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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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terça-feira, 14 de maio de 2013

Cortem-lhes as maos, e os pes....; onde estamos?

Não, não é em nenhum país muçulmano "moderno", como a Arábia Saudita. Nem no famoso conto de Lewis Carroll: a rainha preferia que fosse logo cortada a cabeça, o que, reconheçamos, é muito mais eficaz.
Foi no Portugal moderno -- sim, o primeiro Estado moderno da Europa -- a dispor de uma legislação consequente com a gravidade do crime.
Devo esta a meu amigo Paulo Werneck, pesquisador de coisas impossíveis.
Acho que funcionaria, hoje também...
Paulo Roberto de Almeida

Paulo Werneck
Blog Guardamoria,  13 May 2013

Afonso II, terceiro rei de Portugal, reinou de 1211 a 1223.
Fonte:Wikipedia

Menos belicoso que seu pai, D. Sancho I, e que seu avô, D. Afonso I, o famoso Afonso Henriques, fundador do estado português, dedicou-se a organizar o reino e deu atenção à legislação.

Desenvolveu talvez o primeiro conjunto de leis portuguesas, as quais  são as mais antigas dentre as contidas nas Ordenações del Rei Dom Duarte, nome dado a uma compilação de legislação, da qual restam poucas cópias, feita para o uso pessoal desse que foi o décimo primeiro rei de Portugal.

Das leis de Afonso II, que pouco tem a ver com o tema deste blogue, extraí apenas uma lei, que reprime a falsificação de metais preciosos e de moeda, medida necessária para o desenvolvimento do comércio. 
Constitucom xxiiij que pena deuem auer os que falsam moeda ou prata

Se o noso moedeiro ou outro falsar moeda . E desto forem ueençidos talhem-lhe os pees E as maãos E perca quanto ouuer E esto meesmo estabellecemos nos ouriuezes que se trabalham de falsar o ouro E a prata mesturando-lhes algũa outra cousa ou doutra guisa.
A leitura é algo difícil para quem não está acostumado: os caracteres "j" e "u" podem ter o valor de "i" e "v", conforme o contexto; as letras maiúsculas servem para marcar a pontuação; a grafia é bem diferente da atual; até mesmo o significado das palavras pode ser traiçoeiro... Atualizando apenas a grafia, temos: 
Constituição xxiv que pena devem haver os que falseiam moeda ou prata

Se o nosso moedeiro ou outro falsear moeda . E disso forem vençidos talhem-lhe os pés E as mãos E perca quanto houver E esto mesmo estabelecemos nos ourives que se trabalham de falsear o ouro E a prata misturando-lhes alguma outra cousa ou doutra guisa.
Atualizando a sintaxe e semântica, temos: 
Lei XXIV: Da pena aplicável aos falsificadores de moedas, ouro e prata.

Se um cunhador oficial ou outro qualquer falsificar moeda, e por isso for condenado, deve ter os pés e as mãos amputados, e perder todos os seus bens. A mesma pena deve ser aplicada aos ourives que falsificarem ouro e prata misturando, misturando-lhes alguma outra coisa ou de qualquer outra forma.
Era bem arriscado ser falsificador naquela época...

Observação: essa lei foi referenciada no "Additamentos e Retoques á Synopse Chronologica", da seguinte maneira:
Reinado do Senhor D. Affonso II
Era 1229 (An. 1211)
Leis feitas nas Cortes de Coimbra, em que o mesmo Snr.
...
23ª Que fossem punidos os que fazem moeda falsa; ou falsificão ouro, ou prata.
...
Fonte:
PORTUGAL. Ordenações del-Rei Dom Duarte. Pag. 52. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
RIBEIRO, João Pedro. Additamentos e Retoques á Synopse Chronologica. Pag. 4. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1829.

domingo, 3 de março de 2013

O fechamento do Brasil (a coisa vem de longe) - Paulo Werneck

Não, não é de hoje que estou falando, embora em nossos tempos também tenha muita gente interessada em decretar o fechamento do país a qualquer comércio estrangeiro, a começar, como sempre acontece nessas coisas, pelas autoridades políticas, nisso pressionadas pelos interesses protecionistas que sempre emergem dentre os seus financiadores naturais, que são os homens de negócio, os capitalistas, os monopolistas e cartelizados habituais.
O fechamento é um pouco mais antigo, como revela aqui esta excelente postagem do meu amigo Paulo Werneck, imbatível nessa penosa tarefa de desenterrar textos antigos de nossa história econômica, especialmente aduaneira, e recolocá-los para nossa leitura e prazer atual.
Muito obrigado.
Paulo Roberto de Almeida

Proibição de Navios Estrangeiros irem ao Brasil
Paulo Werneck
Guardamoria, 02 Mar 2013 05:39 PM PST

Cantamos em verso e prosa as maravilhas da Abertura do Portos, promovida pelo então Príncipe Regente Dom João, que teria acabado com o exclusivo colonial, que impedia o comércio do Brasil com as demais nações do mundo. A questão é saber quando e como houve o fechamento.

Um alvará de 1605, no governo de Felipe II, redigida numa mescla de diploma legal e desabafo, determina o fechamento total do Brasil, assim como das demais possessões portuguesas, ampliando o fechamento anterior, de 1591, promovido por seu pai, Felipe I, que ainda permitia a válvula de escape da concessão de autorizações caso a caso.

Alvará, em que se prohibe irem Náos, ou Navios Estrangeiros á India, Brasil, Guiné e Ilhas, ou outras Provincias de Portugal.

Eu ElRei faço saber aos que esta minha Lei virem, que El-Rei, meu Senhor e Pai, que santa Gloria haja, passou uma Lei feita a 9 de Fevereiro de 1591., pela qual, sob as penas nella declaradas. defendeo, e mandou que nenhuma Náo, nem Navio Estrangeiro, nem pessoa Estrangeira, de qualquer sorte, qualidade e Nação que seja, não pudesse ir, nem fosse dos Portos do Reino de Portugal, nem fóra delle, ás Conquistas do Brasil, Mina, Costa de Malagueta, Reino de Angola, Ilhas de S. Thomé, ou Cabo-Verde, e quaesquer outros Lugares de Guiné e Resgates delles, sem particular licença sua. E depois o dito Senhor, e Eu concedemos algumas licenças a Contratadores, e pessoas particulares, para poderem mandar Urcas, e Navios com Marinheiros, e pessoas Estrangeiras ás ditas partes Ultramarinas, dando fianças a partirem do Reino de Portugal em direitura para as partes declaradas nas ditas licenças, e tornarem em direitura a Portugal; e que os ditos Navios e pessoas Estrangeiras, que nelles fossem, serião de Nações amigas, e não das rebeldes, e outros inimigos. E por que depois fui informado por certas e verdadeiras informações, que das ditas licenças se tem usado mal, mandando com provas falsas alguns Navios de rebeldes; e derrotando-se a torna-viagem para fóra do dito Reino contra o que tinhão promettido, e sem embargo das fianças, que tinhão dado, e que nisto erão culpados alguns dos mesmos Contratadores e outros Vassallos meus, que por seus interesses e respeitos particulares fazião derrotas os ditos Navios, e commettião outros enganos e fraudes contra a dita Lei: do que tudo tem resultado grandes inconvenientes em prejuizo de meu serviço, e perda de minhas rendas, e damno commum de todos meus Reinos e Vassallos, e perder-se o trato e commercio delles, com se levarem a Terras e Reinos estranhos as mercadorias e fazendas, que se trazem de meus Estados Ultramarinos, e faltarem em Portugal, de que procedia não fazerem os Naturaes delles Navios, em que pudessem navegar, e perder-se a criação, que nelles se fazia de Marinheiros, que pudessem servir depois em minhas Armadas, e na Carreira da India. E por todos estes damnos serem tão grandes, houve por necessario e conveniente mandar tratar do remedio delles, e por parte dos Contratadores de minhas Alfandegas, e do páo e dizimos do Estado do Brasil, e do provimento dos Lugares de Africa, me foi pedido, que assi o mandasse, e que elles desistião das licenças, que por seus contratos lhes estavão dadas para poderem mandar ás ditas Conquistas Urcas e Navios Estrangeiros; e sendo tudo bem visto, e tratado pelos do meu Conselho, e sendo-me consultado, mandei passar a presente, pela qual hei por bem, e mando que do dia, em que esta se publicar em diante, não possa Navio algum de quaesquer Nações Estrangeiras ir á India, Brasil, Guiné e Ilhas, nem a quaesquer outras Provincias, ou Ilhas de minhas Conquistas e Senhorios, assim descubertas, como por descubrir; e sómente poderáõ ir ás Ilhas dos Açores e da Madeira, come atégora costumavão, e não a outra parte alguma; e isto sendo de Nações amigas, e não dos ditos rebeldes. E outrosi hei por bem, que nos Navios de meus Naturaes não possa ir pessoa alguma Estrangeira, ainda que moradora seja em meus Reinos; e que todos os Estrangeiros, que viverem, e forem moradores, ou estantes nas partes da India, e no Brasil, Guiné e Ilhas de S. Thomé e Cabo-Verde, e nas ditas Ilhas dos Açores e da Madeira, não possão mais viver nellas; e sejão obrigados a se vir para o Reino de Portugal os que estiverem nas partes da India, nas primeiras Náos, que dellas partirem para o Reino, depois de publicada nellas esta minha Lei; e os que estiverem no Brasil, e mais partes Ultramarinas do Cabo de Boa Esperança para cá, serão obrigados a se sahir dellas, e vir-se para o Reino dentro de um anno, contado do dia da publicação desta minha Lei em Lisboa. E revogo, e hei por revogadas todas, e quaesquer licenças, que estiverem dadas por Provisões e Alvarás meus, e para quaesquer contratos, para os ditos Navios e pessoas Estrangeiras poderem ir ás ditas partes Ultramarinas, e que dellas se não use, nem tenhão força e vigor algum; e qualquer Navio de Estrangeiro, que for ás ditas partes Ultramarinas contra o conteúdo nesta minha Lei, hei por bem que seja perdido com toda a fazenda, que nelle for, assi dos Mestres, e Senhorios dos ditos Navios, como de quaesquer pessoas; e álem disso, os que nos ditos Navios Estrangeiros embarcarem algumas fazendas, ou mercadorias, perderáõ outrosi toda a mais fazenda, que tiverem, e seráõ degradados para sempre para Africa sem remissão; e não se lhes poderá tomar petição de perdão, nem valerá, ainda que se passe: e quaesquer Estrangeiros, que em Navios seus, ou alheios, ou de meus Naturaes, forem ás ditas partes contra esta minha Lei, álem de incorrerem, como dito he, na perda de suas fazendas, incorreráõ em pena de morte, e será nelles executada sem appellação nem aggravo, por mandado de qualquer Governador, ou Capitão, ou Julgador, ante quem forem accusados, ainda que a dita execução não caiba em suas alçadas; e na mesma pena de morte incorreráõ quaesquer de meus Naturaes, que fretarem os ditos Navios, e em qualquer outra maneira os mandarem por si, ou por outrem ás ditas partes Ultramarinas, e será nelles executada pela dita maneira sem appellação, nem aggravo; e todos os que forem contra o conteúdo nesta Lei, poderáõ ser accusados por qualquer pessoa do Povo, e os accusadores haveráõ ametade do valor das fazendas, em que forão condemnados, e a outra ametade pertencerá á minha Fazenda. E outrosi hei por bem, que todos os que desde agora forem contra o conteúdo na dita Lei, feita por ElRei, meu Senhor, que Deos tem, ou se derrotarem, ou fizerem derrotar, possão pela dita maneira ser accusados por qualquer pessoa do Povo, e que hajão ametade das penas, em que forem condemnados; e tudo o conteúdo nesta minha Lei hei por bem, e mando que se cumpra, e guarde inteiramente, sem embargo de quaesquer Leis, Ordenações, Regimentos, Doações, Privilegios, Contratos, Foraes, e quaesquer Provisões, geraes e particulares, que, em contrario haja; por que todas hei aqui por derogadas, posto que de cada uma, dellas fosse necessaria fazer-se expressa menção. E esta Lei valerá Carta, feita em meu nome, por mim assignada, e passada pela Chancellaria, sem embargo da Ordenação do Liv. 2. Tit. 40., que o contrario dispoem: e para que a todos seja notorio o conteúdo nella, mando ao Chanceller mór que a faça publicar na Chancellaria, e passe disso sua certidão nas costas desta dita Lei; e registar-se-ha nos livros de minha Fazenda, Casa da India, Alfandega da Cidade de Lisboa, e nos mais pórtos de Mar do Reino de Portugal; para o qual effeito o Vedor de minha Fazenda lhes enviará o traslado concertado por um dos Escrivães delIa, e outro tal aos Corregedores e Provedores, em cujas Comarcas estiverem pórtos de Mar; e assi enviará outros traslados a todos os Lugares das partes da India, Brasil, Guiné e Ilhas, para lá se publicar, e registar esta minha Lei, e vir á noticia de todos, Gaspar de Abreu de Freitas a fez em Valhadolid a 18 de Março de l605. O Secretario Luiz de Figueiredo a fez escrever. REI.

É interessante a redação contra a lei do alvará: não faz menção às normas revogadas, embora fosse a isso obrigado. Parece desrespeitar o disposto no título 40 do livro 2 das Ordenações Filipinas, que determinava:

Mandamos, que as cousas, que passarem por Nós, cujo effeito haja de durar mais de hum anno naõ passem por Alvarás, mas de todas se façaõ Cartas patentes, que comecem: Dom Joaõ & C. E fazendo-se por Alvarás, sejaõ nenhuns, e naõ se faça por elles obra, nem execuçaõ, e o Escrivaõ, que fizer por Alvará o que havia de fazer por Carta, pagará o interesse á parte. Porêm, se Nós passarmos Alvarás de mercês de quaesquer cousas, ou promessa dellas, que façamos a algumas pessoas, para as haverem de haver dahi a algum tempo, posto que o cumprimento das taes mercês possa ser depois do dito anno, todavia valeráõ os Alvarás, sem ser necessario passarem por Cartas, sendo porém passados pela Chancellaria.

Como o alvará foi mandado passar pela Chancelaria, atendeu à exceção prevista nas Ordenações. O mais incrível é que determina que devam ser ignorados os perdões reais que houver por bem determinar no futuro!

Para a compreensão do texto, é necessário lembrar-se que "derrota" é um termo náutico que pode se referir à viagem de retorno, ou ao trecho navegado.

Contratador pode se referir tanto àquele que obteve um contrato para explorar algo, como pau brasil, devendo pagar por isso, como àquele que venceu uma licitação para administrar a cobrança de tributos, ficando com os tributos arrecadados e pagando uma quantia determinada. Assim essa lei foi feita atendendo às reclamações, entre outros, dos contratadores das alfândegas, prejudicados com a sonegação feita pelos contratadores das autorizações para mandarem naus buscarem mercadorias nas possessões portuguesas.

Curiosa a expressão "ou estantes nas partes da India", onde estantes não significa móveis para guardar livros ou outros objetos, mas as pessoas que estão em algum lugar.

Fontes:
FREITAS, Joaquim Ignacio de. Collecção Chronologica de Leis Extravagantes, Posteriores a Nova Compilação das Ordenações do Reino, Publicadas em 1603. Páginas 36 a 40. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1819. Disponível em http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/185579.
PORTUGAL. Ordenações, e leys do reyno de Portugal, confirmadas, e estabelecidas pelo senhor Rey D. João IV. Lisboa: Mosteiro de S. Vicente de Fóra, Camara Real de Sua Majestade, 1747. Disponível em http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/242778.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Sciencia Economica, ao estilo classico - Paulo Werneck

Meu amigo Paulo Werneck, aduaneiro de profissão, historiador de coração, mantém uma das mais interessantes páginas de história econômica e de comércio exterior que eu conheço: Guardamoria.
Lá é onde ele guarda, mas nos mostra, os mais diferentes acepipes de sua vasta cozinha de pesquisas, com seus comentários intercalados a sondas informações históricas e úteis esclarecimentos sobre os fundamentos de nossa atual economia.
Estão duvidando que o Estado brasileiro -- e o português antes dele -- sempre foi um tosquiador dos contribuintes, dos empresários, dos comerciantes? Não tem problema: basta consultar a página do Guardamoria para lá sair com essa péssima impressão. Somos vítimas, há séculos, de um Estado espoliador, explorador, prebendalista, gastador improdutivo e todos os outros qualificativos que vocês preferirem.
Mas, no momento, apenas um reflexo das coisas boas que muito de vez em quando também produzimos.
José da Silva Lisboa, o homem que antecipou a inteligência como fator de produção, nisso superando Adam Smith.
Paulo Werneck nos faz o favor de revisitar nossa história.
Paulo Roberto de Almeida 



Posted: 26 Sep 2011 12:34 PM PDT
Paulo Werneck

Visconde de Cairu 

Em 1º de novembro de 1755, quando o Grande Terremoto de Lisboa destruiu a cidade, Dom José I governava um país entregue às chamas da inquisição e fechado ao renascimento científico. A outrora modelar Universidade de Coimbra estava fechada no ensino do direito canônico, banidos Descartes e Newton. 

Apresentou-se, "para enterrar os mortos e alimentar os vivos", Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, que a partir do desastre veio a se tornar ministro todo poderoso, reconstrutor de Lisboa e modernizador de Portugal. 

Pombal havia sido embaixador do Reino em Londres, onde conheceu as idéias de Jean-Baptiste Colbert, pensador mercantilista, que havia sido ministro de Luís XIV e é considerado pai da Aduana francesa. Tal pensamento, para um reino atavicamente atrasado, sem indústria, mera sanguessuga de um império colonial problemático, foi uma renovação 

Entretanto, morto José I, sua filha Maria Francisca, que se tornou a rainha Dona Maria I, a Louca, o colocou no ostracismo e começou a desfazer a sua obra, restaurando a influência da Igreja e da velha nobreza. 

Quando o Príncipe Regente chegou ao Brasil, fugindo dos franceses para manter o trono, uma nova mudança de ventos se fez patente: Dom João, preocupado com a administração científica do Reino, nomeou José da Silva Lisboa professor de Ciência Econômica, para ministrar aulas no Rio de Janeiro, pelo Decreto de 23 de fevereiro de 1808, passado ainda na Bahia:
Sendo absolutamente necessario o estudo da Sciencia Economica na presente conjunctura em que o Brazil offerece a melhor occasião de se pôr em pratica muitos dos seus principios, para que os meus vassallos sendo melhor instruidos nelle, me possam servir com mais vantagem: e por me constar que José da Silva Lisboa, Deputado e Secretario da Mesa da Inspecção da Agricultura e Commercio da Cidade da Bahia, tem dado todas as provas de ser muito habil para o ensino daquella sciencia sem a qual se caminha ás cegas e com passos muito lentos, e ás vezes contrarios nas materias do Governo, lhe faço mercê da propriedade e regencia de uma Cadeira e Aula Publica, que por este mesmo Decreto sou servido crear no Rio de Janeiro, com e ordenado de 400$000 para ir exercitar, conservando os ordenados dos dous logares que até agora tem occupado na Bahia. As Juntas da Fazenda de uma e de outra Capitania o tenham assim entendido e fação executar. Bahia 23 de Fevereiro de 1808. Com a rubrica do Principe Regente Nosso Senhor.
Lisboa, futuro Visconde de Cairu, à semelhança de Pombal, havia estudado Adam Smith, um dos primeiros economistas clássicos. Não cabe aqui traçar-lhe uma biografia. Basta informar que ele havia tomado posse dos cargos na Mesa da Inspeção da Agricultura e Comercio, por determinação do próprio Príncipe Regente em 23 de julho de 1798 e havia publicado, em Lisboa, as obras "Princípios do Direito Mercantil e Leis da Marinha" e "Princípios de Economia Política".


Deve-se notar que Cairú não chegou a exercer o cargo de professor, mas isso não o desabona, pois foi muito ativo na aplicação dos princípios econômicos que defendia, como membro do governo, e na divulgação dos mesmos por meio de obras escritas. 

Note-se que, por graça de Dom João, continuou a receber a remuneração pelos cargos que exercia na Bahia, apesar de se mudar para o Rio de Janeiro, numa época em que as comunicações eram demoradas e difíceis, e não se pode dizer que possuísse o dom da ubiquidade de Santo Antonio, quem foi alistado como major de infantaria nas tropas de linha tanto do Rio de Janeiro como da Bahia, percebendo os respectivos soldos (Decretos de 14 de julho de 1810 e 13 de setembro de 1810). 

Referências 

BRASIL. Colecção das Leis do Brazil de 1808: Cartas de Lei, Alvarás, Decretos e Cartas Régias. p. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. Disponível em www.camara.gov.br

BRASIL. Colecção das Leis do Brazil de 1810: Cartas de Lei, Alvarás, Decretos e Cartas Régias. p. 125 e 149. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. Disponível em www.camara.gov.br

BRUE, Stanley L. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Pioneira, 2005. 

FARIA JÚNIOR, Carlos de. O Pensamento Econômico de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em História. São Paulo: USP, 2008. 

SHRADY, Nicholas. O Último Dia do Mundo: Fúria, ruína e razão no grande terremoto de Lisboa de 1755. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

domingo, 25 de setembro de 2011

As alfandegas do Brasil em 1808 - Paulo Werneck

Meu amigo historiador econômico e especialista em comércio exterior Paulo Werneck continua garimpando os arquivos para "desenterrar", literalmente, jóias da Coroa, ou melhor, nossos velhos conhecidos, os impostos alfandegários. 
Parece que a voracidade vem de longe, sempre existiu e não parece perto de terminar...
Paulo Roberto de Almeida 

Guardamoria, 24 Sep 2011 09:45 AM PDT
Paulo Werneck

A Carta Régia da Abertura dos Portos definiu que na entrada deveriam ser cobrados vinte e quatro por cento; a saber:
vinte de Direitos grossos, e quatro do Donativo já estabelecido, regulando-se a cobrança destes direitos pelas Pautas, ou Aforamentos, por que até o presente se regulão cada huma das ditas Alfandegas, ficando os Vinhos, e Aguas Ardentes, e Azeites doces, que se denominão Molhados, pagando o dobro dos Direitos, que até agora nellas satisfazião.

Direitos Grossos

Direitos grossos, segundo Godoy, apud Cavalcanti, correspondem aos Direitos grandes, vigentes nas alfândegas portuguesas, sendo a soma da sisa e da dízima da alfândega.

Efetivamente, no Capítulo LXXII do Foral da Alfândega de Lisboa, "Que trata dos direitos que devem pagar todas as mercadorias de qualquer sorte, e qualidade que forem", estão estabelecidos 10% de alíquota para cada um desses tributos:
Ordeno, e mando, que todas as mercadorias de qualquer ſorte, e qualidade que ſejaõ que á dita Alfandega vierem, e a ella pertencerem, vindo dos portos do Reino por ſoz, e fóra delle por mar, ou por terra, ſe paguem na dita Alfandega dez por cento de dizima, e dez por cento de ſiza logo por entrada, os quaes direitos ſe pagaráõ, e arrecadaráõ inteiramente pela ordem deſte Foral, tirando das mercadorias abaixo declaradas.

Donativos

Quanto ao donativo de 4% já estabelecido, qual seria? Temos uma pista dada por Carrara: haveria um donativo real da alfândega da praça do Recife, pelo prejuízo do terremoto de Lisboa, oferecido deste 1756, e que por ordem régia ficaria extinto em março de 1805. A favor dessa pista temos alíquota e hipótese de incidência idênticos.

Entretanto Ferro apresenta, num estudo sobre os protestos ocorridos em Salvador contra o referido donativo, uma extensa lista das diferentes hipóteses de incidência do mesmo nas diversas capitanias, o que depõe contra a generalidade da imposição do donativo nas alfândegas.

Ficamos assim, por enquanto, na dúvida.

Pautas ou Aforamentos

Apesar de a carta régia definir os direitos como ad valorem, ou seja, calculados sobre o valor das mercadorias, determina que sejam utilizadas as pautas ou aforamentos. Tais pautas consistiam em listas de mercadorias que determinavam a quantia a ser cobrada em cada caso.

Por exemplo, uma pauta utilizada na Bahia, em 1789, relacionava as mercadorias em ordem alfabética, separadamente por "drogas", vendidas por quantidade; "fazendas pertencentes ao pezo", vendidas a peso; "fazendas pertencentes ao sello", que também pagavam imposto do selo; e "fazendas da Asia", produzidas nas possessões portuguesas.

Exemplos de drogas e fazendas pertencentes ao selo:
anzois miudos o milheiro mil r .......... 1@000
anagoas de aniagem cada huma quatrocentos r .......... @400

Na hora do despacho, os valores das mercadorias não eram avaliados com base nos documentos dos importadores, mas eram utilizados aqueles previamente arbitrados pelas autoridades, os quais não eram inseridos nas pautas, mas já os montantes dos direitos a serem cobrados, como se tratasse de alíquotas específicas (isto é, alíquotas sobre quantidade, peso ou outra característica da mercadorias).

Veja também neste blog:

Referências:
CARRARA, Angelo Alves. Receitas e Despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2009.
CAVALCANTI, Amaro. Elementos de Finanças. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1896.
FERRO, Carolina Chaves. Terremoto em Lisboa, Tremor na Bahia: Um protesto contra o donativo para a reconstrução de Lisboa (1755-1757). Dissertação (Mestrado em História). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2009.
GODOY, José Eduardo Pimentel de. Dicionário de História Tributária do Brasil. Brasília: ESAF, 2002.
PORTUGAL. Cópia da pauta que serve na alfândega da cidade da Bª. pª. despacho das mercadorias que nella entrão, mandada tirar pelo Dezor. Provedor atual Felipe José de Faia. Datada da Bahia 14 de outubro de 1789 e assinada pelo administrador da Alfândega Agostinho José Barreto. [Disponível na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro). Manuscrito em bom estado]

terça-feira, 15 de março de 2011

Contrabando no Brasil: glorioso passado, resistente presente, brilhante futuro...

Vejam este texto primoroso de nossas sempre atentas autoridades aduaneiras, para defender a legítima produção nacional, contra a concorrência desleal de gregos e goianos; hoje diríamos, chineses e asiáticos...
Pesquei no blog encantador do meu amigo Paulo Werneck. Saboreiem, mas não se empanturrem, o que também é permitido...
Paulo Roberto de Almeida

Contrabando ou Descaminho?
Blog Guardamoria, 14 Março 2011
Paulo Werneck
Barras de ouro da Casa de Fundição de Vila Rica
Fonte: http://www.ufmg.br/

Há quem sustente que contrabando e descaminho são figuras distintas, pela qual a primeira refere-se à entrada no País de mercadorias de importação proibida e a segunda à entrada de mercadorias lícitas, mas com pagamento a menor, ou nenhum pagamento, dos direitos de entrada.
Discordo totalmente. Entendo que ambas representam a mesma infração, com uma diferença: no contrabando a mercadoria sempre cruza a fronteira, enquanto descaminho refere-se a qualquer sonegação de tributos referentes a mercadorias.

O Alvará de 14 de novembro de 1757 é muito claro ao referir-se ao contrabando como um ilícito que consiste no furto do tributo devido na entrada dos bens, que também prejudica os comerciantes, pois a mercadoria contrabandeada pode ser vendida a preço menor:

EU EL REI Faço saber aos que este Alvará com força de Lei virem: Que sendo o delicto do Contrabando hum dos mais perniciosos entre os que infestão os Estados; e dos que se fazem na Sociedade Civil mais odiosos; porque tendo a vileza do furto, não só he commettido contra o Erario Regio, e contra o Publico do Reino, onde he perpetrado; mas tambem quando grassa em geral prejuizo do Commercio, he a ruina do mesmo Commercio, e o descredito dos Homens honrados, e de bem, que nelle se empregão em commum beneficio; porque podendo os Contrabandistas, que fazem os referidos furtos, vender com huma diminuição de preços, respectiva aos Direitos, que devião pagar; succede aos que cumprem com a obrigação de os satisfazerem, ficarem com as suas fazendas empatadas nas lojas, sem haver quem lhas compre; e julgar-se nelles fraude, e ambição sinistra, pela maior carestia, que comparativamente se encontra nos generos, que expõem para a venda: [...]
No Alvará de 3 de dezembro de 1750, Capítulo VI, número 1, vemos a figura do descaminho aplicada à movimentação interna de ouro sem o pagamento dos tributos, no caso o Quinto:

Toda a peſſoa de qualquer qualidade, eſtado, ou condição que ſeja, que levar para fóra do diſtricto das Minas ouro em pó, ou em barra, que naõ ſeja fundida nas Reaes Caſas da Fundiçaõ, e que naõ ſeja approvada por legitimas guias, incorrerá na pena de perdimento de todo o ouro deſencaminhado, e de outro tanto mais, ametade para o denunciante, ou deſcubridor do deſcaminho; e a outra ametade para os cofres do Quinto abaixo declarado; a cujo monte accreſcerá aſſim o deſcaminho achado, como as penas delle, naqueles caſos em que naõ hover denunciante, nem deſcubridor, a quem ſe adjudiquem as ametades, que por eſta Lei lhes ficaõ pertencendo.
O ouro foi descaminhado (= desencaminhado, tirado do caminho) porque não pagou os tributos devidos, os quais teriam sido recolhidos se o referido ouro tivesse seguido o caminho correto, ou seja, tivesse sido levado à uma Real Casa de Fundição, onde seria fundido e teria sido cobrado o tributo.


Fontes:
O Alvará de 14 de novembro de 1757 está na "Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações", no volume referente à Legislação de 1750 a 1762, de António Delgado da Silva, impresso em Lisboa pela Typografia Maigrense, em 1830.
O Alvará de 3 de dezembro de 1750 encontra-se no Tomo VI do "Systema, ou Collecçaõ dos Regimentos Reaes", organizado por José Roberto Monteiro de Sousa e impresso em 1791 na Oficina de Francisco Borges de Sousa, também em Lisboa.
Ambas as obras estão disponíveis em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/.