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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Azerbaijão: a esquina de Dede Korkut na Rota das Sedas - Paulo Antonio Pereira Pinto

Azerbaijão: a esquina de Dede Korkut na Rota das Sedas

 

Paulo Antonio Pereira Pinto

Embaixador aposentado; serviu no Cáucaso.

 

Quem são, no Azerbaijão, os azeris: turcos iranianos ou iranianos turcos? Consta que, no início da formação desta nacionalidade, lá pelo Século XIV, o bom ancião Dede Korkut ficava, em área hoje ocupada pelo país, na esquina da Rota das Sedas, e “narrando, espalhava por toda a parte” a epopeia deste povo tão antigo.

A questão não tem apenas o interesse literário sobre a principal narrativa oral dos “povos turcos” – entre eles os azeris, que reverenciam a imagem de Dede Korkut.

Isto porque, o Azerbaijão, como outros estados que se emanciparam da União Soviética, a partir da década de 1990, enfrentam hoje, entre outros, os problemas do estabelecimento de identidades nacionais viáveis e da reconstrução de suas instituições culturais e educacionais – conforme tenho reiterado em sucessivos artigos publicados neste espaço.

                                                       II

Ademais, aquele país vive momento de crescente inserção econômica internacional, em virtude de crescente importância estratégica de seus recursos energéticos. Começa também a participar ativamente da pauta multilateral referente a mudanças climáticas, enquanto se candidata a membro dos BRICS.

O Azerbaijão é palco de história rica e antiga e, da mesma forma que seus vizinhos no Cáucaso, tem sido cenário de batalhas há mais de um milênio. Há evidência de ocupação humana em seu território, desde a Idade da Pedra.

Localizada na convergência de diferentes civilizações, a região foi invadida e disputada por grandes impérios e personagens famosos, como Alexandre o Grande, o General Romano Pompeu, o conquistador mongol Gengis Khan, e o Tzar Pedro o Grande. 

Cartograficamente, o Azerbaijão estende-se do Noroeste do Irã, ao Mar Cáspio, a Leste. Faz fronteira, a Oeste, com a Armênia e Turquia. Ao Norte, situam-se a Geórgia e a Rússia. A nação azeri encontra-se, hoje, dividida em duas partes. A que ocupa o território do país independente, a partir de 1991. E ao Sul, a que habita na parte meridional iraniana. Esta divisão ocorreu em 1828, a partir de tratado entre os Impérios da Pérsia e da Rússia.

Apenas cerca de oito milhões dos nacionais azeris vivem no Azerbaijão. Entre 20 e 30 milhões habitam, ao Sul, no Irã. Estima-se, ainda, que quase dois milhões se encontrem na Turquia e número idêntico na Rússia. Grupos significativos residem na Geórgia, Iraque e Ucrânia.

Há versões distintas sobre a origem étnica desta população, cuja língua é conhecida como azeri e, hoje, segue, majoritariamente o Islã Xiita. 

Hoje, o Azerbaijão, quando reconhecido, conforme mencionado em texto meu anterior, é identificado por situar-se na “esquina do mundo”.

Especialistas e simpatizantes identificam, naquele país, fronteiras entre a Europa e a Ásia, entre o Ocidente e o Oriente, entre o Mundo Cristão e o Muçulmano, entre áreas de influências atuais da Rússia, Irã e Turquia e, na condição de ex-integrante da União Soviética, entre um sistema centralmente planificado e um de economia de mercado. 

                                                              III

Daí, ser importante encontrar algo que defina a identidade cultural azeri. Este esforço leva, inevitavelmente, ao estudo do personagem Dede Korkut.

Trata-se da figura maior da história épica dos oguzes, que  formaram um dos principais ramos dos povos túrquicos, entre os séculos VIII e XI, e são considerados  ancestrais dos turcos modernos. Estes incluem, entre outros: azeris, turcos da Turquia, turcomenos, turcos qashqais do Irã, turcos do Khorassan e gagaúzes, que, em conjunto, representam mais de 100 milhões de pessoas.

 As narrativas místicas fazem parte da herança cultural dos “Estados turcos”, que incluem, hoje, a Turquia, o Azerbaijão e o Turcomenistão, e, em menor grau, o Casaquistão e o Kyrgystão. Para os povos que se consideram turcos, especialmente os que se identificam como “oguzes”, o livro Dede Korkut é o principal registro de sua identidade étnica, história, costumes e de seus sistemas de valores, através da História.

Nos contos, lugares, batalhas, armas, intrigas, cavalos, palácios, fontes e jardins saltam à imaginação. O leitor, então, passa a sonhar como se estivesse assistindo a um filme. Trata-se, como já foi dito, de uma película épica, a definir a consciência coletiva de um povo. Segundo especialistas no assunto, Dede Korkut teria, para o mundo turco e, nesse contexto, para a nacionalidade azeri, o mesmo papel de definição de uma identidade unificadora, que, no Ocidente teriam tido epopeias como a Ilíada e a Odisseia. 

Várias datas são sugeridas para o desenrolar das narrativas de Dede Korkut. A maioria dos estudiosos concordaria que o período mais provável seria o do século XV, na medida em que as tradições orais mencionadas registrariam conflitos entre os oguzes e seus rivais turcos na Ásia Central. Outros autores, no entanto, situam os acontecimentos como ocorridos ainda nos século VIII. A grande dificuldade para o estabelecimento mais preciso das datas deve-se ao fato de que os povos em questão eram nômades, sem deixarem registros por escrito, prevalecendo as narrativas orais.

Os contos épicos de Dede Korkut encontram-se entre os melhores, registrados oralmente, na língua turca. Para especialistas, não há dúvida de que os fatos ocorridos teriam acontecido no território, hoje ocupado pelo Azerbaijão. Na esquina da Rota das Sedas, conforme já foi dito, por ser Baku, então, centro comercial da maior importância, no intercâmbio de bens e convergência de culturas, entre a Europa e a Ásia Central.

Tratam de lutas pela liberdade em época durante a qual os oguzes eram um povo pastoril, em fase de transição para o conceito de uma etnia turca mais ampla. Ocorria, mais uma vez, de um ponto de inflexão na história da região – enquanto o Islã começava a predominar na região, coincidindo com a adoção de um estilo de vida mais sedentário, possivelmente no século XIV.

Hoje publicado em diferentes idiomas, o Dede Korkut registra, como já mencionado, narrativas orais, ora com escritos em prosa, ora em versos. Conclui-se que a epopeia é composta por dezesseis histórias. As doze principais compreendem período posterior à adoção do Islã, pelos turcos. Os heróis, portanto, são retratados como “bons muçulmanos”, enquanto há referências aos infiéis, como vilões. Mas há referências, também a mitologia prevalecente no período anterior à introdução do Islã. 

O personagem Dede Korkut é entendido como o “Vovô Korkut”, uma mistura de curandeiro, profeta e narrador de estórias. É desenhado como um respeitável idoso, de cabelos e barbas brancos. O décimo segundo capítulo faz a compilação de dizeres atribuídos a ele. Representa, portanto, um líder mais velho – conselheiro ou sábio – resolvendo as dificuldades com as quais se confrontam os membros da tribo.

No Brasil, foi publicado um primeiro livro de autor azeri, “O Manuscrito Inacabado”, escrito pelo Prof. Kamal Abdullayev[1], tendo, como pano de fundo, tramas da referida epopeia. Segundo o Prof. Claude Allibert, a obra relata parte desta tradição oral “neste momento em que, a nação azerbaijana reencontra sua identidade, resgata o passado épico e o articula com o presente de um povo que recupera suas raízes”.

Sempre de acordo com o já citado Prof. Claude Allibert, a epopeia Dede Korkut é recitada desde o século IX “atualizada através de técnicas narrativas modernas: micronarrativas, pluralidade de narradores, mudanças de épocas repentinas, retomada de uma mesma passagem que se completa em seguida, adoção de diferentes pontos de vista em torno de uma mesma situação, o que deixa um importante trabalho de compreensão ao leitor, que deve construir sua própria interpretação. A astúcia, a crueldade, e a beleza de certa violência guerreira, nem sempre contida, podendo explodir de modo brutal nos confrontos e nos castigos demoníacos, recobrem a atmosfera oriental arcaica que remete o leitor europeu à história mongol.” 

                                                                  IV

Retorna-se, neste ponto, ao argumento citado acima sobre a problemática atual dos estados emancipados da URSS, no que diz respeito à recuperação de suas identidades nacionais e reconstrução de mecanismos institucionais.

Cabe recordar, a propósito, que, na década de 1960, quando se tornaram independentes a maioria das ex-colônias europeias, na Ásia e África, havia um mundo bipolarizado com escolhas de sistemas de governança mais simples e bem definidos: o socialista ou o capitalista. Era, então, possível a um país recém-independente escolher, como modelo, um ou outro. Como consequência, um poderoso aliado e grupo significativo de simpatizantes era imediatamente adquirido.

Quando emergiram da União Soviética, no entanto, as novas repúblicas tiveram que inserir-se, a partir de 1991, em emaranhado de “geometrias político-econômicas variáveis”, que não lhes garantia aliados automáticos. 

 Além disso, com a globalização já em vigor, receberam prontas cobranças sobre como adotar modernas legislações para formas de governança que respeitassem direitos humanos, meio ambiente, propriedades industriais e intelectuais e outras maneiras de comportamento internacional então aceitáveis. 

Conforme já foi dito em texto anterior, o Azerbaijão vive momento de crescente inserção econômica internacional, em virtude da importância estratégica de seus recursos energéticos. Este esforço, no entanto, não é descolado do exercício de resgate de sua identidade cultural.  Daí, a reflexão sobre suas tradições, como narrativas orais, não desperta apenas curiosidade literária.

Há historiadores que afirmam ter Dede Korkut vivido, no século XIV, ao Sul do Cáucaso, por 295 anos. Chego a acreditar, pois, visitei em 2011 – como Embaixador do Brasil - a região de montanhas de Lerik, na parte meridional do Azerbaijão, onde existe uma povoação conhecida pela longevidade de seus habitantes, vários com mais de 100 anos de idade. Isto seria explicado por um microclima que combinaria umidade, tipo de alimentação, um determinado chá, mel de abelhas raras, muitas caminhadas e qualidade de água.

Lá encontrei um cidadão que alegava ter 137 anos. Entre as perguntas rotineiras que lhe formulei, ficou a relativa à melhor época de sua vida. Criticou, a propósito, a parte final do Império Russo, no início do século passado, que abraçava então o Sul do Cáucaso, sem oferecer boas condições materiais à população azeri. 

Bom mesmo, para sua vizinhança - alegou politicamente correto - tem sido o período iniciado com a liderança atual da família Aliyev, autoritariamente no poder em Baku, a partir de 1993.

 

[1]  O Manuscrito Inacabado. Por Kamal Abdullayev. Ideia. João Pessoa. 2009.