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domingo, 26 de abril de 2020

A necessidade da utopia (Rui Barbosa) - Editorial Estadao (OESP, 26/04/2020)

A necessidade da utopia
Editorial de O Estado de S.Paulo (26/4/2020)

Há pouco mais de um século, em janeiro de 1919, o Estado publicou, neste espaço, um editorial em que defendia mais uma candidatura presidencial de Rui Barbosa, uma forma de protestar contra os arranjos oligárquicos e militaristas que degradavam a então jovem democracia republicana. Embora fosse político experiente, Rui Barbosa era, na ocasião, o que hoje se convencionou chamar de outsider, por ter sido o primeiro a fazer campanha eleitoral dirigindo-se aos eleitores, algo raro numa República que, embora nominalmente democrática, definia os presidentes nos salões do poder e depois os instalava no governo por meio do voto de cabresto e de fraudes nas listas de votação. Rui Barbosa perdeu a eleição para Epitácio Pessoa, que passou toda a campanha em Paris.

O editorial, ao cobrar que o voto deveria ser a expressão da vontade popular, e não o instrumento de um poder antidemocrático do qual as elites se serviam, salientava que “segrega-se da regularidade das soluções tradicionais o país em que os governos incorrigíveis teimam no erro e no crime, e em que povos, cansados de deitar nas urnas votos inúteis, desistem do direito de votar”. E mais: “Na nossa desgraçada República os governos, quase sem exceção, e o povo, quase em unanimidade, de há muito se haviam fixado neste sistema anormal de se viver – os governos contando com a covardia eterna do povo, e este simplesmente resignado”.

Passados cem anos, o País parece ainda prisioneiro de arranjo semelhante – mas o outsider, quanta diferença! Em vez de um Rui Barbosa, que no palanque fez os brasileiros verem a importância do exercício da cidadania e das políticas sociais, temos um Jair Bolsonaro, que representa os inconformados com a democracia.

Entre a campanha de 1919 e a campanha de 2019, a degringolada é evidente. Com raros intervalos nesse período, em que tivemos lideranças lúcidas e conscientes de seu papel no comando político do Brasil, a trajetória, de Rui Barbosa a Jair Bolsonaro, é a de um País em que a República parece ser quase um mal-entendido.

A utopia, essência da política e tão bem traduzida nas palavras de um Rui Barbosa, transforma-se em farsa quando enunciada por um Jair Bolsonaro. A utopia bolsonariana não é a da democracia plena, a da realização do potencial do País e a do aperfeiçoamento nacional, fruto de amplo debate democrático; é, ao contrário, a promessa de um mundo em que tudo se resolve pela vontade do líder, que se confunde com a do “povo”.

A pergunta, aludindo ao editorial de um século atrás, que fez referência aos governos que contam “com a covardia eterna do povo”, é: onde estão os democratas do Brasil? O que justifica a apatia dos amantes da liberdade ante tão flagrante assalto à República? Para encurtar: como fomos capazes de trocar Rui Barbosa por Jair Bolsonaro?

É preciso reavivar a utopia democrática. A política não pode se resumir à necedade [sic] bolsonarista ou à malícia lulopetista, ou ainda aos titubeios tucanos, ou à caradura do centrão. Em todos e em cada um desses casos, salvo honrosas exceções, prevalece o interesse paroquial e imediato, cuja fatura será paga, como sempre, pelas gerações seguintes. 

Mas nem sempre foi assim. Há exemplos na história – Rui Barbosa é apenas um deles – de líderes que procuraram instilar na população o sentimento de coletividade, do pertencimento verdadeiramente patriótico, e que olhavam não apenas para a resolução dos problemas do presente, mas para a semeadura do futuro.
Não é possível imaginar que tão poderosa mensagem – a da utopia de um amanhã melhor, construído não por um demagogo, mas pela vontade concertada de todos os cidadãos – não seja capaz de emocionar os brasileiros e fazê-los recobrar a esperança na democracia. Para que essa mensagem prevaleça, no entanto, é preciso que a elite nacional se apresente e valorize a cultura em vez da orgulhosa ignorância; a ciência em vez do obscurantismo militante; a articulação de consensos em vez da truculência política.

A democracia é um regime exigente porque demanda que cada um dos cidadãos assuma sua responsabilidade na construção da Nação. É o que pregava Rui Barbosa – que, mesmo derrotado, jamais deixou de acreditar em sua utopia.

sábado, 25 de janeiro de 2020

Rui Barbosa, o maior liberal brasileiro, para Christian Lynch, da Casa Rui Barbosa - João Paulo Charleaux (Nexo)

Qual a importância de Rui Barbosa para o liberalismo brasileiro

Cientista político Christian Edward Cyril Lynch fala ao ‘Nexo’ sobre o pensador que marcou a virada do Brasil Império para a República
Foto: Fritz Gerald/Domínio Público
Retrato antigo de Rui Barbosa
Rui Barbosa, advogado, escritor, político e diplomata brasileiro
O doutor em ciência política Christian Edward Cyril Lynch é um dos maiores pesquisadores da obra de Rui Barbosa (1849-1923), advogado, escritor e diplomata que marcou a história política do Brasil na passagem do Império para a República, na virada do século 19 para o século 20.
Além de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Lynch trabalha desde 2014 na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma instituição do governo federal dedicada a preservar as ideias do pensador.
No dia 16 de janeiro, Lynch foi anunciado como o novo chefe do Setor Ruiano da Casa de Rui Barbosa. Horas depois, teve sua indicação recusada pelo então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim – o mesmo que seria exonerado do cargo no dia seguinte, depois de ter veiculado um discurso oficial no qual plagiava mensagens nazistas.
O episódio revelou as incongruências entre Alvim e Lynch, um cientista político crítico do governo Bolsonaro. Nesta entrevista concedida por telefone para o Nexo na terça-feira (21), Lynch também revela as incongruências de fundo que envolvem a própria instituição, que foi colocada no centro do episódio.
Para ele, Rui Barbosa foi “o maior liberal brasileiro”, um legado incompatível com o conservadorismo do governo Bolsonaro. Lynch diz que mesmo os apelos anacrônicos pela volta da monarquia entre membros do atual governo, hoje, são historicamente mal informados, e não resistem à leitura do legado deixado pelo patrono da fundação que se tornou pivô da disputa.
Na entrevista, Lynch dá atenção especial à influência de Rui Barbosa na área de política externa – coincidentemente, uma das áreas nas quais o conservadorismo do governo Bolsonaro é mais evidente. O jurista liderou a posição brasileira na criação do que hoje é a Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda, num episódio estruturante dos debates que viriam a desembocar, anos depois, na formação das Nações Unidas e de outras instâncias multilaterais, hoje criticadas abertamente pelo governo do Brasil.

Qual a importância de Rui Barbosa para a política externa brasileira?

Christian Edward Cyril Lynch Rui Barbosa não era diplomata profissional. O Brasil teve grandes diplomatas ao longo de sua história, mas Rui Barbosa não foi um deles, embora tenha dado contribuições importantes nessa área. Antes de Rui tivemos diplomatas como o Visconde do Uruguai [Paulino José Soares de Sousa], o Visconde do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos], o Barão de Cotegipe [José Maurício Wanderley]. Depois tivemos os contemporâneos de Rui Barbosa, como o Barão do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos Júnior] e Joaquim Nabuco, notadamente.
Rui era um fenômeno. Como ele falava muito bem, dominava muitos idiomas, estava bem informado sobre tudo o que acontecia no mundo e tinha convicções liberais muito fortes, ele foi aproveitado em três ocasiões como embaixador extraordinário do Brasil. Naquele tempo, ainda não havia embaixadas fixas, mas apenas legações, chefiadas por ministros. O Rio Branco foi ministro do Brasil na Alemanha, por exemplo, e Joaquim Nabuco [diplomata e abolicionista] foi ministro do Brasil em Londres, antes de assumir a primeira embaixada do Brasil em Washington [cargo que ocupou de 1905 a 1910].
Embora Rui Barbosa não fosse, como eles, um diplomata de carreira, ele teve duas participações muito importantes na história da diplomacia brasileira, sendo que uma dessas participações foi importante para a história das relações internacionais no mundo todo, não apenas no Brasil.
A primeira delas foi a participação na Segunda Conferência da Paz de Haia [Países Baixos], em 1907. A segunda foi em 1916, 1917 [período que corresponde à Primeira Guerra Mundial], quando ele foi enviado à Argentina como embaixador extraordinário do Brasil, e fez nessa ocasião uma conferência chamada “O dever dos neutros”, na Faculdade de Direito de Buenos Aires. A terceira, que não chegou a acontecer, é a representação que ele faria do Brasil na Conferência da Paz de Versalhes, ao final da Primeira Guerra Mundial [1914-1918], mas ele acabou não indo.
A primeira, então, a Conferência da Paz de Haia, era estratégica para o Brasil porque foi a primeira vez que o país apareceu [desde a Proclamação da República, em 1889] em um foro onde estavam representadas todas as nações do mundo à época. Não existia ainda o que hoje nós chamamos de sistema internacional. Havia um sistema pan-americano, que começava a se formar na América. Havia um sistema que era europeu, que estava em vigência desde a Paz de Westfália [nome dado a uma série de tratados que pela primeira vez reconheceram a soberania do Estado-nação na Europa nos moldes próximos aos existentes hoje], no século 17, mas não havia nenhum foro que tentasse reunir todas as nações independentes do globo. A primeira vez que isso ocorreu foi na Primeira Conferência da Paz de Haia [em 1899], à qual o Brasil não foi. O Brasil participou da Segunda, com Rui.

E qual foi o papel do Rui Barbosa nessa conferência?

Christian Edward Cyril Lynch A diplomacia brasileira, em termos gerais, era muito preocupada com a América do Sul. O Barão do Rio Branco [então ministro das Relações Exteriores] estava preocupado em tentar restabelecer a respeitabilidade do Brasil no cenário internacional, passar ao mundo a impressão de que o país continuava a ter hegemonia política no continente. Essa respeitabilidade havia sido baqueada pela [proclamação da] República, que tinha criado, aos olhos de Rio Branco, uma espécie de baderna. O Brasil havia deixado de ser um Império constitucional respeitável e tinha virado uma república das bananas, com ditadura militar.
Nessa Segunda Conferência de Haia, em 1907, estava sendo discutida a criação de um tribunal internacional de arbitragem, no qual os diferentes países estariam representados conforme o poder de cada um. O Barão do Rio Branco havia comprado a agenda pan-americanista de maneira tática para mostrar ao mundo que os EUA reconheciam o Brasil como potência na América Latina – e não a Argentina, que estava em ascensão – e que apoiariam o pleito brasileiro de ter um juiz nomeado nessa nova corte.
Rui Barbosa, nessa época, estava bem com o regime republicano – o que é relevante dizer, porque ele tinha um comportamento de oposicionista crônico. Rui Barbosa foi então convidado a ir a Haia representar o Brasil na conferência, o que foi um aceno de boa vontade e de reconhecimento da importância dele. Ele não era um profissional de relações internacionais e só tinha estado fora do Brasil uma vez, quando fugiu da ditadura do Marechal Floriano Peixoto [1891-1894].
O Joaquim Nabuco, que já era o embaixador brasileiro em Washington, foi a Paris para se encontrar com o Rui Barbosa e passar a ele o mapa da reunião, informar quem eram os aliados do Brasil na conferência. Depois disso, Rui foi para Haia e notou um cenário totalmente diferente do imaginado. Havia um escalonamento em curso que colocava o Brasil como um país de terceira categoria na indicação dos juízes do tribunal. O critério de composição não reconhecia a igualdade dos países no cenário internacional.
Rui escreveu de Haia ao Barão do Rio Branco no Brasil dizendo que a conferência era uma cilada. O Barão do Rio Branco perguntou qual era a posição dos EUA na conferência, e Rui respondeu que os EUA não estavam defendendo o Brasil. Isso deixou claro que a política do pan-americanismo, para os EUA, era uma política que visava apenas a aglutinar os países latino-americanos em torno deles e mostrar na Europa que os americanos tinham a liderança de todo o continente americano.
E o ponto extraordinário de Rui foi o seguinte: ele pediu carta branca para organizar a resistência dos países mais fracos para defender um critério de paridade dos países dentro desse órgão de arbitragem que estava sendo criado. Ele aplicou o princípio liberal de que todos são iguais perante a lei enquanto indivíduos e ampliou esse conceito para as nações. Ele passou a sustentar que todos os países deveriam ter o mesmo peso, que todos deviam ter o direito de indicar um juiz. O Rio Branco queria colocar o Brasil como o último dos melhores, e o que Rui Barbosa conseguiu fazer foi transformar o Brasil no primeiro dos últimos. E ele conseguiu.
O tribunal não saiu, porque Rui Barbosa liderou uma espécie de rebelião que inviabilizou a composição do tribunal. Essa foi considerada uma vitória, à medida que o Brasil não saiu humilhado como uma potência de terceiro mundo. Ele criou um precedente que seria observado a partir daí na Liga das Nações [precursora das Nações Unidas], de que todos os países têm de estar em condição de igualdade e têm direito a um voto.

Há mais de 100 anos, Rui Barbosa foi um defensor do multilateralismo, um homem que apoiou a criação de instâncias como a Corte Internacional de Justiça. Hoje, todo esse sistema que impõe limites à soberania total dos Estados vem sendo combatido pelo Itamaraty sob o governo Bolsonaro. Nesse sentido, a política externa brasileira de hoje renega o legado de Rui Barbosa?

Christian Edward Cyril Lynch Contradiz. A ideia de alinhamento do pan-americanismo com os EUA não era nem uma ideia originária do Barão do Rio Branco, mas de Joaquim Nabuco, na verdade. A adesão do Rio Branco a isso era uma adesão tática, tanto que, quando ele descobriu que os EUA não estavam apoiando o Brasil em Haia, ele endossou o Rui Barbosa para contrariar os EUA e resistir a essa proposta.
Rui Barbosa foi o campeão do liberalismo e foi um sujeito que o tempo todo advertiu para os riscos do imperialismo, qualquer que fosse. Rui Barbosa buscava que o Brasil tivesse uma certa autonomia para defender seus próprios interesses nacionais. Ele temia a ideia de protetorado americano.
Já Nabuco acreditava que, sem a monarquia, o Brasil ficaria tão fragilizado que ele temia que caíssemos no redemoinho das repúblicas ditas bananeiras da América Hispânica. Portanto, seria bom que o Brasil seguisse o exemplo dos EUA. Da parte do Rio Branco, a preocupação era garantir uma imagem de respeitabilidade do Brasil na América Latina e uma posição de liderança em relação à Argentina.
Hoje, a política de alguém como o chanceler Ernesto Araújo contém um paradoxo até em relação a alguém como Nabuco, porque Nabuco era um liberal, enquanto Araújo é um conservador. O paralelo da política externa atual é muito mais com a do governo Dutra [do presidente Eurico Gaspar Dutra, que governou o Brasil de 1946 a 1951]. Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, o chanceler do Dutra [Raul Fernandes] apostou numa política de alinhamento automático com os EUA. À época, aquele era um governo liberal-conservador.
Além de Dutra, Araújo lembra também o governo Castelo Branco [que governou o Brasil de 1964 a 1967, durante os três primeiros anos da ditadura]. Havia ali também essa combinação do liberalismo conservador com o conservadorismo estatista, que aconteceu em 1946, 1947 e 1948, com a proibição do Partido Comunista no Brasil, por exemplo. O governo Castelo Branco tinha uma coalizão muito semelhante à que hoje sustenta o governo Bolsonaro, formada por conservadores estatistas, que são os militares; pelos liberais de mercado, que à época era o Roberto Campos e hoje é o Paulo Guedes; e por um grupo de conservadores culturalistas, que tratam a cultura brasileira como algo português e católico. A diferença é que a força do núcleo reacionário não era tão forte à época quanto é hoje.

Alguns temas discutidos por Rui Barbosa há 130 anos voltaram a ser contemporâneos, como o debate sobre o valor da Proclamação da República (1889) e o saudosismo em relação ao Brasil Império (1922-1889). Como o sr. interpreta o regresso a esses temas hoje, e o que Rui Barbosa deixou de legado a esse respeito?

Christian Edward Cyril Lynch No Brasil, o Império só foi conservador até em torno de 1870. Quando foi proclamada a Independência [1822] o Brasil não existia. Todos os países passam naturalmente por um período de construção do Estado. Nesse período, é adotada uma política de centralização, que é meio autoritária, porque você tem que combater coronel, tem que unificar, centralizar, criar burocracia, e você não faz isso com federalismo. Não foi só aqui que isso aconteceu, foi na Inglaterra dos Tudor [1485-1603], foi na França de Luis 14 [1643-1715]. No começo, esses governantes tentam juntar os cacos e monopolizar o exercício legítimo do poder. Então, o final da Regência [1831-1840] e o começo do Segundo Reinado [1840-1889] correspondem a esse período no Brasil.
Entretanto, de 1870 em diante, já há a sensação de que o Brasil estabilizou como nação. Aí começa a haver um movimento de liberalização das instituições, que é uma espécie de segunda fase do Segundo Reinado [de Dom Pedro 2º], que é uma fase liberal, em que os liberais vão fazendo reforma atrás de reforma: a reforma da instrução, a reforma bancária, a reforma eleitoral, a abolição da escravatura – que foi empurrada pelos liberais, embora as leis tenham sido aprovadas pelos conservadores. Há uma tentativa de reforma da educação, enfim, grandes reformas liberais acontecem no país.
Rui Barbosa, no fim do Império, começa a brigar com o próprio partido [liberal] porque ele, Rui, torna-se muito radical. Ele se torna federalista, mas nunca foi republicano. Ele achava que a monarquia brasileira devia ficar igual à monarquia inglesa, com um rei que reinasse mas não governasse, com um primeiro-ministro que mandasse.

Mas ele fez parte do primeiro governo da República.

Christian Edward Cyril Lynch Quando tem início a conspiração que vai dar no golpe militar [que inaugura a República, em 1889], Rui é procurado por Benjamin Constant [militar positivista envolvido no movimento republicano], que conta a ele sobre a conspiração para derrubar a monarquia e que o convida a fazer parte de um futuro governo provisório. Rui aceita, mas isso aconteceu menos de uma semana antes do golpe, e ele diz que só aceitou porque o golpe já era um fato consumado. Entre os conspiradores só havia gente antiliberal, a começar pelos positivistas, além de militares de mentalidade autoritária e civis conservadores, como Campos Sales [que presidiria o Brasil de 1898 a 1902]. Rui diz então que embarcou na República porque esse já era um fato consumado, e ele tentaria fazer uma República que se parecesse mais com a americana do que com a francesa de 1793 [período que corresponde ao Terror Jacobino].
O negócio do Rui sempre foi o liberalismo. As formas de governo foram, para ele, uma questão secundária. A monarquia inglesa era, para Rui Barbosa, tão boa quanto a república americana. Nessa condição, ele aderiu à República, virou ministro, mas depois se decepcionou. Depois de pouco mais de um ano no governo – um governo que fechou o Congresso, as assembleias estaduais – ele passou a enfrentar esse regime republicano jacobino, tentou apelar à moderação e por fim passou a dizer que o Império era mais liberal que a República. Mas ele nunca renegou a República. Como liberal democrata, as questões de monarquia ou república simplesmente sempre foram secundárias para ele.

Essa monarquia idealizada por Rui Barbosa é a mesma almejada pelos monarquistas de hoje?

Christian Edward Cyril Lynch Hoje, os monarquistas brasileiros querem uma monarquia que nunca existiu no Brasil. A tradição da monarquia brasileira e portuguesa é, desde o Marquês de Pombal [1699-1782], uma tradição na qual o Estado enquadra a Igreja, é uma tradição de monarquia guiada pela ideia do absolutismo ilustrado, uma ideia modernizadora, que é o que José Bonifácio pregava. Essa é uma tradição que continua no Brasil por meio da República, com os positivistas, com os desenvolvimentistas, com os tenentes, com Getúlio Vargas, todos eles com essa consciência de que o Brasil é um país atrasado que precisa de modernizar, e que o Estado tem que ser o motor dessa modernização.
Essa monarquia reacionária que se apresenta hoje, essa monarquia católica, de descendentes da família real beijando uma santa, isso nunca existiu no Brasil. Pelo contrário, Dom Pedro 2º prendeu bispos que se negaram a casar maçons, contrariando com isso posições do Vaticano, porque essas posições violavam as leis brasileiras. Dom Pedro 2º reafirmou, portanto, o valor das leis brasileiras e do Estado contra Igreja. Então, se nós temos alguma tradição aí é a tradição do regalismo, da supremacia do Estado sobre a Igreja. Não chega a ser a separação entre Estado e Igreja, mas a Igreja não manda no Estado no Brasil desde o Marquês de Pombal. Há então algo de ficcional no saudosismo brasileiro pela monarquia porque a monarquia da época era provavelmente mais liberal do que o governo Bolsonaro é hoje.

Outro tema que volta à tona hoje é a resistência de alguns setores à vacinação. Rui Barbosa também se opôs à campanha de vacinação em 1904. O que essa posição indica sobre o perfil dele de forma geral?

Christian Edward Cyril Lynch Ele nunca foi contra a ciência, era um homem moderno. Ele era um campeão entre os liberais democratas no Brasil, foi o maior liberal brasileiro, o de maior repercussão. Ele criou uma mentalidade e uma cultura política, uma forma de as classes médias pensarem a política.
O problema de Rui Barbosa com a vacina não era de ser contra ou a favor da vacina em si. A questão é que a vacinação obrigatória veio num contexto em que o presidente da República [Rodrigues Alves] tinha conferido ao prefeito do Rio [Pereira Passos] e ao [médico sanitarista] Oswaldo Cruz poderes ditatoriais. O governo impunha que os fiscais sanitários entrassem à força dentro das casas das pessoas e as vacinassem à força.
Rui Barbosa, no fundo, disse uma coisa óbvia: isso é contra a Constituição, porque isso violava a inviolabilidade do domicílio e a inviolabilidade do corpo. Eram princípios liberais contra o autoritarismo do governo, não era uma posição obscurantista. Tanto é assim que, hoje, quando é preciso vacinar, há uma campanha de vacinação. A campanha orienta as pessoas a se vacinarem. Ninguém entra na casa de ninguém à força.

O secretário que o retirou do cargo na Fundação Casa de Rui Barbosa foi exonerado por ter copiado um discurso nazista logo depois. O sr. espera que essa decisão do presidente altere sua situação? Que percepção o sr. tem desse episódio?

Christian Edward Cyril Lynch Eu não fui exonerado porque não fui nomeado. Foi manifestada a intenção de me nomear e, horas depois, o secretário [Roberto Alvim] expressou sua recusa pública em me nomear. Foi isso. Não chegou a haver um ato administrativo, eu não assinei nada. Esse episódio demonstra que existem em certos setores deste governo um espírito de intolerância que é incompatível com um regime democrático liberal, tal como previsto na Constituição.
Esse setor acha que é preciso fazer uma espécie de revolução autoritária e entrar num regime de expurgo de pessoas a partir de critérios ideológicos que, na verdade, são critérios de adesão incondicional ao governo, que impedem qualquer funcionário de emitir qualquer tipo de crítica ao chefe de Estado.
No caso do secretário Alvim, tratava-se de um caso delirante de culto à personalidade do chefe de Estado, o que é próprio de regimes totalitários. Espero que, com a substituição de Alvim, venha alguém animado de um espírito mais constitucional, mais liberal, democrático e tolerante. Pode ser conservador, porque o povo brasileiro escolheu esse governo e a Constituição autoriza a existência de um governo conservador, mas um governo que se atenha à Constituição, que seja liberal e respeite o pluralismo de opiniões, que respeite a liberdade, que não persiga ninguém.

João Paulo Charleaux é repórter especial do Nexo e escreve de Paris

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Celso Lafer: palestra sobre Rui Barbosa na ABL - Merval Pereira

A atualidade dos clássicos

Leia a coluna de Merval Pereira no jornal O Globo, em 3 de maio, na qual cita carta do presidente da ABC ao presidente da República e ao ministro da Educação e palestra do Acadêmico Celso Lafer, na Academia Brasileira de Letras:

A atualidade dos pensadores, brasileiros e estrangeiros, diante de nossa realidade politica e social demonstra que os problemas que enfrentamos no momento são questões há muito debatidas. E que retrocedemos nesse debate, que pareciam estar superados pelos avanços de nossa sociedade.
O presidente da Academia Brasileira de Ciências, professor Luiz Davidovich, enviou uma carta ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da Educação Abraham Weintraub, protestando contra a decisão anunciada de reduzir as verbas públicas para o ensino de Humanas, tendo sido citadas especialmente a Sociologia e a Filosofia.
Davidovich começa lembrando, em contraposição à afirmação do ministro de que o Estado só deve financiar profissões que gerem retorno de fato, como veterinária, engenharia, medicina, que é preciso “formar profissionais preparados para os desafios de um mundo em que as profissões tradicionais têm dado lugar a outras inexistentes no século passado”.
Esse rápido desenvolvimento exigiria “conhecimento amplo não só de seus campos estritamente profissionais, mas também do país e da sociedade onde atuarão”. Davidovich lembrou então que Benjamim Constant, um dos fundadores da República brasileira, já no século XIX tinha a percepção da importância das humanidades e das ciências sociais na formação profissional: incluiu a sociologia no curso da Escola Militar.
Muito além de um retorno imediato, elas ensinam a pensar, condição necessária para a construção de uma sociedade ilustrada, democrática e produtiva, ressalta o presidente da Academia Brasileira de Ciências na carta ao presidente.
Recentemente, em palestra na Academia Brasileira de Letras, da qual é membro, sobre a presença fundamental de Ruy Barbosa na vida brasileira, o ex-ministro [e Acadêmico] Celso Lafer lembrou que ele exprimiu na trajetória da sua vida e obra a trama dos problemas políticos da sociedade brasileira, “não só do seu tempo, mas as dos nossos dias, com destaque para os desafios da consolidação e vigência das instituições democráticas”.
Lafer citou alguns exemplos bem atuais. Sobre as relações do Brasil com os EUA, Ruy Barbosa, na Conferência “A Imprensa e o dever da verdade”: escreveu “Não quero, nem quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos Estados Unidos. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política internacional, se bem haja entre ela e a nossa, interesses comuns bastante graves e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem intimamente em uma colaboração leal na política do mundo. Tal é o meu sentir de ontem, e amanhã.”
Celso Lafer destacou também que Ruy Barbosa promoveu, desde o governo provisório (Decreto nº 119-A, de 7/01 de 1890) a separação da Igreja e do Estado, e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas constituições subsequentes.
Implantou-se deste modo, ressaltou Lafer, uma nítida distinção entre, de um lado, instituições, motivações e autoridades religiosas e, de outro, instituições estatais e autoridades políticas, “de tal forma que não haja predomínio de religião sobre a política”.
A laicidade significa que “o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, na linha da primeira emenda da Constituição norte-americana”.
Em um Estado laico como Ruy Barbosa institucionalizou no Brasil, esclareceu Lafer, “as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações dirigidas aos fiéis, e não comandos para toda a sociedade’.
Esta contribuição de Ruy para a consolidação e vigência do espaço público e das instituições democráticas em nosso país é da maior atualidade, lembrou Celso Lafer, pois “contém o muito presente risco do indevido transbordamento da religião para o espaço público”.
O filósofo britânico Bertrand Russell, na História da Filosofia Ocidental, trata de um tema muito atual no Brasil: a influência dos filósofos, relativizando-a: “Quando vêem algum partido politico dizer-se inspirado pelos ensinamentos de Fulano de Tal, pensam que as ações desse partido são atribuíveis a esse fulano de tal, enquanto não raro o filósofo só é aclamado porque recomenda o que o partido teria feito de qualquer modo”.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Rui Barbosa: o homem mais inteligente do Brasil

Morre Rui Barbosa

Morre Rui Barbosa





No dia 01 de março de 1923, morre Rui Barbosa, que se destacou na função de político e diplomata durante a República Velha





Rui recebeu o prêmio "Águia de Haia" por seu desempenho nas negociações de paz na conferência de Haia em 1907 (Foto: Reprodução/Internet)

Rui Barbosa foi advogado, jornalista e político. Nasceu em Salvador, Bahia, em 5 de novembro de 1849, e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Depois de concluir o ensino primário, Rui Barbosa mudou-se para Recife para estudar Direito. Em 1868, transferiu-se para a Faculdade de Direito de São Paulo, onde concluiu seus estudos. Iniciou sua carreira política na Bahia, onde lutou pela libertação dos escravos e por eleições diretas.
Em 1878, na Assembleia Provincial da Bahia, Rui foi eleito deputado, passando a ser deputado geral, representante do estado na Assembleia Nacional, no ano seguinte. Participou ativamente da reforma eleitoral e de ensino, além da emancipação dos escravos.
Com a proclamação da República, Rui tornou-se um dos mais importantes líderes políticos, sendo vice-chefe do governo provisório e titular da pasta de finanças. Após a dissolução do Congresso por Deodoro da Fonseca, ele abandonou o governo e passou a fazer oposição.
Em 1893, foi exilado por se envolver na Revolução da Armada, retornando ao país dois anos depois. Foi designado como representante do Brasil na Conferência de Paz de Haia, ganhando o prêmio de “Águia de Haia” por seu desempenho nas negociações, em 1907. Rui Barbosa candidatou-se duas vezes à Presidência da República, nas eleições de 1910, contra Hermes da Fonseca, e nas de 1919, contra Epitácio Pessoa em 1919, mas foi derrotado em ambas.
Rui Barbosa morreu aos 73 anos, no dia 1 de março de 1923, por complicações de um edema pulmonar. Sua biblioteca, com mais de 50 mil títulos, é mantida pela Fundação Casa de Rui Barbosa, sediada em sua antiga residência.



Rui Barbosa foi advogado, jornalista e político. Nasceu em Salvador, Bahia, em 5 de novembro de 1849, e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Depois de concluir o ensino primário, Rui Barbosa mudou-se para Recife para estudar Direito. Em 1868, transferiu-se para a Faculdade de Direito de São Paulo, onde concluiu seus estudos. Iniciou sua carreira política na Bahia, onde lutou pela libertação dos escravos e por eleições diretas.
Em 1878, na Assembleia Provincial da Bahia, Rui foi eleito deputado, passando a ser deputado geral, representante do estado na Assembleia Nacional, no ano seguinte. Participou ativamente da reforma eleitoral e de ensino, além da emancipação dos escravos.
Com a proclamação da República, Rui tornou-se um dos mais importantes líderes políticos, sendo vice-chefe do governo provisório e titular da pasta de finanças. Após a dissolução do Congresso por Deodoro da Fonseca, ele abandonou o governo e passou a fazer oposição.
Em 1893, foi exilado por se envolver na Revolução da Armada, retornando ao país dois anos depois. Foi designado como representante do Brasil na Conferência de Paz de Haia, ganhando o prêmio de “Águia de Haia” por seu desempenho nas negociações, em 1907. Rui Barbosa candidatou-se duas vezes à Presidência da República, nas eleições de 1910, contra Hermes da Fonseca, e nas de 1919, contra Epitácio Pessoa em 1919, mas foi derrotado em ambas.
Rui Barbosa morreu aos 73 anos, no dia 1 de março de 1923, por complicações de um edema pulmonar. Sua biblioteca, com mais de 50 mil títulos, é mantida pela Fundação Casa de Rui Barbosa, sediada em sua antiga residência.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Cruzando o Rubicao: discurso de paraninfo de Wagner D'Angelis

Meu amigo de Curitiba Wagner D'Angelis, eminente professor de Direito, enviou-me o texto do seu discurso de paraninfo para a turma de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná, efetuado no último dia 14 de setembro d 2018, já adaptado sob a forma de artigo jurídico.
Com destaque, trecho da famosa "oração aos moços", que já era um discurso de paraninfo de Rui Barbosa, quase cem anos atrás...
Paulo Roberto de Almeida


CRUZANDO O RUBICÃO DO CURSO DE DIREITO:
DISCURSO DE PARANINFO 

PROF. WAGNER ROCHA D’ANGELIS(*)


INTRODUÇÃO

Na inesquecível e excelsa noite de 14 de setembro de 2018, diante de um abarrotado Teatro Fernanda Montenegro, em Curitiba, vi-me submetido a um teste definitivo para o meu coração quando, na qualidade de paraninfo, coube-me fazer o discurso inerente ao título a mim concedido, na cerimônia de colação de grau dos formandos da Faculdade de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná. 

Se a cada profissão cabe a devida recompensa, acredito ser a do magistério uma das que mais traz satisfação à alma pelo imediato e sincero reconhecimento tributado pelos discentes. E dentre tantas formas de demonstração de carinho e retribuição, a escolha do docente para paraninfar a turma que concluiu a graduação penso ser das mais significativas e emocionantes. Imbuído de tais sentimentos assomei a tribuna naquela data histórica, para eternizar o meu agradecimento a todos os acadêmicos (as) que me honraram com a mencionada e quiçá excessiva homenagem. Abaixo, segue por inteiro teor o discurso a eles dedicado na ocasião.  

CRUZANDO O RUBICÃO

Senhoras e Senhores convidados
Minhas queridas formandas e meus queridos formandos

Honrado com a escolha dessa valorosa turma para paraninfo, permitiu Deus fazer-me presente neste maravilhoso evento e partilhar com vocês, queridos afilhados e afilhadas, um pouco da minha experiência de 43 anos como operador do Direito e 32 anos no exercício de cátedra universitária – posto que dela me afastei por 10 anos -, sempre na disciplina de Direito Internacional (Público e Privado), sendo desse período quase 23 anos integralmente dedicados a esta renomada Casa de Saber, pela qual vocês hoje obtêm o augusto diploma de bacharel em Direito. Honra ainda maior por receber esta homenagem no ano em que a faculdade de ciências jurídicas desta universidade completa 25 anos de funcionamento. 

E neste momento sublime, por dádiva divina e por generosa concessão de todos vocês, aqui nos encontramos, neste belo teatro, como que selando um vínculo entre a carreira dos que a estão iniciando e a minha que se encaminha para o término. A esta altura da minha caminhada profissional, fazendo as contas, só posso dizer que Deus me deu mais do que mereci; e de coração, desejo que obtenham no mínimo o dobro da felicidade que me foi proporcionada!

Senhoras e Senhores convidados, o Paraninfoé o padrinho, o responsável pela proteção dos afilhados, é o que leciona a última aula. Por isto, peço-lhes licença para com eles manter este colóquio, para a eles abrir o que me vai na alma. 
Afilhados e Afilhadas, vocês fazem parte de uma turma vitoriosa, um grupo seleto de pessoas predestinadas, que forjaram comigo uma aliança espiritual para a travessia do Rubicão do Curso de Direito. Mais do que isto, quando me defrontei com dificuldades de saúde em parte do 1° semestre deste ano de vocês não me faltaram gestos e palavras de preocupação e estímulo. Em inequívoca demonstração de carinho, com coleguismo e amizade, vocês estiveram solidários comigo ao longo da minha recuperação, e ao me escolherem para paraninfo foram muito além, pois com este “beau geste” acresceram-me forças e alento para retornar ainda mais célere, à diuturnidade agradabilíssima da cátedra universitária. 

Por isso mesmo, superados os problemas de saúde, da minha parte, da mesma forma que vencidas as eventuais procelas que estiveram a dificultar a travessia do Rubicão, por parte de vocês, este 14 de setembro se afigura uma data mais para falarmos ao coração, do que para grandes lances de erudição. Por isto, permitam a este padrinho, a este professor decano, a este abençoador, adentrado nos anos e simples mestre nas lições do tempo, apenas um asteroide diante de tantos sóis do conhecimento jurídico, que feche por um instante o livro da ciência, para folhear, junto com vocês, o livro da experiência. 

Para mim, tanto quanto a vários dos doutos professores aqui presentes, torna-se quase impossível citar todos os ex-alunos que hoje são professores universitários, desembargadores, juízes, promotores, procuradores de justiça, delegados de polícia, servidores públicos, ou, a maioria, advogados atuantes nas mais diversas áreas do conhecimento jurídico. Assim como, difícil dizer o número dos que, mesmo não sendo operadores do direito, se valem da valiosa cultura universal e/ou específica que a ciência jurídica proporciona como base auxiliar para as outras profissões que exercem no dia-a-dia e dão sustentação às suas necessidades econômico-financeiras e/ou satisfação às suas vidas pessoais ou familiares. Enfim, de uma forma ou de outra, do mundo do Direito jorra um manancial de conhecimento - tanto extraordinário quanto indispensável - que inclusive a todos aproveita, mesmo àqueles que, por um momento, por um descompasso ou um compasso de espera, ou mesmo por uma opção definitiva, não tomarão dele como profissão permanente. 

Mas estamos aqui, queridos afilhados e queridas afilhadas, para falar do horizonte mágico que se descortina diante de vocês agora que, oficialmente, encontram-se na outra margem do Rubicão. Ainda no primeiro dia de aula da cadeira de Direito Internacional Público, no 9° Período, incitei a vocês, em tom humorado, para que fizessem comigo a passagem simbólica do Rubicão Jurídico, tal qual fizera Júlio Cesar a travessia do Rubicão fluvial em tempos idos. Pois bem, meus caros, rogo-lhes a devida licença, porque assim julgo pertinente, para rever essa história e suas ilações nesta ocasião e neste ato pomposo, partilhando tais fatos com seus entes queridos aqui presentes. 

Avisado da destituição de seus poderes no governo da Gália, após tê-la dominado por oito anos, em 11 de janeiro de 49 a.C., à frente da sua leal e experimentada XIII Legião Gêmea, o general e estadista romano Caio Júlio Césartomou uma decisão crucial: a de atravessar com suas forças militares o rioRubicão(rio Rubiconeem italiano), um curso d´água que se lança no mar Adriático, a noroeste de Roma, e que naquela época se impunha como fronteira oficial entre a civilização romana e a Gália Cisalpina, sendo considerada uma região bárbara aquém dos Alpes. O ato de cruzar o rio equivalia a transgredir uma antiga lei do Senado, que determinava o licenciamento e dispersão das tropas toda vez que um comandante voltasse à Roma após campanhas militares além do norte da Itália, que era exatamente a situação de César. 

Ao transpor o rio, em decisão ponderada, Cesar dava início à guerra civil contra o general Pompeu Magno, que detinha o poder sobre Roma. Por ciente de que a travessia da fronteira fluvial era uma decisão sem volta, Júlio Cesar pronunciaria a frase “alea jacta est” (‘o dado está lançado’, no sentido de ‘a sorte está lançada’), atravessando o rio com seu exército em direção à capital romana. A partir daí, como é de ciência geral, seu oponente político e os membros do Senado fugiram de Roma e, perseguidos, foram derrotados; Cesar foi nomeado ditador romano, e Pompeu, mais tarde, veio a ser morto no Egito. Mas isto já foge do tema deste encontro!

O que importa é mostrar que a decisão de Júlio César mudou o eixo da história. Antes que ele atravessasse o Rubicão, a tomada de Roma era apenas uma ideia, um desejo que ele poderia ou não concretizar. A partir do sucesso de sua opção destemida, atravessar o Rubicão passou a significar “pensar com ousadia”, “ultrapassar os próprios limites”, superar adversidades”, “enfrentar com coragem ou destemor o desconhecido”.  César estava ciente das dificuldades que teria pela frente, sabia que a empreitada militar poderia inclusive leva-lo à morte em batalha ou à pena de morte por desobediência política, mas apesar disso, dispôs-se a atravessar o Rubicão – vale dizer, assumiu enfrentar o perigo em vez de sujeitar-se às imposições senatoriais que lhe seriam desastrosas. 

“Cruzar o Rubicão” ou “atravessar o Rubicão” são expressões pelas quais, desde então, convencionou-se utilizar para qualquer pessoa que tenha tomado uma decisão arriscada de maneira irrevogável e obtido êxito. Exprime a tomada de uma decisão que sói se verificar ante um projeto arrojado, defrontando-se com um caminho dúbio e potencialmente inseguro. Vale dizer, também, que é preciso por vezes abandonar a nossa zona de conforto, investir no novo, ir além da ilusória segurança de dados e registros que se perpetuam sem inovações, confiando-se em um poder além das nossas fragilidades humanas. 

Há muito tempo que a segurança imobilizante tem sido o lema dos que não prosperam, mas nunca foi o mote dos vencedores. O vencedor é aquele que sabe escolher o lado certo nas adversidades, que procura escrever a sua própria história, que não se omite de correr o risco, a culpa e o peso da tempestade, se quiser ter ou criar oportunidades.

Pois bem, meus jovens afilhados, vocês atingiram o outro lado do rio das Ciências Jurídicas, após cinco longos e exaustivos anos. Com relação ao exercício do Direito, tal qual Júlio Cesar, cabe aqui a exclamação: “Alea jacta est” (‘A sorte está lançada’). Com vistas ao futuro profissional, quem sabe a ousadia seja a chave do sucesso. Obviamente que não apenas ela, mas pouco se avançará sem ela. O mundo é um livro do qual os que não assumem riscos leem apenas uma página. Vocês lograram atravessar o Rubicão do Direito; outros Rubicõesmais poderão surgir diante de vocês pela vida afora. Aliás, melhor não se iludirem, eles na verdade irão aparecer. Todavia, fortalecidos por esta etapa que acabaram de concluir, atirem-se sem medo às novas travessias! 

Do lado de cá do Rubicão recém transpassado - para o que não faltaram fé, garra, estudo e empenho -, o feito de vocês é causa de orgulho a todos neste recinto, tanto aos professores que compõe esta Mesa Solene, quanto aos convidados que vieram aplaudir a meritória conquista. 

Pois bem, estimadas e estimados Bacharelandos, ao deixarem para trás os bancos da graduação com o selo da satisfação na alma, entendo por oportuno trazer-lhes à lembrança que por escolha e/ou vocação vocês decidiram se consagrar às leis. Reflitam comigo, vocês passarão a se dedicar às leis em um país com excessividade legislativa, em um país com grande complexidade e imprecisão normativa, em um país com inúmeras leis distantes do interesse da maioria, em um país no qual muitas regras são injustas, em um país onde em várias instâncias acontecem interpretações judiciais equivocadas de tantas leis. 

Convive-se no Brasil com uma dantesca proliferação normativa. Leis e mais leis, aos borbotões, são urdidas diariamente em gabinetes políticos e ajustadas nos diferentes plenários legislativos, positivando-se igualmente o joio e o trigo. Desse mal do fetichismo legal já conheciam os romanos, a ponto de tornar-se um aforismo a frase de Cícero, estampada na obra “De Oficiis”, em 44 a.C.: “Summum ius, summa injuria” – ou seja, o excesso de direito redunda em máxima injustiça. 

O nosso país, como de resto a América Latina, debate-se na areia movediça da retórica, do formalismo, do cartorialismo de estado, do corporativismo, do clientelismo, do procedimentalismo e burocratismo, dentre outros males. E muito embora o princípio da igualdade formal estampado em nossa Carta Constitucional (a ‘Constituição Cidadã’, que completa 30 anos neste 05 de outubro), a ninguém passa despercebido que, em várias regiões brasileiras, muitos há que se pretendam na prática serem mais iguais que os outros, agindo mesmo com prepotência e discriminação, e para cuja defesa ou manutenção de suas pretensões ou privilégios, inclusive, se valem de leis condescendentes, brechas ou omissões legais. 

Diletos diplomandos e diplomandas, vocês já estão cientes de tais dificuldades, com as quais se depararão no quotidiano de suas atividades de operadores do Direito; para alguns, aliás, isto não é novidade, porquanto já estão imersos na prática profissional, fazendo estágios em escritórios ou empresas, ou mesmo convivendo com a área jurídica por meio de funções públicas. 

A garantia da democracia, o aperfeiçoamento das suas instituições, a consolidação dos direitos humanos e a perpetuação do Estado de Direito dependem profundamente das profissões implícitas ao Curso de Direito, que hoje oficial e gloriosamente vocês encerram na UTP. 

Minhas Amigas e meus Amigos, é para colaborar com o Direito e com a Justiça que hoje vocês saem daqui habilitados. Magistrados, promotores, procuradores, delegados de polícia, diplomatas, advogados, docentes, eis o que vocês serão em grande parte. São carreiras prodigiosas, inseparáveis uma das outras, e, tanto uma como as outras, imensas nas suas utilidades, interações, dificuldades e responsabilidades.

Diante disso, poderia alguém me perguntar por alguma recomendação pontual neste momento de despedida institucional. Ora, prometi que lhes falaria pela experiência, no que vi e que observei em 43 anos de advocacia e 32 anos de docência superior. Me perdoem, pois, se para tanto me permito avançar um pouco mais no tempo! De qualquer forma, vocês me fizeram padrinho, e o padrinho é um pai espiritual. Se de todo bom pai pode-se esperar um bom conselho, por natural, ao padrinho é reservada alguma recomendação profissional. 

Pois então, acadêmicos recém-formados e novos bacharéis, incito-os a estudar, e estudar. A trabalhar, e trabalhar. Alguns dirão que anuncio o óbvio e corriqueiro. Mas relembro-lhes que me dispus aqui a discorrer com base na experiência, e por isto destaco o que mais tenho feito ao longo da carreira. Fui estudante, continuo sendo um estudante até hoje. O pouco que sei devo às minhas leituras e pesquisas constantes. Logo, oriento-os de pronto a continuarem estudando.  Mas atenção! Não se atenham apenas em ler. É imprescindível absorver a leitura e transformá-la em ideia própria. Se quiserem se destacar da maioria, leiam muito e convertam o conhecimento contraído em sabedoria pessoal. 

Além de ler, trabalhar! Trabalhar muito! E se a ninguém passa despercebido o valor e necessidade do trabalho, nos tempos presentes cabe-me apenas fazer apelos complementares. Trabalhem sem medo de novos desafios, trabalhem com o coração, trabalhem com responsabilidade, e sobretudo, trabalhem com ética. O Brasil está carente de ética, honestidade e vergonha na cara! Vocês deixam nossa premiada Instituição de Ensino Superior, que em avaliação recente recebeu a bela nota 4,0 perante o MEC, com a nossa confiança de que farão a diferença no exercício profissional, de que ajudarão a mudar a presunção de que a corrupção e a impunidade não podem ser extirpados da nossa cultura pátria, de que o Direito está à mercê dos interesses da elite econômica e política. Enfim, não tergiversem sobre as responsabilidades que lhes cabem na hora presente e, como grafou magistralmente o jurista uruguaio Eduardo Juan Couture, autor de “Os Mandamentos do Advogado”, se um dia - aliás, a qualquer momento, na triste realidade jurídica e política brasileiras -,  vocês, porventura, encontrarem o Direito em conflito com a Justiça, lutem pela Justiça!

Quanto às carreiras jurídicas, conheço todas, e todas valem a pena, se a alma não for pequena – parafraseando o poeta lusitano Fernando Pessoa. Magistrado, membro do Ministério Público, diplomata, advogado, professor universitário – as carreiras se ombreiam! Se me pedirem como devem se portar na profissão, digo-lhes direta e objetivamente o seguinte: mirem-se nos exemplos magníficos desses renomados mestres que, por escolha acertada desta turma, encontram-se aqui e agora assentados nesta mesa protocolar. Vocês os elegeram pela nobreza de caráter e elevadas virtudes e habilidades profissionais, dentre tantos docentes de destaque, como símbolos deste Curso de Direito que nesta noite outorga-lhes o grau de bacharel.  Inspirem-se neles, sigam seus passos, este é o meu parecer!

CONCLUSÃO

Minhas amigas e meus amigos, já lhes aconselhei sobre a forma de exercerem a profissão, mas vale referendar ainda, quanto àquela em que me vejo investido já se vão mais de 42 anos, as lições do nosso jurista mor, o nobre baiano Rui Barbosa. 

Escolhido paraninfo pela Turma de Direito da USP de 1920, ano do jubileu de ouro da sua formatura, Rui teve o seu discurso lido pelo Prof. Reinaldo Porchat, na cerimônia verificada em março de 1921, porquanto, adoentado, não pode comparecer. Em seu magnífico trabalho literário, que se publicou com o título de “Oração aos Moços”, o notável “patrono da advocacia brasileira”, após proclamar a justiça militante como o objeto da missão do advogado e a liberdade como a sua principal vocação, recomenda enfaticamente: 

(...) Não desertar a justiça, nem cortejá−la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, da ciência mercadoria. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem.

Aos novos bacharéis, meus afilhados e minhas afilhadas, invocando as energias cósmicas mais positivas sobre vocês, renovo os meus votos de sucesso no exercício das carreiras incomensuráveis do Direito e desejo-lhes felicidade ao longo de suas vidas, com o pedido e a expectativa, de todos nós, de que não meçam esforços na construção de um Brasil onde reine efetivamente a Solidariedade, a Paz e a Justiça.  

Muito obrigado!
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(*PROF. WAGNER ROCHA D’ANGELIS– Advogado, historiógrafo e professor universitário, mestre e doutor em Direito pela USP/UFPR. Professor Decano do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), possuindo várias obras jurídicas publicadas. Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL) e Presidente do Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos (CHF). Membro Titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz (vinculada à CNBB), do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR), do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB – Seccional do Paraná (CEVIGE). Jurista com várias obras publicadas.