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terça-feira, 14 de novembro de 2023

Os EUA e a questão palestina - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo

Os EUA e a questão palestina

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 14/11/2023


Desde a decisão da ONU em 1947, pela criação dos estados de Israel e da Palestina  até a crise atual, uma retrospectiva objetiva da política externa americana em relação às crises no Oriente Médio mostra que, ao ignorar as violações do direito internacional - ocupação do território palestino, assentamentos ilegais na Cisjordânia, isolamento da Faixa de Gaza, tentativa de anexar o que resta da Palestina e outras considerações geopolíticas - Washington não contribuiu nem para o encaminhamento de decisões para garantir a segurança de Israel, nem para a busca da paz pela desocupação do território palestino e a criação do segundo Estado definido na partilha. Agora, pela primeira vez, de forma pública e privada os EUA estão insistindo fortemente numa solução política. Os entendimentos em 1978 (Camp Davies) e 1983 (Oslo) estavam na direção correta, mas a política dos dois Estados não contou com o apoio decisivo de Washington.

Embora isolado no “inabalável” apoio político, econômico e militar a Israel, os EUA aparentemente estão chegando ao limite de tolerância em relação à ação militar contra o Hamas, em função do dano colateral contra a população civil. Na linha enunciada pelo presidente Biden, o Assessor de Segurança Nacional do EUA, Jack Sullivan, admitiu candidamente gestões privadas de Washington junto ao Primeiro-Ministro Netanyahu em cinco questões cruciais: cautela na invasão terrestre, proteção da população civil, negociação, via Catar, para liberação dos reféns em mãos do Hamas, assentamentos ilegais de colonos israelitas na Cisjordânia e a criação do Estado Palestino. Sullivan deixou implícito na entrevista que o Primeiro-Ministro israelense não estava dando atenção às gestões dos EUA. Confirmando isso, Netanyahu em entrevista pública, disse que não iria autorizar o cessar fogo, apesar de toda a pressão humanitária. No final da semana passada, o secretario de Estado Antony Blinken voltou pela terceira vez a Israel para convencer o governo de Netanyahu a minimizar o risco da população civil e a concordar com uma pausa humanitária para aliviar a pressão da opinião publica contra a escalada militar de Israel. Visivelmente constrangido, nada pode anunciar e teve de ouvir das autoridades israelenses que só haveria uma pausa humanitária se o Hamas liberasse previamente todos os reféns. Israel anunciou que terá responsabilidade sobre a segurança em Gaza no pós-guerra, enquanto os EUA dizem que os palestinos deverão retomar o controle sobre a região.

A evolução da crise em Gaza, com a possível escalda das operações militares ampliando o conflito para toda a região não pode ser descartada. As manifestações de força dos EUA, de caráter dissuasório, para impedir ataque a Israel por outros grupos radicais de influência do Irã e de outros países, funcionaram. Os pronunciamentos do líder do Hezbollah e dos presidentes dos países do Oriente Médio, reunidos na Arabia Saudita, foram o reconhecimento explícito disso, ao evitar subir o tom das ameaças contra Israel.  A ninguém (EUA, Irã, China, Rússia), nesse momento, interessa que o conflito saia de controle

 O fator que hoje está mais presente nas considerações de todos os países, e até certo ponto mesmo em Israel, é a crescente reação da opinião pública em todos os países árabes e em alguns países ocidentais, dado à importância da participação de imigrantes de origem muçulmana nas populações locais (Inglaterra e França). O antissemitismo e a islamofobia estão aumentando. Nos EUA, as demonstrações de apoio à questão palestina se sucedem em universidades e lugares públicos e os jovens filiados ao Partido Democrata se afastam de Biden e protestam contra a política dos EUA para a região exigindo a criação do Estado Palestino. A questão do Oriente Médio será um elemento com força na campanha eleitoral de 2024 e a administração Biden começa a dar sinais de que terá de mudar de política se quiser contar com os votos dos jovens e da crescente comunidade muçulmana nos EUA.

Em termos regionais, a situação dos EUA evoluiu da gradual perda de importância política no Oriente Médio, ocorrida nos últimos anos, para o total envolvimento político e militar na região. Isolado no apoio a Israel e desenvolvendo uma política para evitar novos ataques ao país, no final da operação militar, os EUA estarão em uma posição de força para liderar uma fórmula política que encontre uma solução para a desocupação da Faixa de Gaza e o recuo dos assentamentos ilegais na Cisjordânia, fortalecendo ainda a Autoridade Palestina, parte legitima para participar dessa negociação. 

 O processo negociador não será breve, mas poderá ser facilitado pela mudança do governo em Tel Aviv com a substituição do PM Netanyahu por uma coligação de centro-direita e não de extrema direita como é hoje. A pressão da opinião pública global e interna nos EUA, no contexto eleitoral que se aproxima, deverá fortalecer o apoio, desta vez, decisivo, para a criação do Estado Palestino, mesmo com a oposição de grupos radicais em Israel. Não haverá alternativa política para Washington. Essa é a única forma de garantir a segurança de Israel e a paz na região. Além da força eleitoral de Biden em 2024.

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comercio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

A tirania da mediocridade - Rubens Barbosa (O Estado de São Paulo)

 A TIRANIA DA MEDIOCRIDADE

Rubens Barbosa

O Estado de São Paulo, 22/08/2023

 

     Poucos pensam e discutem o BRASIL acima de preocupações político-partidárias e de interesses pessoais. Não se trata de criticar a ação do governo de turno e de outros que o precederam. Hoje, na prática, o país está sem projeto de nação, que defina os rumos da economia, sem estratégia nacional de segurança, que defina o lugar do Brasil no mundo em rápida e profunda transformação, sem uma clara definição de objetivos modernos para a educação que dê base para a inovação e o desenvolvimento tecnológico, e sem saber como equacionar seus problemas sociais e ambientais a médio e longo prazo. Com forte influência populista, o país está dividido ideologicamente e politicamente. Ao não ousar, vê seu crescimento reduzido, as desigualdades aumentando, a violência crescendo, a base industrial se deteriorando e as vulnerabilidades econômicas, comerciais, sociais, militares e de defesa aumentarem. A segurança jurídica está abalada por decisões contraditórias e a competitividade da economia paralisada pela ineficiência da burocracia e do tamanho do Estado.

          A mediocridade da discussão e das ações burocráticas em grande parte explica essa situação de falta de perspectiva do país. A polarização política e a intolerância deixam a burocracia semiparalisada com receio de assumir decisões que possam ser vistas como partidárias e que poderiam gerar consequência políticas ou mesmo jurídicas contrárias. A sociedade civil está sem liderança para propor a revisão de políticas institucionais de desenvolvimento e reforma política de interesse do país e sem força para propor uma nova relação entre civis e militares, desgastados pelos envolvimentos recentes, para virar a página da histórica interferência militar na política. Os empresários, sobretudo no setor industrial, estão sem projetos e se acomodam aos governos de turno para defender seus interesses setoriais. O sistema político partidário é disfuncional pelo número de partidos, sem uma clara ideologia, atuam na defesa de seus próprios interesses econômicos, comerciais e patrimoniais. O Congresso Nacional tem avançado o exame e a aprovação de algumas reformas, mas a percepção é de que, sem programas claros na defesa dos interesses maiores do país, fica enredado na discussão menor de privilégios e muitos de seus representantes aparecem envolvidos com corrupção. O Judiciário sofre desgaste pela judicialização de questões que o Legislativo e o Executivo não conseguem resolver. Em muitos casos, decisões são tomadas com forte viés político, alterando substancialmente decisões anteriores ensejando a visão de que a política menor, e não a Constituição, prevalece em suas decisões.

         Em um mundo em que o conhecimento está na base das grandes mudanças, com os desafios da aplicação da Inteligência Artificial, o país não consegue superar as deficiências do sistema educacional. As escolas e Universidades, com honrosas exceções, não respondem às necessidades dos novos tempos. Os recursos públicos são mal administrados e o Brasil está muito baixo nos índices internacionais.

          As ONGs e os think-tanks, com uma visão setorial em suas atuações, examinam e atuam com competência nas matérias que discutem, mas, em raros casos, tem força e poder para influir na definição de políticas públicas que possam ser avaliadas e tenham um sentido e uma visão de médio e longo prazo.

           Nessa breve análise que não pretende esgotar o assunto, mas chamar a atenção para as armadilhas de que a sociedade foi vítima, em todas as áreas mencionadas, o que ressalta, lamentavelmente, é o triunfo da mediocridade.

            A mediocridade da classe dirigente historicamente refletida na incapacidade de aproveitar as potencialidades do país para deixar de ser um país do futuro e transformá-lo em uma força global, como ocorreu em Cingapura e na China.

        Para superar essa situação em que a mediocridade prevalece, inclusive pelo despreparo, pelo nepotismo, apadrinhamento, formas disfarçadas de corrupção, nas nomeações para o serviço publico e para as filiações partidárias, o Brasil teria de dar força à meritocracia, para buscar a eficiência e resultado nas políticas em todas as áreas. O termo meritocracia é um neologismo inventado nos anos 1950 pelo sociólogo britânico, Michael Young. No romance The Rise of Meritocracy (O surgimento da meritocracia), Young descreve uma sociedade onde os melhores e mais aptos detém o poder. Ao morrer em 2002, Young estava decepcionado com a vida pública estratificada na Inglaterra, mas tinha esperança na Terceira Via de Tony Blair. 

O valor do mérito é atacado hoje no Brasil todos os dias e em todos os lugares: veja-se como se desenvolve a carreira na classe política e o nivelamento por baixo, por muitos anos, nos principais setores do serviço público. Para muitos dos que o desprezam, o mérito seria uma vitrine enganosa, que dissimula mal a sobrevivência das elites. Os que atacam a meritocracia, com hipocrisia e cinismo, são os principais responsáveis pelos seus desvios.

                A busca da eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente, é o que o Brasil precisa. O setor privado fará sua parte.

Abaixo a tirania da mediocridade.


Rubens Barbosa é embaixador aposentado e presidente do IRICE.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

CÚPULA AMAZÔNICA - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 CÚPULA AMAZÔNICA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 8/08/2023

 

            Pela quarta vez, os presidentes dos países amazônicos vão se encontrar no âmbito da cúpula da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Criada em 1995, a Organização, com sede em Brasília, integrada por Brasil, Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana, Surinã, Colômbia e Equador, é uma decorrência de um tratado assinado em 1978. Para a reunião ocorrendo hoje e amanhã em Belém do Pará, foram convidados representantes de países com florestas tropicais como a Indonésia, Congo Brazzaville, República Democrática do Congo e de entidades governamentais e civis para debater o desenvolvimento econômico associado à preservação ambiental.

A OTCA não tem atuação autônoma. Apoia as decisões negociadas e aprovadas pelos oito países membros e desenvolve projetos e programas na Amazônia. A cooperação de organismos internacionais para a preservação da floresta poderia ser muito ampliada e complementaria os esforços nacionais, caso os governos decidam dar maior protagonismo a OTCA e ampliar a atuação da instituição junto aos organismos internacionais, inclusive financeiros.

            A OTCA ocupou, até aqui, um espaço reduzido na política externa brasileira. Muito pouco aproveitada, a Organização foi ignorada totalmente na última década, apesar de todas as críticas que a política ambiental brasileira vem enfrentando no exterior. Tivesse o Tratado sido melhor aproveitado, o foco das criticas teria sido dividido entre todos os países amazônicos que, em larga medida, deixaram de combater os ilícitos que ocorreram na região com o desmatamento, as queimadas e o garimpo. Mais recentemente, toda essa situação ficou agravada com a crescente presença do crime transnacional envolvendo drogas, armas e minérios. Sem falar no tratamento dispensado às comunidades indígenas.

No encontro presidencial, do ponto de vista diplomático, a cúpula representará oportunidade para retomar e reforçar o diálogo e a região amazônica. A cúpula é o início de um processo com a definição de uma nova agenda para o desenvolvimento integrado com inclusão social e responsabilidade climática, através de mecanismos concretos de cooperação e ampliação dos laços entre órgãos do governo, sociedade civil e acadêmica dos oito países. 

Na preparação do encontro, o presidente Lula encontrou-se com o presidente Petro da Colômbia, que havia convidado a OTAN e os EUA para apoiar atividades para reduzir o desmatamento da floresta do lado colombiano e havia manifestado preocupação com a exploração de petróleo na região.

O encontro de cúpula não tem uma agenda definida, devendo cada chefe de governo apresentar suas propostas e sugestões. O Brasil deverá reiterar seu compromisso de desmatamento zero até 2030 e, se possível, criar metas comuns de desmatamento; buscar maior integração nos esforços das ações para o combate aos ilícitos, representados pelas queimadas, pelo garimpo, a destruição da floresta e para a proteção das comunidades indígenas em toda a região. O combate ao crime transnacional que hoje se espalha pelos países amazônicos, assim como a maior e mais efetiva presença do Estado certamente estará na pauta do encontro. A proposta formulada por Lula da inclusão no âmbito do TCA do Parlamento Amazônico criado em 1989, com sede em Lima, hoje fora do Tratado, também deverá ser apreciada.

Será importante que nessa reunião de cúpula seja explicitada a vontade política de fortalecer a cooperação entre todos os Estados Amazônicos e a OTCA. O trabalho da sociedade civil e das comunidades originárias deveria ser estimulado e apreciado para que sua voz seja ouvida pelos governos nas questões de desenvolvimento sustentável, cujos desafios econômicos, sociais, tecnológicos são gigantescos. Até aqui, os Estados amazônicos atuaram ou deixaram de atuar de forma isolada e descoordenada. As políticas e ações nacionais deveriam ser complementados por ações coletivas, discutidas de forma regional no âmbito do TCA. Vigilância nas fronteiras para combater o crime organizado, cooperação transnacional das polícias, ações para reduzir os ilícitos, controle dos incêndios, da qualidade da água e do mercúrio utilizado no garimpo ilegal, entre outros desafios, muito se beneficiariam da coordenação entre os governos da região amazônica. Ações para atrair financiamento internacional e critica `as barreiras comerciais, sem mencionar a União Europeia, deverão ser examinadas. A questão da proibição exploração de petróleo na Amazônia e a meta comum de desmatamento zero, por falta de consenso, deverão constar, de forma indireta, no exageradamente longo documento final da Cúpula. Questão relevante para o sucesso de uma ação coordenada será a confiança mútua e um real compromisso de transparência na troca de informações sobre essas questões para facilitar a tomada de decisões rápidas e eficientes e a busca de recursos externos, sempre preservando a soberania de todos os países.

Espera-se que as posições conjuntas do encontro sejam levadas a outros fóruns relevantes como a Assembleia Geral das Nações Unidas, a Cúpula do G-20 a ser presidida pelo Brasil em 2024 e a COP a realizar-se em Dubai proximamente, onde a sustentabilidade ambiental será discutida junto com questões econômicas e sociais da região.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras.

 

terça-feira, 11 de julho de 2023

Defesa Nacional: desafios externos e internos - Rubens Barbosa (OESP)

 DEFESA NACIONAL: DESAFIOS EXTERNOS E INTERNOS


Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/07/2023


O cenário internacional vem passando por profundas transformações que terão impacto nos esforços brasileiros para alcançar objetivos relacionados ao seu desenvolvimento econômico e social e, também, à preservação de sua soberania e projeção externa. 

A geopolítica voltou a ocupar o centro das atenções das grandes potências. Os principais atores com capacidade militar e vontade para usá-la, como a OTAN, liderada pelos EUA, a Rússia e a China, encontram-se claramente em rota de colisão. Os EUA deixam cada vez mais claro a intenção de conter os avanços da China no cenário internacional, apesar de atitudes táticas de estabilizar as relações bilaterais e reduzir as tensões. A perspectiva de um conflito entre esses atores não deve ser descartada. A confrontação entre os EUA e a OTAN com a Rússia, por meio da guerra na Ucrânia dividiu o mundo. O Brasil, nas duas crises, definiu sua posição como de autonomia estratégica, de equidistância ativa entre os dois lados. Deve ser lembrado que os países ocidentais estão adotando uma posição muito proativa em questões de clima, inclusive no contexto da Defesa, como evidenciado por declaração da OTAN em sua última reunião na Espanha em 2022. O Brasil tem sido alvo da atenção desses países e reiteradamente criticado pela política ambiental e pela devastação da Amazônia.

Por outro lado, cabe apontar que uma nova era de operações bélicas com o uso de alta tecnologia já começou tornando obsoletos os sistemas de armas usados nos conflitos e os sistemas de defesa para a proteção das fronteiras. Se o Brasil não dispuser de capacidade tecnológica para utilizar meios robóticos e de inteligência artificial estará em grande desvantagem em seu poder de dissuasão, caso tenha de enfrentar qualquer ameaça para a defesa de seus interesses, seu território, sua extensão marítima ou seu espaço aéreo.

Em qualquer desses cenários, o Brasil necessitará de uma capacidade militar crível e muito superior à que hoje possui, para dissuadir possíveis ameaças e para aumentar sua projeção externa. As três áreas ressaltadas na END (cibernética, energia nuclear e espaço) deveriam merecer estímulos, como ocorre nos EUA e na OTAN, para que a produção nacional supere as vulnerabilidades cada vez maiores de nossos materiais bélicos e responda aos novos desafios da inteligência artificial. Nenhum país de grande porte, como o Brasil, pode prescindir de uma capacidade industrial, tecnológica e de inovação própria para manter FFAA modernas e capazes de enfrentar qualquer tipo de ameaças. O Brasil possui uma base industrial de defesa muito pequena e incapaz de atender às necessidades de suas FFAA. Quase todos os meios existentes, e/ou os seus principais componentes e tecnologias críticas, são fornecidos por países da OTAN. É necessário atentar para a qualidade dos investimentos em Defesa já que mais do que 3/4 dos gastos são com bens e serviços de origem estrangeira. É fundamental criar condições para aumentar o conteúdo nacional dos sistemas de Defesa de forma a potencializar a reindustrialização e a geração de empregos. Esta dependência de meios e tecnologias dos países da OTAN se constitui em enorme vulnerabilidade, especialmente no momento que estamos atravessando. Nesse contexto, parece claro que o Brasil necessita começar imediatamente um grande e continuado esforço para desenvolver, da forma mais autônoma possível, sua capacidade militar. É necessário estabelecer uma agenda positiva para a Defesa de curto, médio e longo prazo, que inclua a Defesa como uma das vertentes da reindustrialização do país. A agenda de curto prazo deveria incluir, entre outros aspectos, o fortalecimento da Base Industrial da Defesa por meio de sua crescente nacionalização, da atuação do BNDES e Banco do Brasil para o financiamento do comprador de produtos da BID e outorga de performance bonds e para a criação de empresas críticas de defesa.

Os acontecimentos político-militares recentes e as desconfianças criadas no mais alto nível do atual governo, é importante ressaltar, estão sendo contrabalançados pelo fato de   que, apesar das tentativas da presidência anterior e do envolvimento de militares da ativa em ações político-partidárias, as FFAA, como instituição, nos últimos quatro anos, reafirmaram seu profissionalismo e evitaram qualquer interferência que colocasse em risco a democracia.

Dentro desse contexto, torna-se urgente discutir dois temas: uma grande estratégia para o Brasil, uma estratégia de segurança nacional de médio e longo prazo, a exemplo dos documentos recentes da Alemanha, EUA e Reino Unido. Nesse contexto, deverão ser levadas em conta as atuais vulnerabilidades das FFAA e estimulada, no âmbito das políticas de reindustrialização, o fortalecimento da indústria de defesa. E, com base na nova atitude profissional das FFAA, examinar, de forma transparente, a normalização do relacionamento entre civis e militares com a definição de regras e práticas de um efetivo controle do executivo, legislativo e judiciário sobre os militares, como em muitos países.

Com a palavra a sociedade civil e o Congresso Nacional.

Rubens Barbosa, presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)

 

terça-feira, 23 de maio de 2023

O gradual esvaziamento do Itamaraty - Rubens Barbosa (OESP)

 O GRADUAL ESVAZIAMENTO DO ITAMARATY

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 23/05/2023

 

A política externa, nos últimos 200 anos do Brasil independente, sempre teve um papel muito relevante na defesa do desenvolvimento econômico, dos interesses concretos do país, de sua projeção externa e mesmo de uma atuação, muitas vezes, acima da capacidade de seu poder efetivo. 

 

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e `as ideias por eles defendidas. Essa tendência vem acompanhada pela redução de recursos orçamentários e de crescentes dificuldades enfrentadas pelos diplomatas em termos de fluxo de carreira que tornaram o seu trabalho mais difícil e suas funções diplomáticas mais burocráticas e menos estimulantes para o desempenho de suas missões. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da CAMEX, da APEX, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior, a perda de espaço nas secretarias internacionais dos ministérios, a ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).

 

Isso significa que estamos assistindo o fim da presença do Itamaraty e a perda de espaço das embaixadas no exterior? Fora dos quadros do Itamaraty a quase 20 anos, tenho um distanciamento que me coloca em posição de oferecer algumas considerações pessoais longe de interesses corporativos ou posições defensivas, mas apenas voltadas para o que me parece mais relevante para o país.

 

Nos dias de hoje, visto do ângulo dos interesses permanentes do Brasil e não do governo de turno, o Brasil e o mundo mudaram. Quatro milhões de brasileiros em todos os continentes, esperam assistência não só para providências pessoais, mas sobretudo para apoio em momentos de crise nos países em que vivem. O cenário global, para países do porte do Brasil, apresenta novos e significativos desafios geopolíticos que, em muitos casos, parecem ser ignorados internamente como se o país fosse imune ao que acontece no exterior, seja na área econômica, na de defesa, na saúde, na inovação e na tecnologia. A pandemia e a guerra na Ucrânia, além da rápida mudança na ordem internacional com o isolacionismo dos EUA, a crescente tensão entre os EUA e a China, o reaparecimento da Rússia transformaram o cenário global, colocando os países, e o Brasil não é exceção, cada vez mais dependentes do exterior em muitas áreas, inclusive tecnológicas e industriais. O 5G e a Inteligência artificial, as restrições derivadas de preocupações protecionistas e de meio ambiente e mudança de clima, sem falar nas questões de segurança e de defesa são novos desafios. Integração regional (que o Brasil deveria liderar), abertura de novos mercados para produtos brasileiros, novos acordos de livre comércio, a formação de blocos políticos e econômico-comerciais são algumas das realidades que qualquer governo brasileiro terá de enfrentar nos dias de hoje e no futuro previsível.

 

O Itamaraty, como sempre fez no passado, poderá, de maneira eficiente, ajudar a interpretar o momento de transição para um mundo pós ocidental, como acentuado por Lula na reunião do G7. Nesse contexto, ao invés de esvaziar a Instituição, os governos teriam de fortalecer a estrutura da chancelaria, com reforço orçamentário e humano, para que possa atuar como uma antena de captação dessas mudanças e oportunidades, um instrumento de negociação em novas áreas (tecnologia e inovação), um braço (assistência técnica) para o exercício de “soft Power” na América Latina e na África, um fator de inteligência para a segurança nacional e defesa, um suporte eficiente para a ação de outros órgãos federais, estaduais e de apoio à comunidade brasileira no exterior e aos empresários.

 

No momento de polarização interna, deve ser lembrado, tanto aos governantes, quanto aos diplomatas do Itamaraty, que a diplomacia, como carreira de Estado, tem um dever de lealdade ao governo legitimo do momento ao implementar suas decisões, sem evidentemente ser partidária e muito menos militante do partido e do governo no poder.  O embaixador, como representante do Presidente da República, do governo e de seus ministros, é o responsável pela autoridade do Estado no país em que está acreditado e uma relação de confiança deve existir como pressuposto de seu trabalho. O Itamaraty tem de ser revigorado e recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.

 

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e em Washington. Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

 

terça-feira, 25 de abril de 2023

A parceria estratégica com a China - Rubens Barbosa (OESP)

 A PARCERIA ESTRATÉGICA COM A CHINA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 25/04/2023

 

         O saldo da visita de Lula a China foi positivo, mas, de novo, o marketing foi muito negativo em função dos arroubos verbais presidenciais sobre a guerra na Ucrânia e a parceria estratégica com a China. Apesar de toda sua experiência, Lula está ignorando alguns princípios básicos na diplomacia: saber ficar calado, falar pouco e ter um discurso moderado. Era previsível a repercussão na mídia norte-americana e nacional pelo que foi interpretado como mudança da posição do Brasil e pelas críticas aos EUA. A coincidência da visita do ministro do exterior da Rússia Sergey Lavrov, logo em seguida a visita a Beijing, e a notícia do veto russo `a venda de munição a Alemanha para fornecimento a Ucrânia e possível cooperação nuclear também ajudaram a colocar em dúvida a equidistância brasileira. 

Quando a China propôs uma parceria estratégica com o Brasil na década dos 90, o governo brasileiro apreciou o gesto e proclamou o novo nível do relacionamento bilateral. Acontece que o governo chines havia estudado por muito tempo o que queria dessa parceria e, nos últimos 15 anos, definiu seus interesses e objetivos na área agrícola e mineral. Passados três décadas dessa parceria estratégica, o Brasil ainda não definiu como quer se beneficiar dela.

O comunicado conjunto, publicado ao final da visita, em grande parte incluiu declarações de intenção, que poderiam estabelecer as bases da parceria estratégica, segundo o interesse brasileiro: cooperação nas áreas de economia digital, comércio eletrônico, tecnologia de informação, IA, centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação, luz sincroton, cooperação espacial. Caso o governo, o setor privado e a universidade realmente se emprenharem para concretizar essas intenções, tecnologia e inovação poderiam sintetizar o interesse brasileiro na parceria estratégica. Assim, como fez a China nas áreas de seu interesse, cabe ao Brasil tomar as medidas internas necessárias para desenvolver a cooperação em todas essas áreas. O Brasil está atrasado nos avanços científicos e tecnológicos em muitas áreas. Surge a oportunidade de recuperar o tempo perdido e colocar o país na linha de frente da pesquisa e desenvolvimento na inovação, no 5G e na IA. Esse pode ser a longo prazo o principal resultado da visita. Caso a parceria estratégica entre o Brasil e a China se desenvolva e se amplie, será importante dinamizar os mecanismos de cooperação existentes com os EUA, assinar o Acordo com a UE e continuar os entendimentos para a adesão a OCDE ou com quem estiver disposto a colaborar com o Brasil. 

Apesar da retórica da reforma da governança global, o comunicado defende o fortalecimento da ONU e da OMC. A China evitou comprometer-se quanto a candidatura brasileira ao Conselho de Segurança da ONU, quanto a proposta de formação de um grupo da paz para o fim das hostilidades na Ucrânia e a compra de aviões da Embraer. E o Brasil, a aderir `a Rota da Seda. Houve, em separado, uma longa declaração sobre meio ambiente e mudança de clima, acordo do BNDES e Banco chines para empréstimo de US$1,1 bilhão para investimento em infraestrutura, além de acordos comerciais entre empresas e estados.

         Os contrastes e os resultados entre a visita a Washington e a Beijing ficaram evidentes, mas podem ser explicados pela diferente natureza dos encontros com Biden e com Xi Jinping. Nos EUA, a ênfase foi política, com o fortalecimento da democracia e das instituições, além da nova prioridade de meio ambiente e mudança de clima. Na China, foi econômica e comercial, tanto que os aspectos políticos da guerra na Ucrânia, da Rota da Seda, dos semicondutores, da moeda foram minimizados no comunicado conjunto.

         Apesar das críticas, até aqui, não há evidência concreta de que o Brasil esteja abandonando a política, na defesa do interesse nacional, de manter-se equidistante nas tensões entre os EUA e a China, mesmo com a contradição entre princípios e valores e interesses, como de resto ocorre com todos os países, inclusive os EUA e as nações europeias. As declarações presidenciais sobre a guerra na Ucrânia – retificadas no discurso escrito durante a visita do presidente da Romênia e atenuadas ainda mais na visita a Portugal – não devem gerar consequências negativas contra o Brasil, mas podem acelerar o gradual esvaziamento do Itamaraty, como evidenciado na entrevista ao final da visita a Beijing, conduzida por Mercadante e Haddad e não por Mauro Vieira e nas viagens de Amorim a Colômbia, a Rússia e a Ucrânia.

Com a crescente tendência geopolítica de formação de dois polos, repetindo em outras bases a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, o Brasil tem de definir de forma mais clara seus interesses a fim de sobreviver `a divisão das atuais superpotências. Para manter uma autonomia estratégica na confrontação, não ideológica e militar, mas econômica, comercial e tecnológica, entre as superpotências, e apoiar a multipolaridade, o Brasil tem de manter seu relacionamento com os EUA, a China e a Rússia afastado de considerações partidárias, ideológicas e agora também geopolíticas, que possam, de uma maneira ou de outra, acarretar algum tipo de restrição econômica ou comercial contra interesses concretos brasileiros.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras

 

terça-feira, 11 de abril de 2023

O Acordo Mercosul-União Europeia - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

O Acordo Mercosul-União Europeia

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/04/2023 

Como uma das consequências das tensões geradas pelos interesses e políticas ocidentais em relação à Rússia e à China, a Europa voltou a buscar a ampliação de seus laços econômicos e comerciais com a América do Sul, em especial com o Mercosul. Desde janeiro, as visitas de alto nível ao Brasil de governos de países europeus (Alemanha, Espanha, Noruega, França) e as viagens do presidente Lula a Portugal e Espanha ainda este mês, parecem indicar uma renovada prioridade para a assinatura e a ratificação do Acordo do Mercosul com a União Europeia (UE).

No início de março, em Buenos Aires, representantes dos países do Mercosul e os da UE retomaram os entendimentos com vistas à assinatura e a ratificação do acordo de livre comércio entre os dois grupos, em negociação há 20 anos. Poucos dias antes da referida reunião, a direção da UE encaminhou “side letter” (protocolo adicional) contendo novas condicionantes para a assinatura do acordo. A proposta, que levou três anos para ser finalizada pelos países europeus e foi concebida pela desconfiança nutrida em relação aos compromissos do governo Bolsonaro, chegou em hora errada, em vista da mudança da política ambiental e da decisão do governo Lula de tomar medidas contra os ilícitos cometidos na Amazônia. A "side letter" era para ser mantida reservada, mas vazou para a imprensa por ONGs ambientalistas insatisfeitas com as tratativas. Sabe-se que o documento determina que os países teriam de assumir uma série de compromissos ambientais, de biodiversidade e sobre direitos humanos. Uma das novidades foi a proposta de uma nova meta de desmatamento provisória para ser cumprida até 2025. Segundo o texto, os dois lados se comprometem a "deter e reverter a perda de florestas e a degradação da terra até 2030, ao mesmo tempo em que proporciona desenvolvimento sustentável e promove uma transformação rural inclusiva". "Para este fim, a UE e o Mercosul estabelecerão uma meta provisória de redução do desmatamento de pelo menos 50% em relação aos níveis atuais até 2025. Os termos da “side letter”, se não atenuados, poderão estimular setores do atual governo, que, por pressão da indústria, querem reabrir as negociações e rever algumas das cláusulas incluídas no acordo, em especial no tocante a compras governamentais. A proposta, como apresentada, certamente deverá ser rechaçada pelo atual governo por incluir demandas que extrapolam os compromissos ambientais do acordo com a EU, os de preservação da Floresta Amazônica e os previstos no acordo de Paris de 2015. Com isso, ficaria inviabilizada a assinatura do acordo no segundo semestre deste ano, na presidência brasileira do Mercosul.

No capítulo sobre Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, foi incluído, pela primeira vez, o princípio da precaução, pelo qual os governos têm o direito legal de agir para proteger a saúde humana, animal ou vegetal ou meio ambiente, mesmo quando a evidência cientifica não é conclusiva. O Mercosul, por outro lado, registrou no acordo que a precaução só pode ser invocada com evidência científica e que o ônus da prova será do país que apresentar a reclamação contra o produto importado.

Com ou sem o acordo de livre comércio, os países do Mercosul terão de lidar ainda com dois conjuntos de novas medidas restritivas dentro da política de meio ambiente e mudança de clima (“green deal”) europeu.

Essas medidas impedem o acesso ao mercado europeu de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas, o que afetaria produtos do agro brasileiro (carne, soja, café, cacau, azeite de palma, borracha, madeira) e obrigaria os produtores nacionais a ampliarem, com custos adicionais, programas de rastreabilidade e selo verde para demonstrar que a produção saiu de outras áreas, sem desmatamento recente. Por outro lado, produtos industriais, como siderúrgicos, cimento, fertilizantes serão taxados na fronteira pela emissão de gás carbono (carbon tax) para espelhar os custos das empresas europeias com medidas para a redução das emissões.  O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, sinalizou que irá recorrer a Organização Mundial de Comércio contra essas medidas unilaterais da Europa.     

Na reunião de Buenos Aires, os negociadores da UE acenaram com a possibilidade de criação de um fundo de compensação no qual a UE iria discutir com os países do Mercosul a possibilidade de oferecer recursos financeiros para ajudá-los a se adaptarem às rígidas e unilaterais regulações ambientais que Bruxelas implementará progressivamente.

Nesse contexto, cabe lembrar que a União Europeia está criando um mecanismo de defesa comercial para permitir que o bloco possa retaliar medidas punitivas tomadas por outros países, como ocorreu no caso da Lituânia, que sofreu restrições da China, por manter relacionamento com Taiwan. Talvez seja o caso de Brasil e outros países, alvos de restrições protecionistas, também examinarem medidas de defesa comercial contra ações unilaterais de coerção de qualquer procedência.

No novo cenário geopolítico, deve interessar ao Mercosul e `a União Europeia concluir positivamente esse importante acordo. Por isso, é importante e urgente o pronunciamento do Mercosul em resposta `a essa “side letter”.

 

 

Rubens Barbosa, embaixador, primeiro coordenador nacional do Mercosul (1991-1994) e presidente do IRICe.


terça-feira, 14 de março de 2023

A nova ordem internacional e o Brasil - Rubens Barbosa (OESP)

 Concordo com a parte histórica sobre a volta da Guerra Fria. Discordo RADICALMENTE da hipócrita “neutralidade” do Brasil, objetivamente pró-Putin. Como disse Rui Barbosa, não há neutralidade ou imparcialidade entre a Justiça e o crime. O Brasil é PARTE do Ocidente e deve DEFENDER a Carta da ONU e sua própria Constituição. Não precisa aderir à guerra, mas tem a OBRIGAÇÃO de condenar a Rússia e EXIGIR a retirada das tropas invasoras, aliás desde a Crimeia, que Dona Dilma ignorou, ao arrepio da tradição brasileira de estrita adesão ao Direito Internacional.

Paulo Roberto de Almeida 

A nova ordem internacional e o Brasil
O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto
14 de março de 2023

Rubens Barbosa

Depois da bipolarização da guerra fria, com a queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, surgiu uma nova ordem global. Emergiu um mundo unipolar com os EUA como a única superpotência e com a globalização financeira, econômica e comercial, gerando a expansão econômica liberal e o crescimento da economia global. Essa ordem mundial começou a mudar na primeira década do século 21 com a volta da China como potência e o início da disputa com os EUA pela hegemonia global.

A guerra da Rússia na Ucrânia, o fato mais relevante desde a queda do muro de Berlim, em 1989, marca o início de uma nova era e, ao contrário da situação que prevaleceu nos últimos 20 anos, representa a prevalência da geopolítica, com ênfase na segurança nacional, sobre a economia e a globalização. Sem perspectiva para a suspensão das hostilidades na Ucrânia, é real a possibilidade de escalada do conflito com a utilização de armas nucleares táticas de consequências imprevisíveis. O rearmamento da Alemanha e do Japão, com o aumento dos gastos com defesa, o esvaziamento do G-7 e do G20, além dos custos elevados da energia, são outras características da nova ordem internacional, que ocorre simultaneamente à consolidação da nova ordem econômica global.

Nesse contexto, está se conformando um mundo dividido em tomo de novos eixos, com a perspectiva de confrontação do Ocidente (EUA e Europa) com a Eurásia (China, Rússia e outros países da Ásia). Emerge, na narrativa ocidental, um mundo bipolar, mas em outras bases, visto que a disputa entre Washington e Pequim não é sobre a supremacia ideológica ou militar, mas econômica, comercial e tecnológica, até aqui. Na visão chinesa e russa, surge uma ordem multipolar, pós-ocidental, a do Ocidente versus o resto do mundo. De um lado, acelerou uma aliança estratégica, sem limites, em todas as áreas entre a China e a Rússia e, de outro, fortaleceu a aliança dos EUA com os países membros da Otan com o apoio à Ucrânia.

Hoje, considerações de ordem geopolítica impactam sobre a política externa, de defesa e comercial de todos os países. Apesar da declaração de Joe Biden de que não vai pedir que os países escolham um lado na divisão global, não será surpresa se lealdades começarem a ser cobradas, sobretudo se houver uma escalada bélica e o conflito se ampliar além da Ucrânia. O governo de Washington está discutindo uma nova postura no relacionamento bilateral com a China e medidas contra países que ajudam a Rússia a contornar sanções. Restrições no comércio de semicondutores e de produtos de uso dual, como produtos eletroeletrônicos, de telecomunicações, de tecnologia da informação e de lazer, chips e sensores deverão surgir.

País tem de defendei* seus valores ocidentais e preservar seus interesses asiáticos. Será importante evitar alinhamentos automáticos

Os EUA estão em guerra não declarada em duas frentes com a Rússia e com a China. A Estratégia de Segurança Nacional norte-americana, recém-divulgada, e o discurso de Xi Jinping, no Congresso do Partido Comunista, confirmam isso. A guerra fria, do ângulo do establishment dos EUA, nunca terminou, e agora, no Congresso, adquire formas irracionais e paranóicas em relação à China. O ministro do Exterior chinês advertiu para os riscos de um conflito direto com os EUA, caso não cessem as medidas contra Pequim. As relações entre EUA e China encontram-se no nível mais baixo da História, com a crescente tensão em relação a Taiwan, a possibilidade de entrega de armas à Rússia e a expansão dos interesses da Otan no Mar do Sul da China, agravadas pelo incidente com balão chinês em território norte-americano e as medidas de restrições comerciais (semicondutores) anunciadas por Washington.

Caso esse cenário se confirme, países como o Brasil terão de enfrentar difíceis opções de política externa. O Brasil foi colocado pelos EUA como aliado estratégico extra-Otan e faz parte do Brics com a Rússia, índia, China e África do Sul. Compartilhando valores do Ocidente (democracia, livre comércio, imprensa livre) e com estreitos laços comerciais, econômicos, culturais e de defesa com os EUA e países europeus, o Brasil tem hoje interesses concretos a defender na Ásia, nossa maior parceira comercial. O Brasil tem de defender seus valores ocidentais e preservar seus interesses asiáticos. Ao contrário dos que defendem que o Brasil terá de escolher um lado - o dos EUA -, será importante evitar alinhamentos automáticos, livre de influências ideológicas e geopolíticas. O governo brasileiro já vem sendo confrontado com essas opções em votações nos organismos internacionais e em gestões diplomáticas, como no caso do não fornecimento de munição para tanques na Ucrânia e na autorização para navios de guerra iranianos entrarem em portos nacionais. Ativismo diplomático, contudo, como a iniciativa de criar um grupo da paz para a suspensão das hostilidades na Ucrânia, não terá êxito.

A grande maioria dos países em desenvolvimento da África, América Latina e Ásia tem-se manifestado contra a divisão do mundo. A exemplo da índia, o Brasil, reconhecendo as novas realidades mundiais, deveria manifestar formal e publicamente sua posição de independência em relação aos dois lados, acima de ideologias ou preferências partidárias, na defesa estrita de seus interesses políticos, econômicos e comerciais.

PRESIDENTE DO IRICE, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A nova ordem econômica global e o Brasil - Rubens Barbosa (OESP)

A NOVA ORDEM ECONÔMICA GLOBAL E O BRASIL

 

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 28/02/2023


Em termos econômicos, desde o fim da Grande Guerra, em 1945, o liberalismo se impôs, com a redução do papel do Estado e a força do livre comércio, com a criação do FMI, Banco Mundial e GATT (depois OMC). A globalização, que aproximou países, empresas e pessoas, possibilitou a proliferação de acordos comerciais e o estabelecimento de cadeias produtivas baseadas na eficiência. O fim da URSS em 1991, com a nova ordem baseada em uma única superpotência, a entrada da China na OMC em 2001 e a realocação das cadeias produtivas para a China, confirmaram a ordem liberal. A volta da China como potência econômica e comercial global, trouxe o elemento geopolítico na cena econômica. Com Donald Trump, em 2017, são introduzidas medidas restritivas dos EUA contra a China, começa o esvaziamento da OMC e a perda de força das regras multilaterais de comércio. Essa tendencia é agravada pela pandemia e mais recentemente pelo conflito Rússia/Ucrânia e pelas tensões entre China e Taiwan, acelerando a configuração de uma nova ordem econômica.

                A nova ordem econômica mostra que a eficiência na definição de políticas econômicas é substituída por objetivos de segurança, soberania e poder. Evidências disso são o ataque ao livre comércio, a negociação de acordos comerciais regionais (não bilaterais), a realocação das cadeias produtivas, o crescente número de restrições comerciais por razões políticas e a busca de autossuficiência. A globalização passa por importantes ajustes com a descentralização das cadeias de produção, pelo aumento dos subsídios, do custo transporte e pela desorganização e os altos preços nos mercados agrícola e energético. Considerações sobre meio ambiente e mudança de clima passaram a ter impacto sobre as negociações comerciais. O nacionalismo representado pelo fortalecimento das economias domésticas para conseguir uma autonomia soberana em áreas consideradas estratégicas e a definição de novas políticas industriais nos EUA afetaram diretamente o liberalismo e o livre comércio, gerando tensões, com impactos globais. O populismo fortaleceu o intervencionismo protecionista. Considerações de poder, com base na segurança nacional passaram a influir na aplicação de controle de exportações como arma política, como as sanções, que incluíram, entre outras, a limitação do comércio dos semicondutores, a retirada de empresas chinesas da Bolsa de NY e o congelamento de reservas. Assim, a emergência da China e da Ásia como eixos de poder econômico, a disputa com os EUA, a guerra Rússia/Ucrânia, podem levar a uma nova Guerra Fria, em outras bases, com divisão do mundo (Ocidente/Eurásia), não em função de disputa ideológica ou militar, mas econômica, tecnológica e comercial.

                Em resumo, a nova ordem econômica está baseada na segurança de abastecimento e não no “just in time”; na realocação das cadeias produtivas, na segurança energética, no controle de investimentos, na formação de blocos regionais, na utilização da moeda como arma geopolítica e no mundo com crescimento reduzido e alta inflação.

                Qual o impacto da nova ordem sobre o Brasil? Colocando a casa em ordem, com políticas econômicas que respondam com eficiência aos desafios internos de aumento da produtividade e competitividade, e com uma visão pragmática em relação as transformações econômicas e políticas que estão correndo, poderíamos ser um dos beneficiários das novas circunstâncias internacionais.

A emergência da China e da Asia, sob o aspecto econômico, foi muito favorável aos produtos agrícolas brasileiros que encontraram novos mercado e preços elevados, tornando o Brasil um dos três maiores exportadores mundiais de alimentos. A realocação das cadeias de produção poderá abrir oportunidades para o Brasil em nível regional com investimentos em áreas de nosso interesse. O mercado de carbono, com a adequada proteção do meio ambiente, em especial da Floresta Amazônica, poderá representar ganhos financeiros significativos para empresas e para o país.

Esse é o pano de fundo quando se diz que o mundo mudou, coincidindo com o início do novo governo. São muitas as consequências negativas da nova ordem econômica sobre o Brasil. Estarão elas sendo levadas em conta pelo atual governo com visão estratégica? Como enfrentar o enfraquecimento do multilateralismo, com a perda de relevância da OMC, deixando países como o Brasil sem proteção jurídica para o desrespeito das regras internacionais? Como enfrentar as restrições comerciais políticas, os altos custos, a transformações tecnológicas com o 5G e a Inteligência Artificial? Como serão respondidas as restrições às exportações brasileiras, sobretudo pela política ambiental em relação à Amazonia, assim como aquelas em função da aprovação de nova regulamentação europeia de desmatamento? Como reduzir a vulnerabilidade, representada pela concentração das exportações em poucos mercados e produtos, e a dependência dos semicondutores, fertilizantes e insumos farmacêuticos. E a política para a reindustrialização?

Estamos voltados aos temas do século passado como a conclusão das negociações do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia, o ingresso na OCDE e o financiamento de projetos em países vizinhos. 

Acorda Brasil!

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e ex-embaixador em Londres e Washington


terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A história se repete como farsa - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

Dois Capitólios, ambos criminosos, o de Washington mais mortal, o de Brasília mais destruidor.

 

A HISTÓRIA SE REPETE COMO FARSA

 

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 10/01/2023


A invasão do Congresso norte-americano no dia 6 de janeiro de 2021 foi repetida, como farsa, no domingo, dois dias e dois anos depois, de maneira muito mais grave, porque atingiu, com criminosa destruição, também o Supremo Tribunal Federal (STF) e a sede do governo, o Palácio do Planalto. O ponto comum entre os dois eventos é o inconformismo de grupos políticos radicais com o resultado das eleições presidenciais.

O que explica essa ocorrência tão grave no começo do novo governo e que tanta reação causou no exterior? Não há dúvida de que houve falha no tratamento das informações de inteligência, além de omissão das autoridades do governo do Distrito Federal (DF) e incompetência na proteção e na segurança da Praça dos Três Poderes. A tentativa de destruição do Estado de Direito resulta de causas mais profundas.

A divisão política e social do País, com crescente radicalismo por parte de grupos minoritários, está na base de grave crise política que terá desdobramentos sérios, inclusive pelo aparelhamento da máquina estatal com a contaminação ideológica das instituições públicas, como no caso dos agentes de segurança, tanto federais como do DF. O desrespeito às instituições caracteriza um estado de anomia por parte de uma parcela radical da sociedade brasileira. Depois do ocorrido no domingo, a ideia de convergência, união e pacificação, anseio de muitos e promessa de campanha, fica mais difícil de ser alcançada.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, depois de muitas horas, a exemplo de Donald Trump, procurou se dissociar dos atos violentos, mas acentua a divisão ao comparar o que aconteceu no domingo às ações da esquerda em 2013 e 2017. A responsabilidade política do ex-presidente foi apontada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo ministro da Justiça, Flávio Dino. A responsabilidade jurídica terá de ser apurada. O governo observou que o ocorrido foi um ato terrorista e uma tentativa de golpe nunca registrada na história do País. A tentativa de eventual condenação de Bolsonaro por suas ações contra o resultado das urnas deverá acirrar os ânimos ainda mais.

A reação do governo federal tem de ser rápida para apurar as responsabilidades do crime e punir os culpados pelos atos de terrorismo. Algumas decisões foram prontamente tomadas: a intervenção federal na área de segurança por 30 dias no governo do Distrito Federal, a ser apreciada pelo Congresso; a prisão de quase 300 invasores em flagrante e 1.500 nos acampamentos; a investigação sobre os mandantes e financiadores do movimento; a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso; o pedido de cessão de membros das Forças Armadas para completar as forças que garantirão a lei e a ordem. O Judiciário determinou o afastamento do governador do DF por 90 dias e o fim dos acampamentos em frente e nas adjacências dos quartéis.

A crise desencadeada pela invasão e destruição de Brasília gerou forte turbulência política e piora no ambiente dos entendimentos que o novo governo está desenvolvendo para ampliar a margem de governabilidade. O radicalismo político deverá continuar e a oposição ao governo Lula vai se acirrar no Congresso e nas ruas. O presidente Lula terá de criar um clima político estável para a condenação dos criminosos e para impedir a repetição dessas ações.

Um dos fatores mais importantes para a difícil superação da turbulência deverá ser a firme manifestação da autoridade presidencial em todas as áreas, para liderar os esforços para o fortalecimento das instituições do centro democrático e para a retomada da agenda econômica e social.

Do ponto de vista político, um dos fatores mais sensíveis, com importante repercussão na evolução das ações do governo Lula, é o relacionamento entre civis e militares. Alguns fatos indicam a incerteza dessa relação: a politização de parte dos militares da ativa, como se viu concretamente na recusa do comandante da Marinha em participar da posse do seu substituto nomeado pelo presidente Lula, apesar das gestões do ministro da Defesa; a complacência até ontem das lideranças das Forças Armadas em relação à permanência dos acampamentos de seguidores de Bolsonaro que se multiplicaram em frente a quartéis militares; e o fato de Lula ter optado por não convocar ação das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), talvez pela incerteza da reação dos militares. A não manifestação das Forças Armadas durante os acontecimentos, contudo, foi um dos poucos aspectos positivos de toda a crise. Se tivesse havido uma efetiva tentativa de golpe às instituições, a não interveniência das Forças Armadas – que haviam dado mostras de que não tomariam partido, nem sairiam das linhas constitucionais – frustrou a expectativa. As instituições, bem ou mal, saíram fortalecidas.

Outra importante consequência da crise é a mudança da agenda, que deixa a economia e a governabilidade em um segundo plano para dar relevância à defesa das instituições e do Estado Democrático de Direito. As tensões deverão aumentar e ter desdobramentos em todos os níveis. As ações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário contra os invasores, organizadores, financiadores e incentivadores tornarão a divisão do País ainda mais acentuada e radicalizada.

PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS DE DEFESA E SEGURANÇA NACIONAL (CEDESEN)

 

 

 

 


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O Mercosul à procura de um autor - Rubens Barbosa (OESP)

                                       O MERCOSUL A PROCURA DE UM AUTOR

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 13/12/2022


No dia 1 de janeiro, Lula assume a direção da máquina burocrática brasileira com enormes desafios políticos, econômicos, orçamentários, na área de educação, saúde, ambiental, cultural e por fim, mas não menos importante, na área externa. As questões políticas pendentes no âmbito do Mercosul são um desses desafios. 

O novo governo – a exemplo da Argentina - está indicando querer reabrir as negociações com a União Europeia para modificar certas decisões sobre a participação da indústria. Será que os outros concordam? A União Europeia tem dupla preocupação antes de colocar em vigência o acordo: assegurar o cumprimento das disposições sobre comércio e desenvolvimento sustentável, um dos capítulos do acordo, sem atrasar muito o já demorado processo de ratificação junto ao Parlamento Europeu. Para tanto, está sendo cogitado o fatiamento da aprovação do acordo: as cláusulas econômicas e comerciais entrariam em vigor imediatamente e as ambientais seriam mais demoradamente examinadas. Deve ainda ser lembrado que a UE está aprovando medidas restritivas a produtos agrícolas do Mercosul dentro da legislação de desmate de florestas e de descarbonização de empresas europeias (CBAM). 

O Uruguai, sem nenhuma coordenação com seus parceiros, e no contexto do que chamam de flexibilização do Mercosul, tomou duas iniciativas que despertaram reações negativas dos demais membros do Grupo sub-regional: iniciou conversas isoladas para assinatura de acordo individual com a China e agora pede a adesão ao antigo acordo TPP, que inclui 11 países asiáticos, liderados pelo Japão (os EUA se retiraram e a China cogita pedir a adesão). As iniciativas do Uruguai, algumas vezes estimuladas pelo ministro Paulo Guedes, `a revelia do Itamaraty, não teriam acontecido se o Brasil não tivesse abdicado de sua liderança da América do Sul e no Mercosul. Com a volta do Brasil, como disse o presidente eleito, as duas propostas serão de alguma maneira absorvidas e não deverão prosperar.  Tendo na Asia nosso principal parceiro comercial, com destaque para a China, no caso do ex-TPP, seria de nosso interesse examinar mais detidamente o assunto e talvez fazer o pedido de adesão coletivo do Mercosul. O pedido seria diplomático e levaria tempo para que os 11 países possam responder. Não haveria nenhuma negociação comercial pelo menos por um ano.

 

Com o Paraguai, além de projetos de fronteira que estão caminhando bem, há alguns temas difíceis que o novo governo vai ter de enfrentar logo no primeiro ano de governo: a renegociação do Anexo C do Tratado de Itaipu (não o Tratado de Itaipu) no tocante aos preços da energia gerada pela hidrelétrica, depois da finalização do pagamento em 2023 da dívida contraída para a sua construção. Em paralelo, o governo do Paraguai está pressionando o governo brasileiro para a construção de uma eclusa para permitir a total navegabilidade do Rio Paraguai, facilitando e ampliando o trânsito de mercadorias, agrícolas e minerais até os portos na saída da Bacia do Prata.

Por outro lado, a Venezuela está suspensa do Mercosul pela invocação da Cláusula Democrática, sem previsão de volta plena para o âmbito do grupo. A Bolívia por seu turno, desde o governo de Dilma Rousseff, está com seu pedido de adesão ao Mercosul parado em exame no Congresso Nacional. O novo governo brasileiro deveria encaminhar decisões a respeito dessas questões, de acordo com seu interesse, sem considerações ideológicas ou partidárias.

No tocante à União Europeia, não seria oportuno, nem condizente com nossos interesses, reabrir as negociações do acordo, o que adiaria ainda mais sua entrada em vigor. A solução de dividir o acordo aceleraria a ratificação e projetaria o Mercosul no complexo cenário internacional como uma alternativa viável para a ampliação das regras e do comércio bilateral ou regional. O Protocolo Adicional sobre as obrigações na área ambiental, se não for além do que está previsto no acordo não criaria maiores problemas. No tocante às restrições comerciais em processo de elaboração, a nova política ambiental e externa para a mudança de clima deveria ser transmitida de imediato às autoridades europeias para mostrar que elas não deveriam ser aplicadas ao Brasil pelas novas políticas ambientais de preservação da Amazônia na linha da preocupação europeia, como aliás já fizeram Noruega e Alemanha ao reconstituir o Fundo Amazônico.


Quanto à suspensão da Venezuela e a adesão da Bolívia, a simples discussão dos assuntos terá forte implicação para a política interna no Brasil e não seria oportuno acelerar qualquer decisão que promova a participação plena dos dois países, antes do encaminhamento de soluções para a democratização e o resguardo dos direitos humanos. Além disso, a volta e a entrada dos dois países não deveriam colocar em segundo plano as negociações comerciais, nem trazer de volta a experiência do Mercosul político e social dos governos anteriores do PT.

 

A reunião presidencial do Mercosul, realizada na semana passada, pouco acrescentou à discussão comercial e ainda agravou a tensão entre o Uruguai e a Argentina, pela ameaça de ruptura e pelos ataques do presidente argentino ao uruguaio sobre o TPP.

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras.

 


terça-feira, 22 de novembro de 2022

Uma Grande Estratégia para o Brasil - Rubens Barbosa (OESP)

 Uma Grande Estratégia para o Brasil

Rubens Barbosa 

O Estado de S. Paulo, 22/11/2022

As circunstâncias conjunturais pelas quais o Brasil passa hoje fazem com que as atenções da opinião pública informada se concentrem no debate sobre economia, taxa de juro e inflação, orçamento, sobre redução do desemprego, da pobreza, da saúde no novo governo. O brasileiro menos favorecido quer saber como ganhar dinheiro para pagar a comida, o remédio, o transporte e sua roupa.

Nesse contexto, pouca gente está pensando o Brasil, como uma potência emergente, cada vez mais dividida e com um novo governo que terá grandes desafios para reafirmar a democracia e as instituições, em vista da previsível feroz oposição bolsonarista. Assuntos institucionais, como lugar do Brasil no mundo, Defesa e Segurança, o aperfeiçoamento dos meios de trabalho das FFAA para defender os interesses reais do país e superar as novas ameaças globais são tratados por restrito número de pessoas no governo, no meio acadêmico, no âmbito de instituições militares e (muito pouco) no Congresso. O Brasil não enfrenta ameaças de uma guerra convencional entre Estados, sendo efetiva a atuação das Forças Armadas em missões de paz, intervenções humanitárias, combate ao terrorismo, ao crime organizado, a segurança cibernética, GLO, ações cívicas e outras.

No Brasil, soberania, defesa, segurança são, normalmente, associados a questões de natureza militar, como ocorre, em linhas gerais, nos importantes documentos recentes sobre Estratégia Nacional e Política Nacional de Defesa. O conceito de Defesa deveria ser examinado de forma mais abrangente não limitado `as percepções militares, como ocorre nesses documentos, que discutem as concepções política e os objetivos da Defesa e estratégica e os fundamentos da Defesa. Ambos os documentos procuram responder aos desafios como hoje percebidos e o planejamento das prioridades para a Defesa. A vantagem de uma percepção mais ampla de defesa e de segurança, não restrita ao âmbito militar, mas envolvendo outros atores, em diferentes setores da sociedade, responderia aos desafios da projeção do Brasil no contexto internacional, dentro das suas grandes dimensões estratégicas. E colocaria o país em melhor posição para a defesa de seus interesses no momento em que as transformações geopolíticas, de inovação e tecnologia e a nova ordem econômica, dão realce aos temas globais, como mudança do clima e a segurança alimentar.

Quando ministro da Defesa, Celso Amorim ressaltou que o Brasil deveria seguir o conceito de uma Grande Estratégia, baseado em uma coordenação de políticas de defesa e externa, com vistas `a defesa do interesse nacional e `a contribuição para a paz mundial. No contexto das limitadas discussões estratégicas, focadas sobretudo nos aspectos de soberania e defesa, está faltando um debate amplo, que deveria extrapolar o âmbito militar, sobre a formulação dessa Grande Estratégia, em que a política de defesa e a política externa sejam complementadas por anseios da sociedade civil e mais recentemente por demandas da comunidade internacional sobre segurança ambiental, energética, alimentar e outras áreas. A Constituição, que define os objetivos, princípios e direitos fundamentais, deveria ser a base para a definição da Grande Estratégia, levando em conta a geopolítica e as transformações por que passa o cenário internacional, em especial, na economia global, no meio ambiente, na tecnologia e na inovação e que reflita o Poder efetivo do país.

No âmbito do executivo, a elaboração da Grande Estratégia deveria ser responsabilidade do Conselho de Defesa Nacional (CDN), vinculado `a Presidência da República, com a participação de outros atores políticos,ministérios que tratam de temáticas interdependentes, como Relações Exteriores, Ciência Tecnologia e Inovações, Justiça e Segurança e Economia, assim como dos representantes do Congresso Nacional.  Instituições independentes, não pertencentes às corporações do Estado, serviriam para evitar possíveis omissões e distorções e contribuiriam para um maior apoio da sociedade às ações do Estado voltadas para a Defesa e Segurança. O documento definiria e priorizaria objetivos de longo prazo, levando em conta as condicionantes e necessidades derivadas de cenários e ameaças possíveis e de metas definidas para permitir o seu enfrentamento, bem como os recursos que o Estado estaria disposto a alocar ao longo do tempo para o alcance desses objetivos. Essas decisões de alto nível são essenciais para evitar alguns dos principais problemas da abordagem de baixo para cima que vem sendo usada.  A Grande Estratégia, política de Estado, cobriria um horizonte mais extenso (de 10 a 20 anos), como fez recentemente o Reino Unido, que, depois da saída da União Europeia, definiu seu lugar no mundo, dentro de uma ampla visão global ou a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, assinada pelo presidente Biden e recentemente divulgada.

Nesse contexto, o futuro governo, junto com o Congresso, a academia e “think tanks” especializados, poderia aproveitar o momento para propor uma Grande Estratégia para a segurança e a defesa dos interesses nacionais, de forma abrangente, a ser discutida, ampla e democraticamente, a partir de janeiro de 2023.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)