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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Paulo Antonio Pereira Pinto: um africanista e um asianista exemplar, agora em Burkina Faso

Tenho o prazer de transcrever o mais recente artigo do meu amigo Paulo Antonio Pereira Pinto, o famoso PaPePinto do Itamaraty, provavelmente o único "tout-terrain" da carreira, como já provou diversas vezes nos mais diversos cantos do planeta, quase um Indiana Jones da diplomacia brasileira.
Paulo Roberto de Almeida

Burkina Faso – a Terra dos Homens Livres, onde a negociação continua

Paulo Antônio Pereira Pinto

Mundorama, 02/09/2013

Após a grata surpresa de que Burkina Faso significa “Terra dos Homens Justos”, fica-se sabendo que seu Ministro da Economia se chama Bem Bamba.  Mesmo assim, o país consta da lista dos cinco mais pobres. A impressão inicial, no entanto, é a de que esta parece ser uma daquelas estatísticas, que não se sabe direito como são feitas. Pelo menos na capital Uagadugu, a situação de miséria não é tão grave quando comparadas, por exemplo, com a Índia, onde entre os 700 milhões de miseráveis, os urbanos vivem ao relento. Aqui, há aquele comércio informal que persegue o visitante nas paradas de trânsito e em frente a estabelecimentos e mercados, mas também há muitas lojas, à beira das ruas, que expõem móveis e produtos diversos, indicando que há uma classe média ascendente bem bamba. As pessoas parecem alegres e simpáticas.
Costuma-se dizer que Burkina Faso é 50% cristã, 50% muçulmana e 100% animista. Um dos desafios intelectuais, portanto, será  procurar entender a boa convivência local com o Islã. No Mali vizinho, como se sabe, tal “coabitação” não tem sido bem sucedida.
De regresso temporário à África, após ter servido no continente, entre 1976 e 1982, sucessivamente em Libreville, Maputo e Pretória, procuro fazer breve exercício de reflexão, sobre os obstáculos que foram superados, naquelas décadas, e a atual satisfação que o trabalho de política externa pode proporcionar ao diplomata brasileiro em postos africanos.
Na África Ocidental de colonização francesa, quando da abertura de nossas Embaixadas, a partir da década de 1970, tratava-se mais de ouvir discursos nos quais seus dirigentes, com frequência, deixavam escapar frases como “nous les français”. Identificavam-se, dessa forma, como elite local, com valores semelhantes aos das depostas autoridades da antiga metrópole.
Gradativamente, cabia apresentar o Brasil não como um “candidato a mais a colonizador”, nem com projeto apenas mercantilista, mas como parceiro capaz de encontrar “soluções comuns para problemas comuns”. Por exemplo, na Libreville super-tropical, no início dos anos de 1970, os franceses haviam construído um hospital com “teto de proteção contra neve”, que contava, também, com cozinha não equipada para o preparo de comida africana. Eram trágicas, então, as imagens dos pacientes em quartos “aquecidos contra a neve” e seus familiares cozinhando alimentos nos corredores. Pouco a pouco empresas de engenharia nossas foram se apresentando como parceiros mais adequados e, como consequência, diferentes formas de cooperação científico-tecnológica e diálogo político se foram consolidando.
Em Moçambique, onde servi, entre 1977 e 79, logo após a Independência, não causava boa impressão dizer que “falamos a mesma língua”, pois, quase sempre a resposta dos dirigentes do novo país era a de que “nunca ouvimos o sotaque brasileiro, na luta contra os imperialistas portugueses”. Estava viva, ainda, na memória dos vitoriosos, que o Brasil votara, sistematicamente na AGNU, contra a condenação do colonialismo português. Foi necessário, então, trabalho de enorme paciência para identificar objetivos nacionais comuns – inclusive o da preservação do idioma herdado – graças à liderança do Embaixador Ítalo Zappa, um dos responsáveis, como se sabe, pela mudança de orientação em nossa política africana.
Exerci a encarregatura de negócios em Pretória, entre 1979 e 82, como Segundo Secretário, pois mantínhamos Embaixada, sem titular, a título de protesto contra o “apartheid”. No início dos três anos e meio de chefia, a primeira coisa que fiz, a título de protesto quanto ao racismo em vigor, foi contratar uma secretária negra – algo proibido pelo “Jobs reservation act”, que então determinava ser tal emprego ocupado apenas por brancos. Tive minha sala invadida três vezes por consulentes inconformados ao serem atendidos por uma africana.
Tive oportunidade de relatar ao Itamaraty, naquele período, encontros que mantive com lideranças anti-appartheid. Para visitar o Dr. Natho Motlana, tinha que ir a SOWETO, com escolta armada de aliados do dissidente, obtida pela já citada secretária africana. Fui o primeiro diplomata estrangeiro a oferecer jantar ao Bispo Tutu, que chegou atrasado, por ter que superar sucessivos obstáculos ao ingresso de negros à Residência, situada em bairro nobre da então Pretória branca. Restou-me uma grande frustração. Pedi e não fui autorizado, pelo regime militar brasileiro, a viajar à ilha  onde se encontrava preso  importante opositor do regime: Nelson Mandela.
Verifica-se, atualmente, que a emergência da Nova África sofre ainda de condicionamentos de seu passado colonial, no que diz respeito à visualização de suas trajetórias estratégicas no século XXI. Países africanos avançam em processo de autonomia e desenvolvimento ancorado em imensos recursos naturais de que dispõem. Em sua trajetória para a construção de uma sociedade urbano-industrial, precisam integrar-se a diferentes sub-regiões para desenvolver espaços econômicos, políticos, socioculturais, técnico – científicos capazes de sustentar projetos nacionais.
Nesse sentido, caberia efetuar o reconhecimento do avanço das diferentes formas de cooperação científica e tecnológica e intercâmbios comerciais, já existentes entre o continente e o Brasil. O autor não está habilitado a relatar em detalhes todos os projetos já realizados, nem seria possível contê-los neste curto espaço. O trabalho de implementação das soluções comuns para problemas compartilhados e o incremento das trocas de bens e conhecimentos é, sem dúvida, enorme e gratificante desafio para as Embaixadas brasileiras em capitais africanas.              Há que ter cuidado, contudo, para não identificar, em cada manifestação de apreço por líder africano pelo Brasil, uma busca por modelo de governança nosso a ser adaptado a este continente.
Quanto ao momento atual do cenário afro-ocidental, conforme visto de Uagadugu, registro, por exemplo, a situação quase inusitada, na política internacional, em que um país, considerado como dos mais pobres do mundo, o Burkina Faso, é capaz de desempenhar mediações regionais, como o fez com papel definitivo na questão do Mali e, segundo consta, teria atuado também na crise da Costa do Marfim.
Nas décadas de 1970-80, quando servi na África Austral, foram indispensáveis aos movimentos de libertação nacional os então chamados “países da linha de frente” – entre outros, Tanzânia e Zâmbia desempenharam este papel com respeito à FRELIMO, de Moçambique e, como se sabe, este agiu da mesma forma quanto à ZANU, no caso do Zimbabwe. Tratava-se, naquela época, de fornecer refúgio, em território vizinho, para “freedom fighters”. Em retaliação, sofria-se com bombardeios das potências coloniais, que faziam numerosas vítimas, entre a população civil do anfitrião dos guerrilheiros. Não havia registro, no entanto, de algum ator regional capaz ou desejoso de atuar como mediador.
De acordo com registros disponíveis, o “país dos homens justos” substituiria, hoje, o lema, em vigor há  mais de trinta anos, de “a luta continua”, pela persistência na negociação.
Obtém, como resultado, recompensas na atração de auxílio financeiro externo para o reforço da governabilidade interna. Despojados de riquezas próprias, os “burquinabés” se beneficiariam, econômica e politicamente, da mediação de conflitos entre países vizinhos.
Assim, a organização de frequentes conferências regionais e internacionais mais amplas gera atividades econômicas nesta capital, enquanto personalidades associadas ao Governo, como recompensa pelos serviços de mediação executados, são elevadas a posições de realce em organizações dedicadas à promoção da paz e do desenvolvimento.
O Burkina Faso depende fortemente de ajuda do exterior, que corresponderia a cerca de 80% de seus investimentos públicos. Os aportes externos totalizariam US 400 milhões anuais. O país conta, ademais, com estimadas 16000 organizações não governamentais, que trariam outras centenas de milhões de US para sua economia.
Registre-se a abertura de Ouga – na versão simplificada do nome complicado da cidade – a todas as formas de cooperação externas. É um dos poucos aliados diplomáticos de Taiwan e, até recentemente, se identificava com a Líbia, tendo o falecido Cel. Kadhafi investido em projetos locais. O principal hotel desta capital exibia enorme fotografia do ex-líder.
França e Estados Unidos parecem atribuir importância ao Estado burkinabé. A visível parceria militar favoreceria a França, por resultados positivos, repetidamente obtidos pelo Burkina Faso, em negociações para a libertação de prisioneiros capturados por movimentos islamistas na área do Sahel.
Washington teria superado antipatias quanto a Ouga, a partir da década de 1990, durante a qual, sempre como resultado da vocação local para estabelecer vínculos de cooperação externa, este país cultivou laços com Charles Taylor e Mouammar Kadhafi. A partir do início do milênio em curso, no entanto, melhorou o diálogo entre as duas capitais, inicialmente pela disposição burkinabé, segundo consta, de permitir o cultivo, neste país, de algodão por controvertido método da empresa norte-americana Monsanto.
A principal importância do Burkina Faso para a França e os EUA parece ser a atual utilização deste país por bases militares para os conhecidos “drones” que policiam “movimentos terroristas” no Sahel.
Quanto ao efeito de toda a cooperação externa para a governabilidade interna, há controvérsias. Por um lado, seu regime tem sido blindado contra críticas do exterior, em benefício das bem sucedidas parcerias mencionadas acima e pelo livre exercício de milhares de ONGs, também já citadas.
Por outro, a ausência de condenações, a “imperfeições”  de suas formas de governança, atrasa reformas necessárias ao aperfeiçoamento político interno e a introdução de novos mecanismos de inclusão social. Seria ingênuo imaginar que é “impossível de prever ou inacreditável não antecipar” que a África Ocidental permanecerá imune às turbulências políticas vizinhas.
Aprendi, a propósito, que a « parenté à plaisanterie » é uma prática social utilizada no Burkina Faso e outros países desta região, que consiste em brincadeira com a troca de “insultos simulados” entre indivíduos de diferentes famílias e etnias, como forma de aliviar tensões do convívio diário, bem como evitar confrontações, como resultado de heranças de conflitos históricos, rivalidades religiosas ou étnicas. Este ritual de “indelicadezas”, que inclui diferentes xingamentos, sinceros ou não, contribui para uma tolerância sustentável, entre grupos com identidades distintas que, como se sabe, foram forçados a conviver, pelo colonialismo europeu, em unidades políticas, cujo futuro é ainda incerto.
A leitura dos jornais aqui publicados, a propósito, transmite a impressão de que o mesmo conceito lúdico se aplica ao debate político. Assim, metade de cada diário parece dedicar-se a “cartas abertas” de personalidades que criticam ou apoiam medidas governamentais. Não me é possível, ainda, concluir quando e como a oposição de ideias, sinceras ou não, levarão a políticas de interesse público. Pode tratar-se, apenas, de prática política da tal “parenté à plaisanterie”
Aproveito para citar, a respeito da influência aqui exercida por nosso País, que: “Pôr-se-ia, como hipótese, que o Brasil, apesar de todos os seus recursos, ainda não se deu a trabalho que o valesse, não por obstáculos internos ou externos, mas simplesmente porque o não concebeu suficientemente claro. E, se algum trabalho tem, é esse de ajudar a sair de suas indeterminações os povos do mundo que não encontram, nas grandes nações, guia algum que valha a pena seguir; primeiro a África.” Agostinho da Silva, in Perspectiva brasileira de uma política africana.
Finalmente, cito que, por ocasião de encarregatura em Maputo, em algum período entre 1977 e 79, compareci, com outros representantes estrangeiros, ao aeroporto, para despedida de praxe do Presidente Machel, que viajava ao exterior. Ao cumprimentar-me Samora Machel se defrontou com um Terceiro-Secretário, envergando terno comprado em Paris, me questionou sobre as relações bilaterais e, diante de minha aparência e postura sofisticada nas respostas, observou ao então Vice-Presidente Marcelino dos Santos: “Este jovem é muito frio para ser brasileiro”. Prontamente, tendo uma recaída carioca, lhe respondi: “O que o Sr. esperava, que eu estivesse fantasiado de baiana e assoviando a Aquarela do Brasil?”. Ele sorriu, satisfeito por me ter transmitido lição sobre como os africanos enxergam os brasileiros. A partir de então, para não ser mais confundido, só usei aqueles “safari suits”, a exemplo das autoridades e funcionários locais e voltei a falar como o fazia na Praia de Ipanema, onde me criei.
Logo após minha chegada a Uagadugu, em agosto, recebi a visita do jovem brasileiro Hugo Reichenberger, funcionário da UNHCR, que cuida de refugiados do Mali no Burkina Faso, que me informou haver lugares, em sua área de trabalho, onde o ingresso de “homens brancos” não é permitido. Rindo, me disse ainda já ser do conhecimento dos grupos armados da região, que ele não é branco – é brasileiro.
Paulo Antônio Pereira Pinto é Diplomata. Em Missão Transitória na Embaixada em Uagadugu, Burkina Faso. Chefe do Escritório de Representação do MRE no Rio Grande do Sul (ERESUL). Foi  Embaixador do Brasil em Baku, Azerbaijão, entre 2009 e 2012, e Cônsul-Geral em Mumbai, entre 2006 e 2009. Serviu a partir  de 1982, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. Na década de 1970 trabalhou, na África,  nas Embaixadas em Libreville, Gabão, e Maputo, Moçambique e foi Encarregado de Negócios em Pretória, África do Sul.  As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Russia: A Eurasia de Putin: “Oligarcas e Autocratas, uní-vos!” - Paulo Antonio Pereira Pinto


Mundorama, 09/01/2012

Logo após ter sido declarado novamente candidato a Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin anunciou, em outubro passado, proposta de novos vínculos para um espaço pós-soviético, que sugere caminho no sentido de uma “União das Repúblicas do Exterior Próximo”. Em sua dimensão política, a idéia poderá não ser mal recebida por dirigentes de países emancipados da URSS, em 1991, que anseiam por emular a forma de governança ditada por Moscou, como recurso para manterem-se no poder. Em algumas dessas capitais, tratar-se-ía apenas de retocar vícios herdados e preservados, a partir da independência da União Soviética. O artigo, a seguir, não pretende tratar, em detalhes, das implicações econômicas de tal proposta.
O retorno ao ordenamento antigo poderia ser conveniente para lideranças que desejam se manter no poder, por exemplo, ao Norte e Sul do Cáucaso. Neste lado da cordilheira, a real preocupação é evitar que a turbulência que se vive, no momento, no Oriente Médio e África do Norte, possa afetar a  conveniente situação de inércia regional, como resultado de manifestações locais a favor de maiores direitos políticos. O ressurgimento do paradigma soviético de governança, reitera-se, seria oportuno para lideranças que se sentem ameaçadas.
O artigo de Putin “Um novo projeto de integração para a Eurasia: o futuro que nasce hoje”2, sugere, nessa perspectiva, algo mais parecido com roteiro de um bem organizado retorno a um passado saudoso, do que movimento em direção a novo objetivo. Isto porque, durante a existência da URSS, Moscou dirigia todos os detalhes da organização político-sócio-econômica das Repúblicas Socialistas, entre as quais se incluíam as “Transcaucasianas”3. A réplica deste mesmo projeto permeia a descrição da proposta do ex e futuro Presidente da Federação Russa.
Assim, Vladimir Putin retoma, com o conceito da União Eurasiática, a defesa da fusão de mecanismos de integração existentes, com vistas à criação de um pólo de poder no mundo contemporâneo e ponto entre a Europa e a região da Ásia e Pacífico. O líder russo revela que a meta é chegar a “patamar superior de integração”4. Na prática, isso significaria a reconstrução de relações com os países do “exterior próximo”, que integravam tanto o Império Russo, quanto a União Soviética.
Lembra-se que, durante a existência da URSS, enquanto novas “Repúblicas”, traçadas a partir de Moscou, foram se consolidando, classes dirigentes fortaleceram-se com métodos de governança soviéticos, tais como julgamentos e execuções sumários, e “desaparecimentos”. Na medida em que estas “modalidades de controle social” íam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades congelavam  elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais.
Pode ser oportuno, neste ponto, recordar, em linhas gerais, como se consolidaram os vínculos russo-caucasianos. Seria possível estabelecer 1820, segundo bibliografia disponível, como marco de partida para este cenário, quando  o Império Persa renunciou a suas pretensões quanto à área, enquanto os otomanos também perderam aqui sua autoridade. A partir de então, à exceção de curto período – entre 1918 e 1921 – após a Revolução Bolchevique e a guerra civil que se seguiu, o Norte e Sul do Caúcaso permaneceram sob a dominação russa, até a desintegração da União Soviética.
Hoje, a parte Meriodional integra a Federação Russa e a Austral é  composta por Azerbaijão, Armênia e Georgia, ainda sujeitos a forte influência econômica, de políticas energéticas e de segurança emanadas de Moscou.
Ressalta-se, a propósito, que não se considera aqui estar esta região  “predestinada” a ser controlada pela longínqua Moscou. Aos russos, como se sabe, coube um custo enorme  para garantir seu domínio. A consolidação das fronteiras imperiais, até as margens do Mar Cáspio, consumiu uma centena de anos, com atos que, hoje, seriam considerados genocidas, como a queima de povoados caucasianos, assassinatos da população nativa e deportações maciças. Lembra-se que, até os dias atuais, movimentos de insurgência continuam a desafiar a autoridade russa na  Chechênia e Daguestão.
Ocorreu, como se sabe, longa evolução, desde os tempos quando o Império Russo, em sua fase modernizadora sob Pedro “o Grande”, expandiu-se, a partir do Mar Negro, rumo ao Cáspio. Os novos invasores consideravam, então, ser aquela região habitada por populações primitivas, incluindo muçulmanos, pagãos e até adeptos do Cristianismo. Tratava-se de gente que escravizava mulheres européias, saqueavam comerciantes e tribos diversas que guerreavam entre si. Eram, portanto, “bárbaros” que deveriam ser “civilizados” pelas forças imperiais russas.
Tal postura perduraria até meados do século XIX, quando noticiário na Europa Ocidental e América do Norte começou a divulgar a luta dos povos das altitudes do Cáucaso contra os invasores russos. Criou-se, então uma certa analogia entre o que se passava nesta parte do mundo com o que acontecia nas fronteiras do “West” dos EUA. Tinha início uma fase de romantismo alimentado por autores renomados como Pushkin e Tolstoy, ao descreverem a “nobreza” daqueles povos, vítimas de atrocidades dos dirigentes em Moscou. “Fast foward”, e chega-se à segunda metade do século XX, quando a União Soviética procura fortalecer seu “caráter multicultural”, como etapa natural no sentido da “tomada definitiva do poder pelo proletariado”.
Buscava-se, então, criar condições regionais que refletissem a forma como russos e outros cidadãos soviéticos concebiam seu próprio país. Grupos de danças da região Transcaucasiana, com suas vestimentas típicas, o vinho da Georgia, o brandy da Armênia e os tapetes do Azerbaijão, tornaram-se símbolos daquele parte da URSS, bem como da “maneira soviética de ser e sentir”. Daí, este exotismo todo ser, naquele período, celebrado e satirizado, ao invés de temido. Filmes populares consolidavam a boa índole e naturalidade das pessoas do Sul da URSS, bem como as boas maneiras e ânsia de vida de suas populações.
Tais manifestações artísticas, no entanto, gradativamente passaram a ter conteúdo de protesto quanto à ausência de liberdades. Emblemático foi o lançamento do filme “Repentance”,  uma das obras mais significativas do final do período soviético. Dirigido por Tengiz Abuladze, nacional da Georgia, em 1986, a película cinematográfica aborda a política de violência e disputas territoriais, resultantes de ambições pessoais que levaram populações da URSS à ruína. O enredo trata da morte de um Sr. Varlam, prefeito autoritário de município não identificado, naquele país, ao Sul do Cáucaso. Após o enterro, a população local verifica que o corpo continua ressurgindo, em diferentes lugares, como se tivesse “vida própria”. Descobre-se, finalmente, que uma mulher, cuja família havia sido vítima de crueldades do falecido dirigente, era a responsável, após cada renovado enterro, pelo reaparecimento do cadáver. Levada a julgamento, a cidadã é considerada insana. Mas, perante o tribunal, a acusada consegue fazer denúncias que desmoralizam o ex-Prefeito Varlam. O filme transmitia a mensagem inconfundível de que, então, a União Soviética tinha que assumir o seu passado autoritário, para que  “os fantasmas de seus tiranos” deixassem de assombrar o processo de reformas político-econômicas exigidas no país.
Assim, no que diz respeito ao Cáucaso – mesmo com a independência de Azerbaijão, Armênia e Georgia -  no final da década de 1990 e início dos anos 2000, velhos hábitos ligados à doutrina estalinista de governança perduravam,  apesar do colapso da estrutura do Estado Soviético. Da mesma forma que o enredo do “Repentance”, citado acima, reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre esta região, continuavam a ressurgir, sem que mitos daquelas sete décadas de escuridão tivessem sido enterrados – como o corpo do falecido Prefeito Verlam.
Ao mesmo tempo, partes do Cáucaso, mantinham práticas antigas de governança. Isto tem sido possível, em virtude do legado do pensamento estalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento russo, deixado para trás, quando do recuo de seus exércitos, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes que identificavam conflitos históricos, entre si, reais ou imaginários.
Cabe retornar, neste ponto, ao argumento mencionado nos parágrafos iniciais, no sentido de que seria conveniente, para  autoridades ao Norte e Sul do Cáucaso, o ressurgimento do paradigma soviético. Conforme se procurou argumentar, normas de conduta e cumplicidades então cultivadas continuam a sustentar  regimes políticos nesta região, que se sentem, no momento, ameaçados pelas turbulências causadas pelo arco de instabilidade no Norte da África e Oriente Médio.
É a conveniência da promessa de estabilidade – cabe ressaltar – oferecida pela proposta de Putin que agrada autoridades destas ex-Repúblicas Soviéticas. Afinal acena-se com um “patamar superior de integração” com a reconstrução das relações com os países do “exterior próximo”, que integravam o Império Russo e a URSS.
Seria possível, então, a partir da formação desta nova “União de Repúblicas”, poder contar com o apoio de Moscou, caso  a juventude local queira livrar-se da persistente invocação, pelas classes dirigentes, de passado cheio de massacres – ocorridos ou não – sem referência a projeto de paz futuro, como forma de controle social. Haveria, então, a possibilidade de manter esta realidade opressiva, sem o evento de manifestações em defesa de liberdades individuais.
Autocratas e Oligarcas, uní-vos! – seriam as novas palavras de ordem, emanadas de Moscou. A utopia a ser agora  perseguida, no espaço pós-soviético, representaria “um futuro que nasceu”, com apelo a público bastante distinto daquele proletário, há quase um século, e beneficiaria, hoje, os que pretendem se perpetuar no poder, no Norte e Sul do Cáucaso.
Paulo Antônio Pereira Pinto é diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriormente, como Cônsul-Geral em Mumbai, entre 2006 e 2009 e, a partir  de 1982, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. Na década de 1970 trabalhou, na África,  nas Embaixadas em Libreville, Gabão, e Maputo, Moçambique e foi Encarregado de Negócios em Pretória, África do Sul.  As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com)