafés. Na mesma época, o Brasil estava sendo processado em tribunais de Nova York, por praticas anti-concorrenciais na oferta de café, justamente. Foi também quando os mercados financeiros se fecharam repentinamente para o Brasil, com o estalar da guerra em agosto desse ano. O Brasil sempre dependeu do aporte de capitais estrangeiros, seja para financiar projetos de investimento em infraestrutura – que eram feitos sob regime de concessão, num esquema muito similar ao que viria a ser conhecido depois como PPP, ou seja, parcerias público-privadas, com garantia de juros de 6% ao ano –, seja para o financiamento do próprio Estado, que vivia permanentemente em déficit orçamentário.
O Brasil já tinha efetuado uma operação de funding-loan en 1898, isto é, um empréstimo de consolidação trocando os títulos das dívidas anteriores por novos títulos, e tinha conseguido fazer um novo pouco antes da guerra, e já não mais teve acesso ao mercado de capitais durante toda a duração do conflito europeu. Este representou um tremendo choque para a economia brasileira, pois os mercados europeus ainda eram importantes consumidores dos produtos primários de exportação, e os principais ofertantes de bens manufaturados, equipamentos e, sobretudo, capitais, ainda que os Estados Unidos já fossem o principal comprador do café brasileiro desde o final do século 19, e que suas empresas já tivessem começado a fazer investimentos diretos no Brasil.

2. Impactos imediatos do conflito iniciado em 1914
O espocar dos canhões de agosto representou, em primeiro lugar, uma interrupção nas linhas de comunicação marítimas, já que a Alemanha tinha construído para si uma marinha de guerra quase tão importante quanto a da Grã-Bretanha. Mais adiante a British Navy consegue desmantelar boa parte da frota germânica, mas de imediato, os transportes marítimos com os portos da Europa do norte foram bastante afetados pelas batalhas navais e pela ação dos surpreendentes submarinos alemães. Mas mesmo os estoques de café nos portos de Trieste, no Mediterrâneo, ficaram retidos, sob controle dos impérios centrais, neste caso da monarquia multinacional representada pela Áustria-Hungria, que seria desfeita com a derrota em 1918.
O produto mais importante de exportação do Brasil foi, assim bastante afetado pela perda de importantes mercados consumidores, o que aumentou tremendamente a dependência da demanda americana. Mas, os principais financiadores externos da jovem República ainda eram banqueiros europeus, agora comprometidos com a compra de títulos da dívida nacional de seus próprios países. A Alemanha também se tinha convertido num importante parceiro comercial do Brasil, além de ter iniciado um itinerário promissor com alguns investimentos diretos de suas empresas e casas comerciais. Outros mercados do velho continente também se viram engolfados no conflito, causando novos e continuados prejuízos ao Brasil.
O debate interno, sobre quem o Brasil deveria apoiar na guerra europeia, também foi importante, colocando importantes intelectuais em oposição, assim como tribunos e magistrados dos dois lados da cerca. O grande historiador João Capistrano de Abreu foi considerado um germanófilo, ao passo que Rui Barbosa insistiu na culpa moral da Alemanha, que tinha invadido e esquartejado a Bélgica, um país neutro. Uma das vítimas desse debate passional foi o próprio sucessor de Rio Branco, o chanceler Lauro Muller, considerado talvez menos isento por causa de sua ascendência alemã: ele renunciou ao cargo quando o Brasil fez a sua escolha. A maior parte da classe culta no Brasil, os membros da elite que adoravam gastar seus mil-réis nos cabarés de Paris, era evidentemente francófila, mas os alemães ajudaram a empurrar o Brasil para o lado da aliança franco-britânica ao atacarem navios comerciais brasileiros no Atlântico, quando o Brasil ainda era oficialmente neutro no conflito. Acabamos entrando modestamente na guerra, quase ao seu final, enviando um batalhão médico para a França.
No conjunto, a guerra representou imensas perdas comerciais e financeiras para o Brasil, que tentou se ressarcir, na conferência de paz de Paris, sem obter de verdade satisfação plena por suas reivindicações de obter compensação pela apropriação de navios alemães: os próprios países europeus se encarregaram de extorquir a Alemanha o máximo que puderam, e o caso do Brasil não era julgado realmente importante em face do conjunto de demandas dos países mais afetados pela guerra.

3. Impactos de mais longo prazo, efeitos permanentes
Os efeitos mais importantes da primeira guerra mundial, porém, não se limitaram aos terrenos militar e comercial, mas foram verdadeiramente impactantes no domínio econômico no seu sentido mais lato, provocando mudanças extremamente importante nas políticas econômica de todos os países, com consequências negativas para todo o mundo, e moderadamente positivas para o Brasil. Uma das primeiras consequências econômicas da guerra foi a cessação de pagamentos entre os inimigos, o que era lógico, com a cessação de toda relação comercial, confisco de bens e sequestro de ativos financeiros. Os países suspenderam o famoso padrão-ouro, ou seja, a garantia em metal das emissões de moeda papel; ainda que teoricamente em vigor, para alguns países, e a despeito de tentativas de seu restabelecimento ao final do conflito, ficou evidente que o lastro metálico tinha deixado de fato de ser um fator relevante nas políticas monetárias dos países. Todos os governos, depois de esgotadas as possibilidades de financiamento voluntário interno do esforço de guerra – via emissão de bônus da dívida pública, e até mediante empréstimos compulsórios – passaram a imprimir dinheiro sem maiores restrições, provocando a primeira grande onda inflacionária nas economias contemporâneas.
Mais impactante ainda foi a intervenção direta na atividade produtiva, não apenas desviando para a produção de guerra quase todas as plantas industriais que tivessem alguma relação com o aprovisionamento bélico, inclusive alimentar, de transportes e comunicações, mas também via controles de preços, restrições quantitativas, mobilizações laborais e vários outros expedientes intrusivos na vida do setor privado. Nacionalizações e estatizações foram conduzidas por simples medidas administrativas e a planificação nacional tornou-se praticamente compulsória. O mundo nunca mais seria o mesmo, e nesse tipo de economia de guerra estaria uma das bases dos regimes coletivistas que depois surgiriam na Europa, o fascismo e o comunismo.
O Brasil não foi tão afetado, naquele momento, pela estatização, mas ele também sofreu esses impactos de duas maneiras. De um lado, as dificuldades de aprovisionamento e de acesso a mercados levaram ao estímulo a novas atividades industriais no país, ainda que com todas as restrições existentes para a compra de bens de produção nos principais parceiros envolvidos no conflito. O mercado interno se torna mais relevante para a economia nacional. De outro lado, o nacionalismo econômico conhece um novo reforço nesse período. O Brasil já tinha uma lei do similar nacional desde o início da República, mas a guerra ajuda a consolidar a tendência introvertida, a vocação de autonomia nacional que já estavam presentes no pensamento de tribunos e de empresários. O Brasil encontrou naquela situação uma espécie de legitimidade acrescida para continuar praticando aquilo que sempre fez em sua história: a preferência nacional e o protecionismo comercial como políticas de Estado.
Este talvez seja o efeito mais importante, ainda que indireto, da guerra europeia sobre o pensamento econômico brasileiro, especialmente em sua vertente industrial. As gerações seguintes, sobretudo aquelas que ainda viveram a crise de 1929, e uma nova guerra mundial, dez anos depois, consolidaram uma orientação doutrinal em economia que também tendia para o nacionalismo econômico, uma política comercial defensiva, uma vocação industrial basicamente voltada para o mercado interno e uma tendência a ver no Estado um grande organizador das atividades produtivas, quase próxima do espírito coletivista que vigorou na Europa durante o entre-guerras e mais além.
Essencialmente, a geração de militares que passou a intervir de forma recorrente na vida política do país, ao final da Segunda Guerra, e que depois assumiria o poder no regime autoritário de 1964, era em grande medida formada por jovens cadetes que tinham feito estudos e depois academias militares no entre-guerras e na sua sequência imediata, e que tinham se acostumado exatamente com esse pensamento: um intenso nacionalismo econômico, a não dependência de fontes estrangeiras de aprovisionamento (sobretudo em combustíveis e em materiais sensíveis), a introversão produtiva, a ênfase no mercado interno, enfim, tudo aquilo que nos marcou tremendamente durante décadas e que ainda forma parte substancial do pensamento econômico brasileiro.
Tudo isso, finalmente, foi o resultado político e econômico da Primeira Guerra Mundial, que durante muito tempo ficou conhecida como a Grande Guerra. Os custos e as destruições da Segunda foram mais importantes, mas as alterações mais significativas nas políticas econômicas nacionais, no papel dos Estados na vida econômica, já tinham sido dados no decorrer da Primeira. O mundo mudou, a Europa começou sua longa trajetória para o declínio hegemônico, e o Brasil deu início ao seu igualmente longo itinerário de nacionalismo econômico e de intervencionismo estatal. Parece que ainda não nos libertamos desses dois traços relevantes do caráter nacional.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 26 de junho de 2014.

2622. “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”, Hartford, 26 junho 2014, 5 p. Roteiro para gravação de um depoimento em vídeo para emissão especial do Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre o Brasil e a região; depoimento por meio de webcam: padrão quicktime (.mov), full HD, 1920x1080 pixels, 16:9, NTSC, 29,97 fps; em torno de 2 minutos; envio por via web-transfer ou FTP.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Primeira Guerra Mundial: os 100 anos da guerra que não acabou - Alberto Dines (Observatório da Imprensa)

Um programa de que participei, minimamente é verdade, mas para o qual eu já tinha escrito um texto aqui postado. Este aqui:  "A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes"; publicado em Mundorama (28/07/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-primeira-guerra-mundial-e-o-brasil.html); postado duas vezes neste Diplomatizzando (links: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/06/o-brasil-e-primeira-guerra-mundial-no.html e http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-primeira-guerra-mundial-e-o-brasil.html).
Vejam o programa, dirigido pelo sempre competente Alberto Dines, aliás autor de uma biografia maravilhosa de Stefan Zweig (Morte no Paraíso), escritor austríaco, que se suicidou em Petrópolis, tendo antes escrito suas magníficas memórias sobre o período anterior à guerra (O Mundo de Ontem) e o panegírico Brasil: o país do futuro (que ficou mais pelo título do que pelo conteúdo).
Emissão do Observatório da Imprensa: “Os 100 anos da guerra que não acabou”, com Alberto Dines (Programa n. 736, 5/08/2014; link: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/videos/view/os_100_anos_da_guerra_que_nao_acabou). 
Paulo Roberto de Almeida 
OI NA TV

PRIMEIRA GRANDE GUERRA

Os 100 anos da guerra que não acabou

Alberto Dines | Programa nº 736 | 05/08/2014 | 0 comentários
 

Ela foi chamada de belle époque, também de dourada era da segurança; os mais céticos preferem classificar o período como o alegre apocalipse. A exposição mundial de Paris, em 1900, exibiu as maravilhas da eletricidade com a iluminação da Torre Eiffel. As novas tecnologias despertaram novas energias e fortíssimas ambições. O avião, os transatlânticos, automóveis, o metrô, o cinema, o rádio e os avanços da medicina simbolizavam um progresso, uma paz que, imaginava-se, jamais seria revertida. Nos subterrâneos deste mundo excitante e refinado um vulcão roncava, emitia avisos que poucos queriam escutar.
Alfred Nobel, o inventor da dinamite, primeira arma de destruição em massa, captou esses sinais, assumiu-se como pacifista e no testamento deixou recursos para a concessão de cinco prêmios anuais, um deles o Nobel da Paz, concedido pela primeira vez em 1901.
Se os esforços pela paz precisavam ser estimulados e premiados, significa que a guerra era uma ameaça concreta, assustadora. Conflitos bélicos não acontecem por acaso. Os contenciosos acendem diversos pavios, até que um deles chega ao barril de pólvora mais próximo.
O que aconteceu no verão europeu de 1914 vinha sendo articulado há décadas. A inauguração do Canal de Suez, em 1869, abalou em definitivo o império otomano. O conflito franco-prussiano, de 1870, tirou da França uma rica fatia de território. O paroxismo ideológico deslanchado pelo caso Dreyfus, em 1894, forneceu a munição.
Mas foi a crença de que novas tecnologias são suficientes para garantir a paz e o progresso o principal equívoco cometido nesse xadrez.
A serviço do rancor, os milagres da ciência convertem-se em pesadelo.
 

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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Stefan Zweig, por Benjamin Moser (Bookforum, FSP)

STEFAN ZWEIG (1881-1942)

Uma história à luz do crepúsculo

Por Benjamin Moser 
Observatório da Imprensa, em 23/06/2014 na edição 804
Reproduzido da “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo, 22/6/2014, tradução de Francesca Angiolillo

É fácil entender, quando se chega a Petrópolis vindo do Rio de Janeiro, por que alguém nascido e criado na alta burguesia vienense teria preferido viver nessa pequena cidade em lugar de escolher a caótica metrópole ao pé das montanhas. Não pelas numerosas construções em pretenso estilo alemão, mas pela sua ordem quase bávara, seu bem-estar e tranquilidade quase sem par no país, mesclados a um cenário natural com o qual se sonha sob a neve europeia.

Há recantos de Petrópolis que sugerem uma natureza benevolente – o trópico como poderia ter sido. Aqui não se acha aquela massa selvagem que, em tantos lugares do país, apavora estrangeiros e nativos (insetos ferozes, peixes carnívoros): trata-se do trópico turístico como o que se cultiva nos melhores “resorts” do Havaí ou de Bali (palmeiras, flores, macaquinhos).
Mas a harmonia natural não é o que de mais sugestivo fica da região. Petrópolis, mais do que qualquer outro lugar que eu conheça, carrega o peso de suicídios, exílios e derrotas de pessoas ilustres que, seduzidas pelas árvores e flores, buscaram refúgio ali, só para encontrar um fim amargo.
O magnata homossexual Alberto Santos Dumont, que inventou a aviação com a esperança de fomentar a fraternidade universal, escolheu morar em Petrópolis, numa casa que é hoje um curioso museu – e terminou tirando a própria vida no Guarujá, diz a lenda que angustiado por ver seu engenho empregado para fins bélicos.
Em Samambaia, nas escarpas da serra, no esplendor de sua casa modernista, a poeta americana Elizabeth Bishop perdeu seu grande amor, Lota de Macedo Soares, e afundou-se no alcoolismo.
Célebre 
Hoje, o nome internacionalmente mais célebre entre os que ali se exilaram talvez seja Stefan Zweig. Nascido em 1881 numa família de judeus burgueses de Viena (seu pai era industrial têxtil; sua mãe descendia de uma família de banqueiros ítalo-austríacos), Zweig foi submetido a uma criação fria e à educação rigorosamente clássica destinada aos homens de seu tempo e condição social. Estudou filosofia na Universidade de Viena, onde se doutorou em 1904. Seu interesse artístico prevaleceu sobre sua formação austera, e ele se recusou a abraçar os negócios familiares, embora tivesse se mostrado desde cedo um herdeiro à altura de seu pai rico e enérgico.
Seu primeiro livro, uma antologia de poemas chamada Silberne Saiten (cordas de prata), foi publicado quando ele tinha 19 anos. Apesar de, ao longo de sua vida, ele nunca ter permitido uma reedição do volume, o livrinho anunciava o início de uma grande carreira que incluiria não só poesia mas também teatro e jornalismo, embora seja mais correntemente recordada pelas biografias e novelas.
Figuras proeminentes da cultura europeia, de Auguste Rodin a Sigmund Freud (além de amigo de Zweig, o psicanalista foi tema de um dos ensaios que compõem A Cura pelo Espírito, de 1932), elogiaram sua obra – em especial graças a escritos breves como “Medo” e “Carta de Uma Desconhecida”, que, ao lado de “24 Horas na Vida de uma Mulher” serão reunidos em Três Novelas Femininas [org. Alberto Dines, trad. Adriana Lisboa e Raquel Abi-Sâmara, Zahar, R$ 39,90, 176 págs.], a sair no mês que vem.
Na década de 1920, seus títulos publicados na Europa e nos Estados Unidos somavam milhões de exemplares, e ele se tornou o autor mais traduzido do mundo. Eram livros encantadores, no melhor sentido: eles enfeitiçavam o leitor.
Mesmo se seus temas nunca eram menos que grandiosos, não reside na temática o brilho da obra de Zweig: é o fascínio pelo autor o que explica sua popularidade duradoura. Seus livros podem ser vistos ao lado de revistas de celebridades e de livros de dieta em estações ferroviárias no interior da França, e em dezenas de países ele ainda é, mais de 70 anos após sua morte, possivelmente o mais popular dos escritores de sua geração.
Parte do encanto de Zweig vem de sua vida dramática e glamorosa. Se sua existência parece ter sido melancólica – dadas a data e o local de nascimento, dificilmente não o seria –, ela também pode ser considerada como extraordinariamente bem vivida.
Ele viu as tropas alemãs marcharem sobre a Bélgica e começarem a Primeira Guerra Mundial; ele viu o fim da guerra, quando o último monarca abandonou o antigo trono dos Habsburgo. Seu engajamento político – seu horror ao racismo e ao nacionalismo, sua dedicação a um ideal cosmopolita que desconhecesse fronteiras – faziam-no parecer à frente de seu tempo: só alguns anos após sua morte um ideário em certa medida baseado no seu tornou-se a base para a reconstrução da Europa.
Sua vida foi tão bem-sucedida que, sob certos aspectos, pode ser descrita como triunfante. Exceto pelo mesmo motivo que se abateu sobre tantas vidas mais comuns: a ascensão de Hitler.
Brasil 
Quando a guerra estourou, Zweig teve mais sorte que muitos outros. Rico e famoso, ele não estava preso na Europa, por haver assumido a nacionalidade britânica, o que lhe dava plena e preciosa liberdade de movimento. Foi para os Estados Unidos e, mais tarde, para o Brasil, sobre o qual havia escrito o caloroso Brasil: Um País do Futuro [pref. Alberto Dines, trad. Kristina Michahelles, L&PM Pocket, R$ 19,90, 264 págs.]. Publicado em 1941, o livro agradou ao governo – e esse governo, que impunha tantas restrições a judeus bem mais necessitados de asilo do que Zweig, expediu-lhe um visto.
Ele foi para Petrópolis. Mas aquela cidade e o Brasil que ele vislumbrou como uma nova possibilidade para a civilização não foram o bastante. Após ver seu mundo colapsar sob um morticínio de proporções inimagináveis, o escritor e sua mulher, Lotte, deram cabo da própria vida durante o Carnaval de 1942.
Seu suicídio – somado à percepção de sua personalidade como depressiva e sexualmente ambígua – obscureceu muito do que se escreveu sobre Zweig. Seu curto período em Petrópolis acabou funcionando como uma estranha coda para sua história. Um ícone da cultura europeia exilado, inconsolável, para os confins da terra, em desespero, se mata: a morte de Zweig quase imediatamente abandonou a esfera do tormento pessoal, adquirindo um significado político, simbólico, do qual nunca se desvencilhou de fato.
Thomas Mann, dando voz ao que muitos calavam, o reprovou: “Ele não tinha consciência de sua responsabilidade perante centenas de milhares de pessoas para as quais seu nome era importante e diante das quais sua capitulação provavelmente teria um efeito deprimente? Perante os muitos outros, refugiados como ele, mas para os quais o exílio era uma experiência incomparavelmente mais dura que a sua, celebrado como ele era, e sem preocupações materiais?”. Enquanto a cultura europeia era massacrada – sugere o raciocínio – o mínimo que se esperava de seus expoentes era que não se massacrassem a si mesmos.
Essa carga simbólica, aliada aos aspectos pitorescos da vida de Zweig, atraiu levas de biógrafos. O primeiro problema com o qual se deparavam era o fato de que ele havia escrito uma autobiografia, O Mundo que Eu Vi – um dos melhores exemplos de livros de memórias do século 20 (o título será relançado em novembro no Brasil, também pela Zahar).
Nele, a força do estilo de Zweig se mostra plenamente. Sua argúcia para o detalhe eloquente, seu conhecimento do mundo e suas lembranças de grandes personalidades da cultura de seu tempo são amparadas por uma corrente emocional poderosa que ajuda o leitor a imaginar o inimaginável desespero de uma geração forçada a ver toda sua sociedade varrida pelo fanatismo e pela guerra.
Escrito quase inteiramente em uma temporada de poucos meses no vilarejo de Ossining, no Estado de Nova York, o livro recorda o continente ao qual o autor nunca retornaria. Zweig se concentrou tanto no trabalho para escrevê-lo que sua mulher chegou a temer por sua saúde. Embora descrito com detalhes vívidos, esse mundo perdido é só em parte lamentado: nenhum leitor chorará, por exemplo, a desaparição da repressão sexual que vigia na Viena pré-Freud.
Diante do tema, é surpreendente que o livro não seja mais sombrio, e a impressão que deixa é tal que quase se tem pena dos biógrafos de Zweig. Quem contaria sua história melhor do que ele próprio?
Biografias 
Além de ficção e poesia, esse homem prolífico produziu uma grande quantidade de biografias, cobrindo uma galeria de personagens que soa quase disparatada e que inclui Maria Antonieta, Erasmo, Balzac e Napoleão.
A atração que essas figuras exerceram sobre Zweig e aquilo que as une, é que todas, sem exceção, resistiram à história e terminaram vitimados por ela. Suas trajetórias, quando lidas à luz do que aconteceria a seu biógrafo, ganham um tom assustador de profecia.
Maria Antonieta, a adolescente austríaca fascinada pela “joie de vivre”, designada a um papel à altura do qual nunca estaria, num lugar e num tempo que ela não conseguiu entender; Erasmo, em sua devoção trágica e paciente a um conceito de universalidade carcomido pela corrupção, má-fé e ambição; a imaginação grandiosa de Balzac, submetida a preocupações financeiras que se impuseram sobre o gênio artístico: esses personagens, vistos como um conjunto, formam um retrato tão poderoso de Zweig quanto o que surge de O Mundo que Eu Vi.
Uma sensação de vaticínio semelhante emerge da leitura de suas novelas e do único romance que publicou em vida – traduzido no Brasil como Coração Inquieto, o livro de 1939, hoje fora de catálogo, também foi produzido sob a sombra de Hitler.
Mas essa ideia de predestinação não toma conta da obra de Zweig como um todo. Quando o vemos como personagem, a tendência a ler sua vida de trás para frente é irresistível. Tudo é refratado pelo prisma petropolitano.
É um procedimento perfeitamente legítimo e foi adotado, por exemplo, por Alberto Dines no clássico Morte no Paraíso: a Tragédia de Stefan Zweig [Rocco, R$ 69,50, 594 págs.]. Contudo, em mãos menos hábeis que as de Dines, que há anos se dedica à obra de Zweig, o expediente favorece o perigo de fazer o que Zweig, em seus próprios escritos, não fez: lançar um olhar limitado sobre a vida de alguém que se dedicou a ampliar, e não a reduzir, as visões que oferecia em seus livros.
Risco 
É nesse risco que incorre o novo livro do escritor norte-americano George Prochnik, The Impossible Exile [Other Press, R$ 48,90, e-book] (o exílio impossível). Apesar de se apresentar como uma biografia, o livro de Prochnik ostenta origens heterogêneas. Poderia ser descrito como relato de viagem (pela Áustria, pelo Brasil), romance (embora o tom se enquadre no de uma biografia ortodoxa, o livro não o é), reflexão sobre as raízes familiares do próprio biógrafo (como Zweig, o autor descende de judeus vienenses).
Como sugere o título, a ênfase recai sobre a experiência de Zweig como exilado – especialmente em Nova York, onde esteve entre 1940 e 1941 e onde ele se sentiu acuado pelos refugiados pobres e desesperados, oriundos de uma civilização cujo colapso ele narrava no livro que então escrevia, numa casa alugada em Ossining.
Por vários motivos, é uma escolha ousada a que Prochnik faz para meditar sobre o exílio.
A temporada de Zweig nos Estados Unidos é aparentemente menos relevante para sua vida do que os períodos transcorridos na Áustria, na França, na Inglaterra ou no Brasil. Mas foi nos EUA que ele escreveu seu famoso livro de memórias, última parada antes da jornada que o levaria à morte.
Prochnik evoca a cidade que Zweig conheceu: a taxa de criminalidade nova-iorquina à época, o clima, a irritação que o escritor sentia ao ver os espectadores da ópera lendo os libretos com diminutas lanternas. São detalhes que mostram quão desconcertante a cidade podia ser até para o mais cosmopolita dos expatriados.
Observando fotografias de viagens de Zweig antes da guerra, Prochnik frisa sua capacidade camaleônica para se mesclar a diferentes cenários como se a eles pertencesse. Chega a acusá-lo de não ter personalidade própria.
Deixando de lado questionamentos sobre como poderia um dos mais famosos escritores do mundo desaparecer contra qualquer pano de fundo, o que há de mais notável na experiência de Zweig, conforme relatada no livro, é que Nova York se impôs como o local com o qual ele não podia se fundir; aquele que teria dado a ele a mais dura noção de exílio.
Prochnik mostra o que significou, para Zweig, estar ali – quão difícil era para ele ser um dos “bem-aventurados”. Judeus refugiados na América, por definição, tinham mais sorte do que os que estavam sujeitos às tropas de Hitler. E, visto de fora, Zweig parecia ser o mais sortudo de todos.
Prenúncio 
Enquanto o livro de Alberto Dines sobre Zweig no Brasil aproveita a história do escritor em Petrópolis para jogar luz sobre toda sua vida, o de Prochnik lê toda a trajetória de Zweig como prenúncio de seu suicídio na serra. E, assim, se concentra justamente nos aspectos menos interessantes de sua vida. A situação dos judeus europeus era tudo menos individual, e colocar ênfase numa questão que devastou milhões é enfatizar o que Zweig tinha em comum com tantas outras pessoas, em lugar de tentar entender o que faz dele extraordinário.
Não valeria a pena apontar essas falhas no livro de Prochnik, não fossem elas tão disseminadas ou provenientes de fonte tão ilustre: além de Thomas Mann dizer que Zweig dera um mau exemplo, Hannah Arendt condenara seu excesso de sensibilidade. Ao iluminar o que ele não era, narrativas como essa pintam o retrato de alguém fraco, sem caráter, assustadiço e nervoso, e pouco se preocupam em explicar por que, sete décadas após sua morte, sua figura exerce fascínio tão duradouro.
Quando Zweig se mostra integrado ao ambiente, Prochnik se refere à “artificialidade endêmica do caráter vienense” ou a “clichês inevitáveis sobre o desejo judaico de assimilação”. Define como ingenuidade suas “demandas imodestas por um mundo diferente” – sua convicção antissionista e contra qualquer outro tipo de nacionalismo; o cuidado feroz com que evitava linguagem ofensiva, até mesmo para falar de Hitler.
Talvez. Mas por que descrever esse escritor, tão admirado, como um “professor itinerante de sabedoria pacifista”, colocando-o apenas um degrau acima de um hare krishna de semáforo? Quando Zweig escreve que seu “objetivo seria um dia se tornar não um grande crítico ou uma celebridade literária, mas uma autoridade moral”, Prochnik se mostra confuso: “A ambição pode gerar perplexidade, mas Zweig falava a sério”. Mas o que haveria de causar perplexidade nessa intenção? Seria preferível aspirar à celebridade?
Rumores
Contribui para essa impressão a inclusão, no livro de Prochnik, de detalhes de cunho sexual que sugerem que Zweig era quase um pervertido: ficamos sabendo que “há rumores”, por exemplo, de que “Zweig saía à caça entre os rapazes sedutores do Rio”. Ou de que ele, em Viena, “se escondia entre arbustos perto da jaula dos macacos no zoo de Schönbrunn, à espera de mocinhas diante das quais saltar e se exibir”. Talvez. Mas por que somos expostos a boatos de mau gosto, para os quais não é oferecida qualquer prova ou corroboração? (Em especial se consideramos que, na página seguinte, Prochnik descreve outro amigo como “mais confiável” do que o que provera as histórias relatadas.) Zweig era conhecido no mundo todo; todo mundo dizia todo tipo de coisa sobre ele.
Se, tanto tempo depois de Zweig e sua mulher terem sido encontrados mortos em Petrópolis, ele ainda se mantém relevante, a resposta certamente está no seu trabalho – sempre vivo, sempre lido, sempre traduzido – mais do que nos detalhes em torno do triste desenlace de sua vida.
Apesar de ser tão modesto quanto generoso – Prochnik escreve que Zweig nunca deixou de olhar com humildade para seu próprio trabalho e sempre tinha na ponta da língua nomes cuja obra considerava maior que a sua –, chegar a ser o escritor mais traduzido do mundo não é pouca coisa.
Ler seus livros e conhecer sua vida nos traz mostras não de fraqueza, mas de uma vitalidade típica de um Balzac. Todos aqueles livros! Aquelas viagens! Aquelas mulheres! Até mesmo o suicídio, já há muito estabeleceu a psicanálise, é a escolha dos fortes, dos que não esperam pelo destino, mas se lançam a ele por seus próprios meios.
O que tinha Zweig que atraía a devoção de milhões de fãs, a admiração de Hermann Hesse? Que qualidades teria para que fosse escolhido a fazer a elegia de Freud em seu funeral? A fim de responder a essas perguntas, o livro de Prochnik precisaria iluminar todos os aspectos de seu trabalho, perpassar todos os seus livros e desafiar, mais do que aceitar, a modéstia aparente de suas declarações sobre sua própria trajetória.
Há muito é devida a Zweig uma revisão plena, que vá além dos textos críticos emergidos a par das recentes retraduções, nos Estados Unidos, de sua obra. Tal reavaliação deveria também ir além do que disse outro refugiado suicida, Klaus Mann – “Ele só teve uma ambição: mitigar a amargura do sofrimento humano ao ampliar a consciência de suas raízes e causas” –, e perguntar: não seria essa ambição grande o bastante?
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Benjamin Moser, 37, escritor americano, é autor de Clarice (Cosac Naify). Seu texto nesta edição é uma versão adaptada para a Folha de artigo publicado na revista Bookforum

terça-feira, 23 de julho de 2013

Nem todo macho é homem, nem toda fêmea é mulher (Epa!) - Felipe Costa (Observatorio da Imprensa)

Bem, não é o que parece. Apenas um biólogo refletindo sobre os problemas das diferenciações entre sexo e gênero.

Vale a pena ler:

‘CROSSDRESSING’

Nem todo macho é homem, nem toda fêmea é mulher

Por Felipe A. P. L. Costa 
Observatorio da Imprensa, em 23/07/2013 na edição 756
Em 27/1/2012, este Observatório publicou o artigo “O cartunista fantasiado”, de Luciano Martins Costa. Até então, eu não havia ouvido falar do “caso Laerte”. Eis o que o articulista escreveu no primeiro parágrafo:
“A Folha de S.Paulo traz para suas páginas, na edição de sexta-feira (27/1) um incidente protagonizado por seu cartunista Laerte Coutinho, que desde 2010 se exibe em público vestido de mulher. Laerte não se assume homossexual, apenas se declara adepto do crossdressing, ou a prática de se vestir como o gênero oposto.”
O artigo não cita o título da matéria da Folha; até onde pude apurar, no entanto, seria “Cartunista vai à Justiça para ter direito de usar banheiro feminino”, de Natália Cancian.
Sexo e gênero não são sinônimos
Descobri depois que o “caso Laerte” já havia sido discutido antes – ver, por exemplo, a matéria “A era do pós-gênero?”, de Cynara Menezes, publicada na revista CartaCapital, em 21/9/2011. Desde então, também tenho notado que o caso e, sobretudo, o assunto (crossdressing) continuam sob a luz dos holofotes. A edição de abril de 2013 (nº 79) da revista piauí, por exemplo, publicou (com bastante alarde) o artigo “Laerte em trânsito” [acesso livre apenas para assinantes], de Fernando de Barros e Silva. Há nele uma foto do cartunista que evoca a escritora estadunidense Susan Sontag (1933-2004), um mimetismo que, penso eu, não foi acidental.
O propósito deste artigo não é analisar o “caso Laerte” ou o fenômeno do crossdressing. O objetivo aqui é mais modesto: estabelecer uma distinção entre sexo e gênero – para uma discussão mais detalhada, ver ROUGHGARDEN (2006). (O livro de Roughgarden deveria ser lido por todos os interessados no assunto, embora a versão em português deixe muito a desejar.) Esses dois termos, diferentemente do que alguns imaginam, não significam a mesma coisa e, portanto, não devem ser tratados como sinônimos. (Um mal-entendido, aliás, que aparece na matéria da Carta Capital; não sei se o mesmo problema reaparece no artigo da piauí, pois não tive acesso à versão integral.)
O sexo (macho ou fêmea) que herdamos de nossos pais segue sendo um imperativo biológico (ou quase isso), enquanto o gênero (homem ou mulher) que assumimos ao longo da vida está se tornando (cada vez mais) uma volatilidade cultural.
Homem não é sinônimo de macho
Os homens em geral pertencem ao sexo masculino, assim como as mulheres em geral pertencem ao sexo feminino. É uma correlação bastante significativa, razão pela qual, aliás, nós nos habituamos a tratar alguém do sexo masculino como “homem”, assim como nos referimos a alguém do sexo feminino como “mulher”. Mas não é uma correlação absoluta, de sorte que a distinção entre macho e fêmea nem sempre coincide com a distinção entre homem e mulher – i.e., nem todo indivíduo que se comporta como homem é necessariamente um macho, assim como nem toda mulher é necessariamente uma fêmea.
Em termos estritamente biológicos, a distinção entre machos e fêmeas tem a ver única e exclusivamente com o tipo de gameta que cada indivíduo produz – para uma discussão mais detalhada em português a respeito da variedade e evolução dos padrões de sexualidade e reprodução, ver BARNES et al. (2008).
Nas espécies animais em que diferentes indivíduos produzem diferentes tipos de gametas, o indivíduo que produz os gametas pequenos e móveis (espermatozoides) é chamado de macho, enquanto o que produz gametas grandes e imóveis (óvulos) é chamado de fêmea. Esse padrão de sexualidade, no qual os sexos estão separados, é chamado de gonocorismo (do grego, gonós, genitálias + chorismós, separação) ou dioicia. Em outras espécies animais, no entanto, os sexos estão juntos: o mesmo indivíduo é capaz de produzir os dois tipos de gametas. Nesse padrão de sexualidade, não há indivíduos que sejam exclusivamente machos ou fêmeas; todos são hermafroditos (do latim,hermaphroditus, alusão a Hermafrodito, filho dos deuses gregos Hermes e Afrodite, significando que um mesmo indivíduo é portador dos dois sexos). Minhocas e caracóis são exemplos familiares de animais hermafroditos.
Sexo e gênero podem se misturar
O fato de sermos um mamífero social acrescenta uma camada adicional de complexidade ao nosso comportamento reprodutivo. É nesse contexto que emerge a noção de gênero.
Enquanto “macho” e “fêmea” são categorias essencialmente reprodutivas (ou sexuais), “homem” e “mulher” são categoriais culturais (ou de gênero). A distinção cultural entre homem e mulher depende do papel social dos indivíduos e, cada vez mais, de suas opções. Embora homens em geral sejam machos e mulheres em geral sejam fêmeas, os papéis sexuais e, portanto, os gêneros podem estar misturados – i.e., os machos podem se parecer e agir como mulheres (“machos femininos”), do mesmo modo como as fêmeas podem se parecer e agir como homens (“fêmeas masculinas”). Certas práticas culturais, como é o caso do crossdressing, ilustram essa ambiguidade.
Até algum tempo atrás, as aspirações individuais pouco importavam; os papéis sociais eram determinados e impostos de cima para baixo, sem muita margem para discussões. Essa rigidez tem sido atenuada (há boas razões por trás disso, mas não é essa a questão aqui), a tal ponto que, em algumas sociedades, já é possível optar por um papel social diferente daquele comumente associado ao sexo que se herda. Todavia, os indivíduos que estão fazendo essas opções ainda enfrentam certas barreiras que outros integrantes da mesma sociedade não costumam enfrentar. Um exemplo trivial são as dificuldades de acesso a uma identidade civil que seja condizente com as escolhas feitas. Pense em uma mulher (i.e., alguém que na idade adulta se assume como tal) cuja certidão de nascimento informa que o seu nome de registro é “Carlos”. Mudar o nome para “Carla” (ou qualquer outro) ainda é um desafio cheio de transtornos.
Qual dos dois banheiros?
Adotar um novo nome tem a ver basicamente com uma mudança de gênero. De modo semelhante, para resolvermos com sabedoria a questão principal colocada pelo “caso Laerte” (i.e., sob que circunstâncias o comportamento individual deve ser balizado pelo sexo ou pelo gênero), deveríamos antes estabelecer certas distinções. Por exemplo, a segregação entre banheiros masculinos e femininos deve estar fundamentada em uma distinção de sexo ou de gênero? No primeiro caso, a solução é mais ou menos óbvia: o banheiro masculino seria destinado apenas e tão-somente a indivíduos do sexo masculino (i.e., machos masculinos e machos femininos), enquanto o banheiro feminino seria destinado a indivíduos do sexo feminino (i.e., fêmeas femininas e fêmeas masculinas). Todavia, se a segregação estiver fundamentada em uma distinção de gênero, a solução seria outra...
Referências citadas
BARNES, R. S. K. & outros 4 coautores. 2008. Os invertebrados: Uma síntese, 2ª edição. São Paulo, Atheneu.
ROUGHGARDEN, J. 2005. Evolução do gênero e da sexualidade. Londrina, Planta.
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo, escritor e autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)

terça-feira, 28 de maio de 2013

Roberto Civita: um retrato empresarial e humano - Alberto Dines

Um relato objetivo sobre o homem enquanto empresário, e sua trajetória pouco conhecida.
Paulo Roberto de Almeida

ROBERTO CIVITA (1936-2013)

Editor, empresário, professor

Por Alberto Dines 
Observatório da Imprensa, em 28/05/2013 na edição 748
A praxe sugere uma advertência que este observador cumpre a contragosto: ao assumir uma amizade de cinquenta anos fica parecendo que este texto estaria condicionado pelas emoções da perda pessoal. A pulsão de contar uma história (ou a compulsão do testemunho) geralmente obedece a motivações subjetivas, o que não as desqualifica nem as subordina a outros interesses. O relato acrítico, pretensamente objetivo, este sim é sempre deficiente. Ruim.
Os releases biográficos publicados na mídia foram pródigos em lembrar as façanhas de Roberto Civita ao criarRealidadeVeja e Exame num mercado de revistas até então dominado por O Cruzeiro e Manchete visivelmente dependentes do glamour da antiga capital federal.
Quando RoC (como assinava os bilhetes) procurou dar uma entonação verdadeiramente nacional à prospera editora de quadrinhos e revistas de serviços (fundada pelo pai, Victor Civita, na Marginal Tietê), deslocou para sempre o eixo jornalístico do país.
Os formidáveis aportes dos “anos de ouro” do jornalismo carioca (1949-1956) foram ultrapassados por um profissionalismo made in São Paulo jamais manifestado ou suplantado.
Em busca do modelo
Aqui entra o “professor” Roberto Civita com a sua obsessão por treinamento e qualificação. Parte do sucesso inicial de Veja deve-se ao curso pelo qual passou o seu quadro de jornalistas antes mesmo de impresso o projeto-piloto. O “estilo Veja de redação” (que tanta celeuma provocou nos primeiros anos) não aconteceu por acaso, foi seu subproduto.
O Curso Abril de Jornalismo, criado na década de 1980, mantém até hoje turmas anuais e, de certa forma, foi a matriz do seu projeto mais ambicioso em matéria de formação profissional: o Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, em parceria com a ESPM, hoje na terceira edição anual.
Durante dois anos, Roberto Civita percorreu as principais escolas de jornalismo dos Estados Unidos, conversou com reitores, analisou grades curriculares, ajudou a selecionar o corpo docente e inclusive assumiu uma disciplina. Isso fazia parte de um postulado que não cansava de repetir: “Alguém precisa fazer o papel de chato, melhor que seja eu”.
Ironia, Veja foi o primeiro veículo de grande porte a atacar a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo (1982), mas a Editora Abril foi também a primeira organização jornalística a ter como publisher um graduado em Jornalismo (pela Universidade da Pensilvânia).
Impossível verificar se em 2009 Roberto Civita concordou com o ministro Gilmar Mendes, relator da questão do diploma no STF, de que jornalismo, não sendo profissão, dispensa uma formação específica. A verdade é que todo o seu currículo como editor, publisher e empresário representa uma aposta consistente na direção contrária.
Esta vocação ancestral para ensinar aliada à insaciável curiosidade intelectual e amparadas por um fabuloso tino comercial foram as responsáveis por um trunfo que os primeiros obituários não tiveram tempo de valorizar: a Abril Educação (herdeira da Fundação Victor Civita, criada nos anos 1980) é empresarialmente tão importante quanto a Editora Abril – um poderoso conglomerado de editoras de livros didáticos, cursos de idiomas, escolas técnicas e universidades particulares.
Enquanto o jornalismo impresso debate-se em busca de um modelo de negócios capaz de neutralizar alguns efeitos da formidável onda digital, a Abril aponta na direção da indústria do conhecimento, um binômio estável, composto por vetores convergentes e associados: Imprensa e Educação.
Empresas divididas
De todas as nossas indústrias a da Comunicação é a que se assume como a mais legítima representante do modo capitalista de produção. Contudo, nem todas as empresas e grupos jornalísticos nacionais seguem seus paradigmas. Como se a ruidosa filiação à iniciativa privada e ao capitalismo fosse suficiente para garantir o sucesso empresarial.
Não é. O fato de serem organizações familiares não chega a ser entrave. Mas a transparência permanece uma questão chave, mesmo quando não são empresas de capital aberto ou quando suas ações não estão cotadas em bolsa.
Os irmãos Roberto e Richard Civita sempre trabalharam juntos, depois se separaram agressivamente, dividiram a empresa (Editora Abril e Abril Cultural). Apesar do forte sacolejo, o processo seguiu os cânones modernos da administração graças à intervenção de consultores e árbitros respeitados pelas partes. Reconciliaram-se como irmãos, a sociedade acabou.
As débâcles do Jornal do BrasilGazeta Mercantil, Grupo Bloch, as precariedades do espólio dos Diários Associados e o susto por que passa o Grupo Estado exibem uma caricatura do sistema capitalista justamente numa indústria que deveria ser o seu abre-alas, carro-chefe.
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Em aberto
Ao lembrar que a biografia de Roberto Civita começa a movimentar-se quando a família é obrigada a fugir da Itália fascista e antissemita, somos remetidos a um conjunto de situações e ingredientes geralmente desconsiderados ou atenuados em nosso biografismo e historiografia.
Por duas vezes os Civita foram obrigados a abandonar as editoras em que trabalhavam tocados pelo terror político. A segunda vez foi nos anos 1970, quando o ramo argentino, da noite para o dia, deixou a sua empresa e o país assustado pelas ameaças simultâneas das milícias de extrema esquerda e extrema direita.
O tópico lembra uma agenda de conversas infelizmente inconclusa. Roberto Civita, o racional, não a deixaria assim.
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O mesmo número do Observatório da Imprensa traz todas estas matérias, sobre Civita e sobre o outro morto ilustre do jornalismo brasileiro, Ruy Mesquita:


ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Alberto Dines
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Paulo Nogueira
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Carlos Costa
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Veja.com
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Cynthia Malta
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Luís Nassif
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
OESP
ROBERTO CIVITA (1936-2013)
Globo.com
RUY MESQUITA (1925-2013)
Fernando Morais
RUY MESQUITA (1925-2013)
Mino Carta
RUY MESQUITA (1925-2013)
Matías M. Molina
RUY MESQUITA (1925-2013)
Leão Serva
RUY MESQUITA (1925-2013)
Paulo Nogueira
RUY MESQUITA (1925-2013)
Roberto Salone
RUY MESQUITA (1925-2013)
Flávio Tavares
RUY MESQUITA (1925-2013)
Sandro Vaia
RUY MESQUITA (1925-2013)
Felipe Machado
RUY MESQUITA (1925-2013)
Oscar Pilagallo
RUY MESQUITA (1925-2013)
José Serra