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sábado, 6 de fevereiro de 2021

Uma lágrima para Shozo Motoyama: 1940-2021 - Ana Paula Torres Megiani (USP)

 Conheci e interagi, em algumas oportunidades, com Shozo Motoyama, li seus livros e até resenhei alguns. Considero-o um acadêmico íntegro e devotado ao que sempre fez: a história e o estudo das ciências no Brasil.

A história da ciência por um cientista historiador: Shozo Motoyama (1940-2021)

Por Ana Paula Torres Megiani, historiadora e vice-diretora da FFLCH/USP

01/02/2021

No dia 26 de janeiro de 2021 a comunidade científica e acadêmica, uspiana e brasileira, perdeu um de seus mais reconhecidos membros, o professor doutor Shozo Motoyama. Nascido em 5 de janeiro de 1940, Shozo Motoyama era descendente de imigrantes japoneses do interior de São Paulo. Graduou-se em Física em 1967 e doutorou-se em Ciências em 1971 com uma tese acerca da lógica em Galileu Galilei, sob a orientação do professor Eurípedes Simões de Paula, pela então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde abraçou a História como ofício e profissão.

A partir de 1969, Shozo Motoyama foi, durante quatro décadas, um dos mais ativos docentes do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), onde defendeu a tese de livre-docência em 1976, tornou-se professor titular de História da Ciência em 1999 e aposentou-se em 2009. Após a aposentaria continuou a atuar intensamente no ambiente acadêmico e universitário, contribuindo de maneira incansável na orientação de pós-graduação, docência e produção científica, com mais de 20 dissertações de mestrado e 30 teses de doutorado realizadas sob sua orientação junto ao Programa de História Social da FFLCH. Atualmente era docente sênior do Departamento de História.



Shozo Motoyama – Foto: IEA/USP

A reforma da USP (1968) desmembrou a antiga Faculdade de Ciências e Letras em diferentes institutos e agregou áreas afins na atual FFLCH. Naquele contexto o curso de História, que contava com docentes renomados como Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo D’Oliveira França, Emilia Viotti da Costa e o próprio Eurípedes Simões de Paula, se transformou em Departamento de História e recebeu dois importantes novos campos: a História da Ciência e a História da Arte – esta logo seria anexada a um novo instituto, a Escola de Comunicações e Artes (ECA). Para a História da Ciência a FFLCH trouxe dois novos docentes, sendo um deles do Instituto de Física, Shozo Motoyama. Para a professora Raquel Glezer, colega e amiga do professor Shozo no DH, “a presença do Shozo e sua atuação transformaram o campo da História da Ciência em um núcleo interdisciplinar que reunia docentes de quase todos os institutos e faculdades da USP, contribuindo assim para o avanço das relações interinstitucionais do Departamento de História e da própria FFLCH”. Desse modo, destaca a professora Glezer, “a área de História da Ciência passou a atrair tanto alunos para o processo de formação na pós-graduação, como docentes interessados na história de seu próprio campo”, permitindo a ampliação e adensamento das reflexões acerca da relação entre a Teoria da História e História da Ciência.

Shozo Motyama atuou também como formador de quadros acadêmicos em História do Conhecimento e Teoria da História, tendo orientado um grande número de pesquisadores em nível de mestrado e doutorado na USP, e sendo responsável pela abertura de uma nova área de pesquisa e atuação: a História da Ciência e da Técnica no Brasil, hoje consolidada e fortalecida no âmbito das mais diversas sociedades e associações de História e de Ciência.

Dentre as importantes contribuições que Shozo Motoyama legou à USP, está o Centro Interunidades de História da Ciência (CHC – http://chc.fflch.usp.br/), fundado por ele em 1988 e dirigido até sua aposentadoria em 2009. Sediado no edifício de Geografia e História da FFLCH (campus Butantã), o CHC acolhe e agrega docentes e pesquisadores das áreas de Filosofia, Física, Astronomia, Engenharias, Biologia, entre tantas outras. Preserva arquivos pessoais e institucionais relevantes para o estudo da História da Ciência e da Técnica no Brasil. Em âmbito nacional, sua atuação foi fundamental para a criação da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC), em 1983. Internacionalmente, foi diversas vezes pesquisador convidado, com destaque para instituições japonesas como o Science and Engineering Laboratory da Waseda University e o Cosmic Ray Laboratory da University of Tokyo, além de responsável por inúmeras colaborações por meio de convênios e protocolos.

Shozo Motoyama foi também uma importante presença nas relações Brasil-Japão, tendo atuado como membro da diretoria do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros desde 1966 e presidente entre 2004 e 2019. Foi também diretor do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil durante os anos 1991-1997 e 2008-2009. Era membro-titular da cadeira nº 15 da Academia Paulista de História. Dedicou-se à história da imigração japonesa no Brasil, com publicações voltadas para o tema como o livro Sob o signo do sol levante, de 2011, que trata do tema antes da Segunda Guerra Mundial, e em 2016, em colaboração com o jornalista Jorge Okubaro, Do conflito à integração – uma história da imigração japonesa no Brasil, que cobre o período de 1941 até 2008. Ambas as publicações foram resultado de sua dedicação à Associação para Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil e ao Instituto Brasil-Japão de Integração Cultural e Social.

Publicou um grande volume de trabalhos, livros e artigos ao longo da carreira, dentre os quais destacam-se aqueles dedicados à história da USP, do CNPq e da Fapesp: Para uma história da Fapesp – marcos documentais, de 1999; 50 anos do CNPq contados pelos seus presidentes, de 2002; Construindo o futuro – 35 anos de pós-graduação da USP, de 2004; USP 70 anos – imagens de uma história vivida, de 2006; Fapesp 50 anos: meio século de ciência, de 2015, para citar apenas alguns. Organizou diversas obras coletivas, dentre elas a importantíssima História das ciências no Brasil, em três volumes, em parceria com Mario Ferri, publicada entre 1979 e 1981. Participou também em obras sobre a história da Fuvest e história da Escola Politécnica com Marilda Nagamini, parceira de muitos trabalhos.

Em tempos tristes como este em que vivemos, com a multiplicação de ataques obscurantistas e negacionistas à ciência, que não param de nos estarrecer, a memória e o legado de Shozo Motoyama necessitam ser difundidos e cultivados. Sua vida dedicada à docência, ao conhecimento e à universidade pública são grande estímulo e inspiração às novas gerações de pesquisadores que ingressam nas universidades do Brasil. A ciência no Brasil mudou sob o olhar crítico e investigativo de Shozo Motoyama. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e a Universidade de São Paulo rendem a ele as maiores homenagens e eterna gratidão. Muito obrigada, professor Shozo.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A USP aos setenta anos: uma velha senhora? - Shozo Motoyama (review-article)

Uma venerável, mas ainda jovem, senhora: a USP aos 70 anos

Paulo Roberto de Almeida

Resenha de:
Shozo Motoyama (org.):
USP 70 anos: Imagens de uma história vivida
(São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, 704 p.; ISBN: 85-314-0953-5; demais autores: Ana Maria Pinho Leite Gordon, Edson Emanuel Simões, Fernando Camelier, Marilda Nagamini, Pedro de Luna e Renato Teixeira Vargas)

A USP é, inquestionavelmente, a única universidade brasileira em condições de figurar em boa posição nas listas das melhores universidades do mundo. Segundo um tipo de classificação (da universidade Shanghai Jiao Tong, da China), ela ocupa o 71º lugar no ranking das universidades das Américas, mas duplica esse número quando inserida em uma lista mundial. Trata-se, sem dúvida, de um ótimo desempenho no plano regional e internacional, ainda que ela figure entre as universidades “médias” americanas. A USP é, em todo caso, responsável por pelo menos um quarto da produção científica brasileira, por mais de um quarto dos doutores formados anualmente e por quase um quinto do volume de mestrandos titulados.
Pode-se, em qualquer hipótese, considerar estes números como um resultado mais do que significativo para uma instituição universitária que recém completou setenta anos, se aproximando, portanto, da idade média do brasileiro. Sua “esperança de vida” era, porém, incerta, quando foi criada em 1934, na vaga de um notável esforço dispendido pelas elites paulistas para compensar o fato da derrota e da intervenção federal como conseqüência da derrota imposta na revolução constitucionalista de 1932. Naquela momento, a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras teve de se fazer com base na importação de cérebros (e braços), à falta de capital humano em volume suficiente para sustentar as atividades de ensino, de pesquisa e de disseminação do conhecimento na sociedade, como estipulavam os dispositivos do decreto que a criou. Como relatam alguns entrevistados, no início ela carecia dos mais simples equipamentos, devendo os alunos e professores trazer de casa, por exemplo, vidros e tubos para suas experiências. Com o surgimento das instituições de fomento e pesquisa, nos níveis federal e estadual, ela pôde se firmar e crescer ao que é, hoje, uma instituição exemplar.
Este livro, coordenado por Shozo Motoyama, incansável pesquisador e divulgador da história das ciências e da tecnologia no Brasil, publicado no momento em que essa venerável senhora completa 70 anos, apresenta-se, basicamente, como uma coletânea de entrevistas e depoimentos, colhidos entre 2004 e 2005. Trata-se da segunda e mais importante parte do volume: ela ocupa cerca de 500 páginas de entrevistas, em meio a dezenas de fotos, constituindo um pesado álbum, cuja “massa atômica” é provavelmente proporcional à contribuição da USP à formação do espírito científico no Brasil. São entrevistados oito ex-reitores (de Miguel Reale, no cargo duas vezes, em 1949-50 e 1969-73, a Adolpho José Melphi, que terminou sua gestão em novembro de 2005), vários vice-reitores e os pró-reitores de graduação, de pós-graduação, de pesquisa e de cultura e extensão nas últimas décadas, num total de 32 personalidades uspianas. O critério seletivo foi o desempenho de cargos depois da reforma dos Estatutos da USP, em 1989, estendendo-se, porém, as entrevistas com os reitores vivos antes desse período.
Das entrevistas e posterior organização do material para o livro participaram seis outros pesquisadores, a maior parte colaboradores veteranos de outros empreendimentos do Centro Interunidade de História da Ciência da USP. Esta parte interessará certamente aos pesquisadores e historiadores que retirarão desses depoimentos um precioso material para reconstituir a trajetória da mais bem sucedida instituição universitária brasileira. Mas, as entrevistas também podem ser lidas como uma história coletiva, com saborosas passagens sobre a vida pessoal de cada um dos professores e pesquisadores, grande parte deles filhos de imigrantes pobres, que tiveram sucesso graças a um extraordinário esforço pessoal e familiar, às oportunidades abertas pelo estado empreendedor que é São Paulo e, certamente, alguma sorte também. Os itinerários pessoais, relatados de viva voz (na maior parte dos casos pela primeira vez), são fascinantes e mereceriam, provavelmente, aprofundamentos em livros de memórias de cada um dos protagonistas. A leitura desses relatos confirma, se ainda preciso fosse, que a maior riqueza de uma nação está em seu próprio povo, que também faz a força de uma instituição de pesquisa e ensino de primeira qualidade como a USP.
A primeira parte trata da história da USP e esta vai muito além dos setenta anos de sua existência oficial, alcançando perto de 180 anos da vida nacional, desde a primeira faculdade de direito criada em São Paulo em 1827. A introdução, assinada por Shozo Motoyama, começa por um sobrevôo do papel da universidade na sociedade moderna, refaz sua difícil trajetória no Brasil, detendo-se, em seguida, sobre a inserção da USP na história econômica, científica e política nacional. A USP foi constituída a partir de escolas e faculdades isoladas, juntamente com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que deveria fazer a junção das entidades existentes: a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a Escola Politécnica (do final do século XIX), a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Farmácia e Odontologia e a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, de Piracicaba. Foram contratados, ainda em 1934, 13 professores estrangeiros e mais quatro brasileiros para a nova FFCL, cuja luta se deu, durante anos, pela sua integração com os institutos isolados, cuja perspectiva era bem mais profissionalizante do que propriamente acadêmica. Segundo um desses mestres estrangeiros, Lévy-Strauss, o papel mais importante deles não foi propriamente o ensino, mas a disciplina: os brasileiros já eram muito bons, mas indisciplinados cientificamente.
Criada em 1934, apenas dez anos depois ela se torna, de fato, um ente autônomo, sob a forma de autarquia, passando a receber do Estado uma dotação orçamentária global, que ela administrava livremente, à exceção dos vencimentos dos professores. Graças ao papel de Miguel Reale no Conselho Administrativo do Estado – órgão de intervenção do Estado Novo –, o Reitor da USP passou a ter status de secretário de Estado, passando a despachar diretamente com o chefe do executivo paulista. Como demonstra Motoyama, a USP foi internacionalizada desde o início, não apenas pela contribuição de professores e pesquisadores estrangeiros, mas também pelo envio precoce de seus melhores alunos para continuarem pesquisas no exterior, numa época em que eram inexistentes as instituições de fomento. O regime de tempo integral, criado em 1946 sob iniciativa de José Reis, foi essencial para a integração do ensino e da pesquisa.
A USP acompanhou todas as vissicitudes da história política nacional desde os anos de crescimento otimista, na era Vargas e Kubitschek, passando pelo cerceamento do pensamento contestador, nos anos da ditadura, até o renascimento democrático, em 1985, que trouxe outros problemas de ordem econômica e administrativa. Alguns dos cientistas expulsos durante a fase anterior voltaram e propuseram a criação do Instituto de Estudos Avançados, durante a reitoria de José Goldemberg. Paralelamente surgiu o Centro Interunidade de História da Ciência, que veio a ter importante papel na memória da produção científica e tecnológica brasileira, cujo trabalho está refletido neste mesmo volume de história. A nova constituição, em 1988, determinou a revisão das constituições estaduais e, no mesmo movimento, a elaboração de novos estatutos para a USP, já que o existentes, de 1969, refletiam o autoritarismo vigente na época. Data dessa época, a criação dos cargos de pró-reitores, que se por um lado burocratizaram os procedimentos, por outro descentralizaram as atividades, o que parece ter sido positivo. Mais recentemente, a USP caminhou no sentido de sua maior integração com a comunidade, tendo inaugurado, em 2005, um novo campus na cidade de São Paulo, a USP-Leste, com expansão das vagas e abertura de novos cursos, inovadores.
O núcleo da primeira parte é constituído por três capítulos, nos quais os autores tratam, sucessivamente, do “longo antecedente” (ou seja, o percurso de 1827 a 1934), da “construção da universidade” (dos anos trinta à repressão sob a ditadura, em 1969) e da “universidade resistente”, isto é, os vinte anos até 1989, quando são aprovados os novos estatutos. A história posterior está relativamente fragmentada e dispersa nos depoimentos recolhidos e deve constituir a base indispensável de uma história institucional a partir de 1989, talvez sob responsabilidade dos mesmos autores que tão bem conduziram a coleta do material primário. Esses três longos capítulos, apoiados em fontes documentais e em sólida bibliografia secundária, constituem um belo racconto storico sobre a emergência e afirmação da USP, no contexto mais amplo da história brasileira e da evolução científica e tecnológica mundial.
História institucional não quer necessariamente dizer desprovida de avaliações: ao lado do relato das ações e iniciativas dos reitores, a história politica e econômica do país é seguida com bastante detalhe. Alguns episódios são particularmente dolorosos na vida da USP, como as cassações de professores ocorridas depois do AI-5, de dezembro de 1968: ao todo, no decorrer de 1969, foram afastados 70 profesores de várias unidades da USP. A trajetória de resistência e de acomodação ao regime autoritário é relatada com minúcias, paralelamente ao relato da gestão de cada um dos reitores, até a administração de José Goldemberg (1986-1990), que preside a uma fase de intensas reformas, com mudanças substanciais no campo institucional, até hoje subsistentes. Sua maior vitória, com as demais universidades paulistas, foi a conquista da autonomia orçamentária, com a destinação vinculada de parte da arrecadação do imposto indireto estadual, o ICMS. Outra iniciativa sua, altamente controversa à época, foi a introdução da avaliação dos professores, objeto de grandes debates, hoje corriqueira e responsável, na verdade, pelo enorme salto alcançado na produção científica e tecnológica da USP.
No conjunto, os ensaios históricos dos sete autores, cobrindo praticamente toda a história educacional brasileira até 1989, bem como os depoimentos tomados das três dezenas de personalidades, sob a coordenação de Shozo Motoyama, e que alcançam os nossos dias, constituem o mais amplo relato que se conhece, no cenário universitário brasileiro, sobre uma instituição exemplar de ensino e pesquisa, verdadeiramente única em sua categoria pela qualidade da produção científica, dentre as melhores do mundo. O livro combina história oral com a reconstituição cuidadosa do processo histórico que explica as razões desse sucesso acadêmico e científico. Ele deveria servir de modelo a diversas outras histórias institucionais das grandes instituições de ensino no Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 novembro 2006

Para a historiografia das ciencias no Brasil - Shozo Motoyama

Da extração de pau-brasil ao sequenciamento do genoma:
A lenta emergência de uma história das ciências e das tecnologias no Brasil

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

Quando se fizer a historiografia da história das ciências e das técnicas no Brasil, o nome de Shozo Motoyama certamente figurará em primeiro plano. Ele está presente, desde muitos anos e de forma muito ativa, em vários empreendimentos recapitulativos de nosso lento (e incerto) caminhar no aprendizado das técnicas e dos saberes com características especificamente nacionais. Hoje esse itinerário é menos lento e errático do que ele foi nos primeiros quatro séculos de nossa existência enquanto nação, ou nos quase dois séculos como Estado independente, e por isso mesmo passa a contar com uma literatura relativamente satisfatória, mesmo se não abundante, em face do vasto campo a ser coberto pelos historiadores.
A reconstituição de nosso aprendizado nessas áreas de pesquisa científica e o de sua aplicação ao mundo mais concreto da produção está sendo feita com competência invulgar por Shozo Motoyama em diversos livros. Dentre os mais recentes, dois merecem uma avaliação mais detalhada: 50 Anos do CNPq contados pelos seus presidentes (São Paulo: Fapesp, 2002, 717 p.) e Prelúdio para uma História: Ciência e Tecnologia no Brasil (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, 518 p.), ambos contando com o auxílio de colaboradores. Antes, contudo, de adentrar o conteúdo desses dois volumes, vale mencionar algumas obras mais antigas, paralelas ou complementares, que vêm contribuindo para o crescimento da bibliografia nesse campo especializado do conhecimento científico, que é a história da própria ciência brasileira e de suas aplicações práticas no mundo da produção.
O primeiro historiador das ciências no Brasil digno desse nome é, provavelmente, o educador Fernando de Azevedo, egresso do ambiente “transformista” dos anos vinte e trinta do século passado, autor principal do Manifesto dos pioneiros por uma nova educação (1932) e que já tinha elaborado, como peça maior desse desejo de mudança nas condições sociais do saber no Brasil, um grandioso estudo sobre a cultura (A cultura brasileira, 3 vols., Companhia Editora Nacional, 1943). Como resultado de seu trabalho em prol da elevação dos padrões de produção e disseminação das pesquisas científicas, emergiu o livro por ele coordenado As Ciências no Brasil, em dois volumes, publicado originalmente em 1955 (pela Melhoramentos, de São Paulo), com segunda edição em 1994 (pela Editora da UFRJ). A concepção e a organização dessa obra, dividida pelos distintos ramos das ciências praticadas no Brasil, estabeleceram um modelo que mais tarde seria seguido por Motoyama e colaboradores.
Entre 1979 e 1981, justamente, Motoyama coordenou, com o professor Mário Guimarães Ferri, do Instituto de Biociências da USP, a publicação dos três volumes da História das Ciências no Brasil (São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, Editora da USP e CNPq). Pela riqueza e abrangência do conteúdo (não estritamente das chamadas ciências duras, mas igualmente as humanas), assim como pela excelência, em seus temas, dos colaboradores convidados, cabe o registro dos capítulos e seus autores, uma vez que essa cobertura merece ser melhor divulgada aos potenciais interessados na reconstituição do desenvolvimento da cada uma das áreas contempladas nos três volumes.
O primeiro volume de História das Ciências no Brasil (São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, Editora da USP, 1979, 390 p.), apresenta os seguintes capítulos: 1. Trajetória da Filosofia no Brasil (Antonio Paim, Universidade Gama Filho); 2. Ciências Matemáticas (Chaim S. Hönig e Elza F. Gomide, Instituto de Matemática e Estatística, USP); 3. A Física no Brasil (Shozo Motoyama, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP); 4. Evolução da Química no Brasil (Simão Mathias, Instituto de Química, USP); 5. A Bioquímica no Brasil (J. Leal Prado, Instituto de Química da USP); 6. Alguns Aspectos da Evolução da Fisiologia no Brasil (José Ribeiro do Valle, Escola Paulista de Medicina); 7. A Farmacologia no Brasil (Escola Paulista de Medicina); 8. A Medicina no Brasil (Lycurgo de Castro Santos Filho, Faculdade de Medicina, Unicamp); 9. Genética Vegetal (Ernesto Paterniani, Dep. de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, USP); 10. Estudo sobre a Evolução Biológica no Brasil (Francisco M. Salzano, Instituto de Biociências, UFRGS); 11. A História no Brasil (Francisco Iglésias, Faculdade de Ciências Econômicas, UFMG); 12. Geografia Humana (Pasquale Petrone, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP); 13. A Tecnologia no Brasil (Milton Vargas, Escola Politécnica, USP).
O segundo volume de História das Ciências no Brasil (São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, Editora da USP, CNPq, 1979-1980, 468 p.), apresenta, por sua vez, os seguintes trabalhos: 1. Microbiologia (J. Reis, Instituto Biológico de São Paulo); 2. História da Botânica no Brasil no Brasil (Mário Guimarães Ferri, Instituto de Biociências, USP); 3. A Zoologia no Brasil (Walter Narchi, Dep. de Zoologia do Instituto de Biociências, USP); 4. Geociências (Aziz Nacib Ab’Saber, Instituto de Geografia, USP; Antônio Christofeletti, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Unesp); 5. A Etnologia no Brasil (Egon Schaden, Escola de Comunicações e Artes, USP); 6. A Genética Humana no Brasil (Bernardo Beiguelman, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp); 7. História da Ecologia no Brasil (Mário Guimarães Ferri, Instituto de Biociências, USP); 8. Institutos de Pesquisa Científica no Brasil (Maria Amélia Mascarenhas Dantes, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP); 9. O Desenvolvimento da História da Ciência no Brasil (João Carlos V. Garcia, Escola Brasileira de Administração Pública, Fundação Getúlio Vargas; José Carlos de Oliveira, Escola de Engenharia, UFRJ; Shozo Motoyama, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP); 10. A Astronomia no Brasil (Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, Dep. de Astronomia, Observatório Nacional).
O terceiro volume, finalmente, (mesmos editores, 1981, 468 p.), contou com os seguintes trabalhos: 1. A Mineralogia e a Petrologia no Brasil (Rui Ribeiro Franco, Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares); 2. A Pesquisa Paleontológica no Brasil (Josué Camargo Mendes, Instituto de Geociências, UERJ); 3. História da Pedologia no Brasil (Antonio Carlos Moniz, Instituto Agronômico, Campinas); 4. As Ciências Agrícolas no Brasil (Eurípedes Malavolta, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, USP); 5. Contribuição à História da Técnica no Brasil (Ruy Gama, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP); 6. A Sociologia no Brasil (Oracy Nogueira, Faculdade de Economia e Administração, USP); 7. A Psicologia no Brasil (Samuel Pfromm Netto, Instituto de Psicologia, USP); 8. A Educação no Brasil (Lena Castello Branco Ferreira Costa, Instituto de Ciências Humanas e Letras, UFG); 9. A História da Ciência Econômica no Brasil (Dorival Teixeira Vieira, Faculdade de Economia e Administração, USP); 10. A Pesquisa Espacial no Brasil (Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, Dep. de Astronomia, Observatório Nacional); 11. Aspectos da Lógica Matemática no Brasil (Elias Humberto Alves, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp); 12. A Filosofia da Ciência no Brasil (Shozo Motoyama, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP).
Tratou-se, portanto, de um enorme empreendimento, que talvez devesse merecer uma segunda edição, ampliada (em quatro ou mais volumes, com novas áreas do conhecimento e outras técnicas não adequadamente ou suficientemente cobertas nos três primeiros), e possivelmente dotada de iconografia pertinente (fotos, mapas, fac-símiles, documentos) e de uma bibliografia exaustiva (remetendo, aliás, aos diversos bancos de dados setoriais já consolidados nesta nossa era eletrônica e da internet, o que ainda não estava disponível quando concebida esta coleção dirigida por Motoyama e Ferri). Eles advertem, em cada um dos prefácios, que não trabalharam como editores, isto é, não interferiram no trabalho de cada colaborador, mas que agiram como coordenadores, respeitando as características e estilo próprios de cada um dos autores convidados, grande parte deles associada à USP (o que é em grande medida explicado pelo fato de essa universidade abrigar um Centro Interunidades de História da Ciência e da Tecnologia, na qual militam Shozo Motoyama, Milton Vargas e muitos outros). Essa trilogia cobriu, portanto, 35 ramos das ciências, tomadas em seu sentido amplo, com a exceção das ciências jurídicas, ramo que eles mesmo lembram como dotado de grande tradição no Brasil e que mereceria, possivelmente, um volume especialmente dedicado a essa área.
Antes e depois da divulgação dessa primeira e memorável trilogia de história das ciências no Brasil outros estudos e pesquisas com características de síntese cobriram esse campo do ponto de vista da história. Podem ser citados: Nancy Stepan, Beginnings of Brazilian Science: Oswaldo Cruz, medical research and policy, 1890-1920 (New York: Science History Publications, 1975; ed. bras.: Gênese e Evolução da Ciência Brasileira: Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica. Rio de Janeiro: Artenova, 1976); Vanya M. Sant’Anna, Ciência e Sociedade no Brasil (São Paulo: Símbolo, 1978) e Simon Schwartzman, Formação da Comunidade Científica no Brasil (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979; publicado em inglês, em 1991, pela Pennsylvania State University Press, sob o título de A Space for Science: The Development of the Scientific Community in Brazil; republicado pelo MCT, em 2001, sob o título Um Espaço para a Ciência: Formação da Comunidade Científica no Brasil).
No terreno das técnicas, vale mencionar uma outra coletânea dirigida por Shozo Motoyama, Tecnologia e Industrialização no Brasil: uma perspectiva histórica (São Paulo: Edunesp/Ceeteps, 1994), bem como a compilação organizada por Milton Vargas, História da Técnica e da Tecnologia no Brasil (São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, 1994, 414 p.).
Pela importância desta última coletânea, vale a pena transcrever seu índice, uma vez que ele é revelador da extrema riqueza de conteúdo desta coleção, muito bem introduzida pelo seu organizador, Milton Vargas: Parte I – Da Técnica à Engenharia na Colônia e no Império; 1. Técnicas indígenas (Maria Luiza Rodrigues Souza); 2. História da Técnica no Brasil Colonial (Ruy Gama); 3. Sistemas construtivos coloniais (Júlio Roberto Katinsky); 4. Notas sobre a mineração no Brasil Colonial (Júlio Roberto Katinsky); 5. Notas sobre a História da Metalurgia no Brasil, 1500-1850 (Fernando José G. Landgraf, André P. Tshiptschin, Hélio Goldenstein); 6. Engenharia e técnicas de construções ferroviárias e portuárias no Império (Marilda Nagamini); 7. Engenharia Militar (Potiguara Pereira); 8. Eletrotécnica (Aderbal de Arruda Penteado Júnior, José Augusto Dias Júnior); Parte II – A Engenharia da República Velha até o após-guerra; 1. Engenharia Civil na República Velha (Milton Vargas); 2. O início da pesquisa tecnológica no Brasil (Milton Vargas); 3. A Tecnologia na Engenharia Civil (Milton Vargas); 4. Energia elétrica (Aderbal de Arruda Penteado Júnior, José Augusto Dias Júnior); 5. Projetos dominantes de siderurgia e mineração, símbolos e pilares da modernização e progresso, Brasil, 1889-1945 (José Jerônimo Alencar Alves); Parte III – A tecnologia no período após-guerra; 1. Tecnologia militar (Potiguara Pereira); 2. A indústria de armamentos no Brasil (Wagner Costa Ribeiro); 3. Telecomunicações (Gildo Magalhães); 4. Energia e Tecnologia (Gildo Magalhães); 5. Informática no Brasil: Apontamentos para o estudo de sua história (Shozo Motoyama, Paulo Q. Marques); 6. A História da Tecnologia Nuclear Brasileira: Um festival de equívocos  (Shozo Motoyama, Paulo Q. Marques).
A pesquisa histórica sobre as ciências e as tecnologias no Brasil ainda está longe de ter conseguido acumular especialistas globais e pesquisadores setoriais capazes de constituir empreendimentos comparáveis ao da memorável coleção (em cinco volumes) concebida em 1949 e dirigida por Charles Singer (e vários outros), History of Technology (Londres: Oxford University Press, 1954-1958), e do qual resultou o volume de síntese sob a responsabilidade de dois dos seus editores, T. K. Derry e Trevor I. Williams, A Short History of Technology from the earliest times to A.D. 1900 (1960; republicado em 1993: Nova York: Dover Publications). De forma similar, o centro interdisciplinar da USP é ainda um modesto empreendimento, se comparado, por exemplo, ao SHOT, a Society for the History of Technology, formada em 1958 para estimular o estudo do desenvolvimento da tecnologia e de suas relações com a sociedade e a cultura. Essa associação interdisciplinar conecta, aliás, mais de mil instituições em todo o mundo, formada não apenas por historiadores interessados nas técnicas materiais e nos processos tecnológicos e suas relações com as ciências e as mudanças sociais, mas também por curadores de museus de tecnologia, cientistas práticos e engenheiros da ativa, assim como antropólogos, cientistas políticos e economistas.
Esse mesmo espírito anima a equipe coordenada por Shozo Motoyama, que tem oferecido uma contribuição inestimável ao desenvolvimento da pesquisa histórica sobre as ciências no Brasil, começando pela sua própria casa, isto é, pela USP e pela Fapesp. Prevista na Constituição paulista de 1947, a Fapesp conseguiu, finalmente, ser constituída em 1962, graças à iniciativa de um dos representantes da “burguesia ilustrada” de São Paulo, o governador Carvalho Pinto (que também foi ministro da Fazenda em um dos gabinetes parlamentaristas dessa época tumultuada). Um pouco da história exemplar da Fapesp, que serviu de modelo para a criação de muitas outras FAPs estaduais – sobretudo a partir da segunda conferência nacional de ciência e tecnologia, em 2001 –, está contado nos dois volumes coordenados por ele e sua equipe, a saber: Shozo Motoyama (org.), Fapesp: Uma história de política científica e tecnológica, (São Paulo: Fapesp, 1999, 300 p.); Shozo Motoyama, Amélia Império Hamburger e Marilda Nagamini (orgs.), Para uma história da Fapesp: Marcos documentais (São Paulo: Fapesp, 1999, 250 p.).
Mas, a história da pesquisa científica no Brasil é obviamente indissociável da trajetória do CNPq, o antigo Conselho Nacional de Pesquisa, criado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1951, e atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Sua história, seguida através dos mandatos de cada um de seus presidentes nos seus primeiros cinqüenta anos de vida, está apresentada no livro 50 Anos do CNPq contados pelos seus presidentes, editado justamente por Motoyama, auxiliado por uma equipe de pesquisadores, por iniciativa da Fapesp. São vinte presidentes do Conselho, entre 1951 e 2001, que, em um volume de mais de 700 páginas, discorrem sobre sua formação, a carreira profissional, as iniciativas tomadas à frente da instituição, bem como as dificuldades e sucessos nessa trajetória. Motoyama e sua equipe, formada por três pesquisadores do Centro Interunidade da História da Ciência da USP Edson Emanoel Simões, Marilda Nagamini e Renato Teixeira Vargas conseguiram entrevistar 15 dos presidentes, recolhendo centenas de horas de gravação e documentos relativos à gestão dos demais (anais do Conselho, discursos de posse, memorandos de trabalhos, comunicações, entrevistas anteriores e papéis diversos).
Não se trata, contudo, de uma simples “história biográfica” individualizada, isto é, fracionada entre essa vintena de presidentes e suas “reminiscências pessoais”, e sim de um verdadeiro racconto storico sobre a evolução da pesquisa científica e tecnológica no Brasil, no meio século concluído em 2001. O projeto tinha sido concebido vinte anos antes, mas foi preciso esperar que a Fapesp o encampasse para concretizar as pesquisas e entrevistas que levaram à sua elaboração (aliás, surpreendentemente rápida). Na verdade, o livro cobre mais do que o período de existência do CNPq, uma vez que a história remonta à participação do almirante Álvaro Alberto, seu primeiro presidente, na Comissão de Energia Atômica da ONU, em 1946.
O reforço do CNPq e do sistema nacional de pesquisa científica e tecnológica em seu conjunto se deu, essencialmente, durante o regime militar. Em 1967 foi instituída a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), seguida, em 1969, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), destinado a financiar projetos prioritários. Na redemocratização, de modo contraditório, o CNPq e seus programas sofreram constrangimentos, sobretudo em função da erosão inflacionária de seus orçamentos, de disputas burocráticas entre agências públicas e de alguma influência política na escolha dos seus responsáveis. Hoje, o sistema nacional de pesquisa científica está consolidado e conta com mais de doze mil grupos de pesquisas e cerca de 50 mil pesquisadores engajados em número aproximadamente igual de linhas de investigação, nas mais diversas áreas de conhecimento. A plataforma Lattes, criada em 1999 e parte fundamental no processo de conexão dos diversos centros de pesquisa, vem sendo inclusive exportada para outros países. Em 2000, a pesquisa científica estava tão avançada a ponto de o Brasil possuir um projeto de genoma nacional e de participar, em igualdade de condições com os centros mais desenvolvidos, de redes de seqüenciamento de DNA.
Foi, assim, uma longa trajetória de avanços graduais e, na maior parte do tempo, erráticos, desde as primeiras explorações de pau-brasil nas costas brasileiras, passando ainda pelas tentativas iniciais de produção metalúrgica, até as mais modernas técnicas de exploração petrolífera off-shore e de construção aeronáutica. Uma cronologia histórica completa esse volume único na literatura da história oral da ciência tecnologia no Brasil. Muito útil para seguir os passos institucionais da pesquisa científica, e centrada nas atividades do CNPq, a cronologia vai de 1946, quando se coloca na Constituição federal que “o amparo à cultura é dever do Estado”, até 2001, quando se realiza a conferência nacional de ciência tecnologia e inovação e se cria o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), instituído para administrar os fundos setoriais de apoio à ciência e à tecnologia formados nesses anos.
Depois de 700 páginas de CNPq, mais 500 de ciência e tecnologia no Brasil como um todo, neste Prelúdio para uma História. Shozo Motoyama assina, em primeiro lugar, uma longa introdução, “Ciência e Tecnologia no Brasil: Para Onde?” (p. 15-58), na qual desfaz alguns mitos sobre a inconsistência nacional nesses campos e enumera os avanços recentes da ciência, bem como os progressos tecnológicos das últimas décadas. De fato, casos de sucesso não faltam, desde Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, até o seqüenciamento da Xylella fastidiosa, relatada nas páginas da revista americana Science (288, 5467: 800) como um “genome Cinderella story”.
Apesar de apresentar, com modéstia, um dos trabalhos mais completos sobre a ciência e a tecnologia no Brasil, Motoyama diz que “não foi possível fazer um estudo completo e detalhado sobre o tema. Apenas esboçamos uma visão panorâmica do conjunto, ao longo de sua história, realçando, na medida do possível, alguns eventos marcantes do ângulo da relação da pesquisa científica e tecnológica com os outros atores da sociedade brasileira” (p. 57).
O próprio Motoyama assina um longo primeiro capítulo: 1. Período Colonial: o Cruzeiro do Sul na Terra do Pau-brasil (p. 59-117). Depois comparece a professora Marilda Nagamini, responsável por outros dois longos capítulos substantivos, do Império à Velha República, respectivamente: 2. 1808-1889: Ciência e Técnica na Trilha da Liberdade (p. 135-183), e 3. 1889-1930: Ciência e Tecnologia nos Processos de Urbanização e Industrialização (p. 185-231). Motoyama retoma o fio da meada, ao tratar, no capítulo 4, do período desenvolvimentista, de 1930 a 1964 (p. 249-316). Em seguida, a densidade da produção científica e tecnológica acumulada desde então passa a exigir o trabalho de toda uma equipe para sua recapitulação. Trata-se do capítulo 5: 1964-1985: Sob o Signo do Desenvolvimentismo (p. 317-385), sob a responsabilidade de Motoyama, do professor Francisco Assis de Queiroz (da Universidade de Londrina e pesquisador do CHC-USP) e do já conhecido Milton Vargas (professor emérito da Escola Politécnica da USP). Finalmente, o sexto e último capítulo leva a história até nossos dias: 1985-2000: A Nova República (p. 387-452), escrito por Motoyama e por Francisco Assis de Queiroz.
Trata-se de uma longa história de 500 anos, com muitos nomes conhecidos – como Einstein, Mario Schenberg, Maurício Rocha e Silva, Cesar Lattes e Leite Lopes – e outros menos conhecidos, mas que ainda assim deram sua contribuição para a lenta acumulação dos saberes e das técnicas no Brasil. O seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa volta com destaque na última parte do livro, uma vez que ela representa a consagração da pesquisa genética brasileira, em igualdade de condições com os centros reconhecidos de produção de ciência no plano mundial. É uma história de lutas, de sucessos e frustrações, ainda sem algum prêmio Nobel, mas já respeitada e respeitável pela excelência da pesquisa conduzida em laboratórios brasileiros. O fato de a maior parte desses pesquisadores estarem trabalhando em centros universitários, e não em laboratórios de empresas, explica o fato de ser tão lenta e precária a transposição dessas pesquisas para o terreno da tecnologia e dos processos produtivos, mas esse tipo de disfunção tende certamente a ser superado.
Finalmente, como registro de uma dessas histórias de sucesso na combinação da pesquisa de ponta com sua aplicação prática, vale a pena conferir o livro de J. Irineu Cabral, Sol da Manhã: Memória da Embrapa (Brasília: Unesco, 2005, 344 p.). O autor dirigiu importantes centros de pesquisa como o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, o Comitê Interamericano de Desenvolvimento Agrícola e o Departamento de Projetos Agrícolas do BID. O “sol” do título se refere à variedade de milho BRS, criada pela Embrapa em 1998, após um trabalho de catorze anos de pesquisa participativa, envolvendo trezentas comunidades de agricultores, em seis estados brasileiros, com quinze mil famílias de produtores. Numa era em que o agronegócio parece dominar todos os espaços da moderna agricultura de mercado, a Embrapa continua a fazer pesquisas voltadas para as necessidades de todos os setores envolvidos na agricultura capitalista brasileira, inclusive o pequeno produtor em regime familiar. O livro é prefaciado por Luiz Fernando Cirne Lima que, como ministro da agricultura em 1973, em plena revolução verde no mundo, criou a Embrapa, deitando portanto a semente que iria frutificar na mais possante agricultura competitiva em plena zona tropical menos de vinte anos depois.
A Embrapa, hoje, é uma possante rede de pesquisas nos mais diversos campos da atividade agropecuária (inclusive da instrumentação), com mais de quarenta unidades espalhadas em todo o território brasileiro, mandando ainda pesquisadores se aperfeiçoar no exterior, mas basicamente produzindo ela mesma a tecnologia de ponta de que o Brasil necessita, e também fornecendo a outros países em desenvolvimento, em especial na África e na América Latina, técnicas de manejo e pacotes tecnológicos perfeitamente adaptados às condições ecológicas desenvolvidas sob as mesmas latitudes. Como bem salientou o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, em destaque no livro: “Nenhum outro setor da economia brasileira possui um núcleo de produção de ciência e tecnologia equivalente ao fôlego acumulado pela Embrapa. O Brasil tem a mais importante instituição de pesquisa agropecuária dos trópicos. Ela garante ao país a margem de manobra indispensável para fazer da agricultura e do espaço rural uma poderosa turbina de expansão econômica do século XXI”.
E pensar que cinqüenta anos atrás, quando estava surgindo o CNPq, falar do Brasil como “país essencialmente agrícola” representava sinônimo de atraso e de subdesenvolvimento. A agricultura brasileira, nas condições atuais de pesquisa e de desenvolvimento científico e tecnológico e de métodos produtivos já acumulados pela comunidade de trabalhadores de laboratório e de engenheiros de terreno, constitui, provavelmente, uma das chaves essenciais para nossa inserção competitiva nos circuitos da interdependência econômica contemporânea. Os progressos científicos e tecnológicos são reais: resta agora disseminá-los ao conjunto da sociedade.


Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciência sociais e mestre em planejamento econômico, e diplomata de carreira.
Brasília, 9 de outubro de 2005