Da extração de
pau-brasil ao sequenciamento do genoma:
A lenta emergência de uma história das ciências e das tecnologias no
Brasil
Paulo Roberto de
Almeida
(www.pralmeida.org)
Quando se fizer a historiografia da história das ciências e das técnicas
no Brasil, o nome de Shozo Motoyama certamente figurará em primeiro plano. Ele
está presente, desde muitos anos e de forma muito ativa, em vários
empreendimentos recapitulativos de nosso lento (e incerto) caminhar no
aprendizado das técnicas e dos saberes com características especificamente
nacionais. Hoje esse itinerário é menos lento e errático do que ele foi nos
primeiros quatro séculos de nossa existência enquanto nação, ou nos quase dois
séculos como Estado independente, e por isso mesmo passa a contar com uma
literatura relativamente satisfatória, mesmo se não abundante, em face do vasto
campo a ser coberto pelos historiadores.
A reconstituição de nosso aprendizado nessas áreas de pesquisa científica
e o de sua aplicação ao mundo mais concreto da produção está sendo feita com
competência invulgar por Shozo Motoyama em diversos livros. Dentre os mais
recentes, dois merecem uma avaliação mais detalhada: 50 Anos do CNPq contados pelos seus presidentes (São Paulo: Fapesp,
2002, 717 p.) e Prelúdio para uma História:
Ciência e Tecnologia no Brasil (São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2004, 518 p.), ambos contando com o auxílio de colaboradores. Antes,
contudo, de adentrar o conteúdo desses dois volumes, vale mencionar algumas
obras mais antigas, paralelas ou complementares, que vêm contribuindo para o
crescimento da bibliografia nesse campo especializado do conhecimento
científico, que é a história da própria ciência brasileira e de suas aplicações
práticas no mundo da produção.
O primeiro historiador das ciências no Brasil digno desse nome é,
provavelmente, o educador Fernando de Azevedo, egresso do ambiente
“transformista” dos anos vinte e trinta do século passado, autor principal do
Manifesto dos pioneiros por uma nova educação (1932) e que já tinha elaborado,
como peça maior desse desejo de mudança nas condições sociais do saber no
Brasil, um grandioso estudo sobre a cultura (A cultura brasileira, 3 vols., Companhia Editora Nacional, 1943).
Como resultado de seu trabalho em prol da elevação dos padrões de produção e
disseminação das pesquisas científicas, emergiu o livro por ele coordenado As
Ciências no Brasil, em dois volumes, publicado originalmente em 1955 (pela
Melhoramentos, de São Paulo), com segunda edição em 1994 (pela Editora da
UFRJ). A concepção e a organização dessa obra, dividida pelos distintos ramos
das ciências praticadas no Brasil, estabeleceram um modelo que mais tarde seria
seguido por Motoyama e colaboradores.
Entre 1979 e 1981, justamente, Motoyama coordenou, com o professor Mário
Guimarães Ferri, do Instituto de Biociências da USP, a publicação dos três
volumes da História das Ciências no
Brasil (São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, Editora da USP e
CNPq). Pela riqueza e abrangência do conteúdo (não estritamente das chamadas
ciências duras, mas igualmente as humanas), assim como pela excelência, em seus
temas, dos colaboradores convidados, cabe o registro dos capítulos e seus
autores, uma vez que essa cobertura merece ser melhor divulgada aos potenciais
interessados na reconstituição do desenvolvimento da cada uma das áreas
contempladas nos três volumes.
O primeiro volume de História das
Ciências no Brasil (São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, Editora
da USP, 1979, 390 p.), apresenta os seguintes capítulos: 1. Trajetória da
Filosofia no Brasil (Antonio Paim, Universidade Gama Filho); 2. Ciências
Matemáticas (Chaim S. Hönig e Elza F. Gomide, Instituto de Matemática e
Estatística, USP); 3. A Física no Brasil (Shozo Motoyama, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP); 4. Evolução da Química no Brasil
(Simão Mathias, Instituto de Química, USP); 5. A Bioquímica no Brasil (J. Leal
Prado, Instituto de Química da USP); 6. Alguns Aspectos da Evolução da
Fisiologia no Brasil (José Ribeiro do Valle, Escola Paulista de Medicina); 7. A
Farmacologia no Brasil (Escola Paulista de Medicina); 8. A Medicina no Brasil
(Lycurgo de Castro Santos Filho, Faculdade de Medicina, Unicamp); 9. Genética
Vegetal (Ernesto Paterniani, Dep. de Genética da Escola Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz, USP); 10. Estudo sobre a Evolução Biológica no Brasil
(Francisco M. Salzano, Instituto de Biociências, UFRGS); 11. A História no
Brasil (Francisco Iglésias, Faculdade de Ciências Econômicas, UFMG); 12.
Geografia Humana (Pasquale Petrone, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, USP); 13. A Tecnologia no Brasil (Milton Vargas, Escola Politécnica,
USP).
O segundo volume de História das
Ciências no Brasil (São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, Editora
da USP, CNPq, 1979-1980, 468 p.), apresenta, por sua vez, os seguintes
trabalhos: 1. Microbiologia (J. Reis, Instituto Biológico de São Paulo); 2.
História da Botânica no Brasil no Brasil (Mário Guimarães Ferri, Instituto de
Biociências, USP); 3. A Zoologia no Brasil (Walter Narchi, Dep. de Zoologia do
Instituto de Biociências, USP); 4. Geociências (Aziz Nacib Ab’Saber, Instituto
de Geografia, USP; Antônio Christofeletti, Instituto de Geociências e Ciências
Exatas, Unesp); 5. A Etnologia no Brasil (Egon Schaden, Escola de Comunicações
e Artes, USP); 6. A Genética Humana no Brasil (Bernardo Beiguelman, Faculdade
de Ciências Médicas, Unicamp); 7. História da Ecologia no Brasil (Mário
Guimarães Ferri, Instituto de Biociências, USP); 8. Institutos de Pesquisa
Científica no Brasil (Maria Amélia Mascarenhas Dantes, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, USP); 9. O Desenvolvimento da História da Ciência no
Brasil (João Carlos V. Garcia, Escola Brasileira de Administração Pública,
Fundação Getúlio Vargas; José Carlos de Oliveira, Escola de Engenharia, UFRJ;
Shozo Motoyama, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP); 10. A
Astronomia no Brasil (Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, Dep. de Astronomia,
Observatório Nacional).
O terceiro volume, finalmente, (mesmos editores, 1981, 468 p.), contou
com os seguintes trabalhos: 1. A Mineralogia e a Petrologia no Brasil (Rui
Ribeiro Franco, Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares); 2. A Pesquisa
Paleontológica no Brasil (Josué Camargo Mendes, Instituto de Geociências,
UERJ); 3. História da Pedologia no Brasil (Antonio Carlos Moniz, Instituto
Agronômico, Campinas); 4. As Ciências Agrícolas no Brasil (Eurípedes Malavolta,
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, USP); 5. Contribuição à
História da Técnica no Brasil (Ruy Gama, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
USP); 6. A Sociologia no Brasil (Oracy Nogueira, Faculdade de Economia e
Administração, USP); 7. A Psicologia no Brasil (Samuel Pfromm Netto, Instituto
de Psicologia, USP); 8. A Educação no Brasil (Lena Castello Branco Ferreira
Costa, Instituto de Ciências Humanas e Letras, UFG); 9. A História da Ciência
Econômica no Brasil (Dorival Teixeira Vieira, Faculdade de Economia e
Administração, USP); 10. A Pesquisa Espacial no Brasil (Ronaldo Rogério de Freitas
Mourão, Dep. de Astronomia, Observatório Nacional); 11. Aspectos da Lógica
Matemática no Brasil (Elias Humberto Alves, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Unicamp); 12. A Filosofia da Ciência no Brasil (Shozo Motoyama,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP).
Tratou-se, portanto, de um enorme empreendimento, que talvez devesse
merecer uma segunda edição, ampliada (em quatro ou mais volumes, com novas
áreas do conhecimento e outras técnicas não adequadamente ou suficientemente
cobertas nos três primeiros), e possivelmente dotada de iconografia pertinente
(fotos, mapas, fac-símiles, documentos) e de uma bibliografia exaustiva
(remetendo, aliás, aos diversos bancos de dados setoriais já consolidados nesta
nossa era eletrônica e da internet, o que ainda não estava disponível quando
concebida esta coleção dirigida por Motoyama e Ferri). Eles advertem, em cada
um dos prefácios, que não trabalharam como editores, isto é, não interferiram
no trabalho de cada colaborador, mas que agiram como coordenadores, respeitando
as características e estilo próprios de cada um dos autores convidados, grande parte
deles associada à USP (o que é em grande medida explicado pelo fato de essa
universidade abrigar um Centro Interunidades de História da Ciência e da
Tecnologia, na qual militam Shozo Motoyama, Milton Vargas e muitos outros).
Essa trilogia cobriu, portanto, 35 ramos das ciências, tomadas em seu sentido
amplo, com a exceção das ciências jurídicas, ramo que eles mesmo lembram como
dotado de grande tradição no Brasil e que mereceria, possivelmente, um volume
especialmente dedicado a essa área.
Antes e depois da divulgação dessa primeira e memorável trilogia de
história das ciências no Brasil outros estudos e pesquisas com características
de síntese cobriram esse campo do ponto de vista da história. Podem ser
citados: Nancy Stepan, Beginnings of
Brazilian Science: Oswaldo Cruz, medical research and policy, 1890-1920
(New York: Science History Publications, 1975; ed. bras.: Gênese e Evolução da Ciência Brasileira: Oswaldo Cruz e a política de
investigação científica e médica. Rio de Janeiro: Artenova, 1976); Vanya M.
Sant’Anna, Ciência e Sociedade no Brasil
(São Paulo: Símbolo, 1978) e Simon Schwartzman, Formação da Comunidade Científica no Brasil (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979; publicado em inglês, em
1991, pela Pennsylvania State University
Press, sob o título de A Space for
Science: The Development of the Scientific Community in Brazil; republicado pelo MCT, em 2001, sob o título Um Espaço para a Ciência: Formação
da Comunidade Científica no Brasil).
No terreno das técnicas, vale mencionar uma outra
coletânea dirigida por Shozo Motoyama, Tecnologia
e Industrialização no Brasil: uma perspectiva histórica (São Paulo:
Edunesp/Ceeteps, 1994), bem como a compilação organizada por Milton Vargas, História da Técnica e da Tecnologia no
Brasil (São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, Centro
Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, 1994, 414 p.).
Pela importância desta última coletânea, vale a
pena transcrever seu índice, uma vez que ele é revelador da extrema riqueza de
conteúdo desta coleção, muito bem introduzida pelo seu organizador, Milton
Vargas: Parte I – Da Técnica à Engenharia na Colônia e no Império; 1. Técnicas
indígenas (Maria Luiza Rodrigues Souza); 2. História da Técnica no Brasil
Colonial (Ruy Gama); 3. Sistemas construtivos coloniais (Júlio Roberto
Katinsky); 4. Notas sobre a mineração no Brasil Colonial (Júlio Roberto
Katinsky); 5. Notas sobre a História da Metalurgia no Brasil, 1500-1850
(Fernando José G. Landgraf, André P. Tshiptschin, Hélio Goldenstein); 6.
Engenharia e técnicas de construções ferroviárias e portuárias no Império
(Marilda Nagamini); 7. Engenharia Militar (Potiguara Pereira); 8. Eletrotécnica
(Aderbal de Arruda Penteado Júnior, José Augusto Dias Júnior); Parte II – A
Engenharia da República Velha até o após-guerra; 1. Engenharia Civil na
República Velha (Milton Vargas); 2. O início da pesquisa tecnológica no Brasil
(Milton Vargas); 3. A Tecnologia na Engenharia Civil (Milton Vargas); 4.
Energia elétrica (Aderbal de Arruda Penteado Júnior, José Augusto Dias Júnior);
5. Projetos dominantes de siderurgia e mineração, símbolos e pilares da
modernização e progresso, Brasil, 1889-1945 (José Jerônimo Alencar Alves);
Parte III – A tecnologia no período após-guerra; 1. Tecnologia militar
(Potiguara Pereira); 2. A indústria de armamentos no Brasil (Wagner Costa
Ribeiro); 3. Telecomunicações (Gildo Magalhães); 4. Energia e Tecnologia (Gildo
Magalhães); 5. Informática no Brasil: Apontamentos para o estudo de sua
história (Shozo Motoyama, Paulo Q. Marques); 6. A História da Tecnologia
Nuclear Brasileira: Um festival de equívocos
(Shozo Motoyama, Paulo Q. Marques).
A pesquisa histórica sobre as ciências e as tecnologias
no Brasil ainda está longe de ter conseguido acumular especialistas globais e
pesquisadores setoriais capazes de constituir empreendimentos comparáveis ao da
memorável coleção (em cinco volumes) concebida em 1949 e dirigida por Charles Singer (e vários
outros), History of Technology
(Londres: Oxford University Press, 1954-1958), e do qual resultou o volume de
síntese sob a responsabilidade de dois dos seus editores, T. K. Derry e Trevor
I. Williams, A Short History of
Technology from the earliest times to A.D. 1900 (1960; republicado em 1993:
Nova York: Dover Publications). De forma similar, o centro interdisciplinar da
USP é ainda um modesto empreendimento, se comparado, por exemplo, ao SHOT, a Society for the History of
Technology, formada em 1958 para estimular o estudo do desenvolvimento da
tecnologia e de suas relações com a sociedade e a cultura. Essa associação
interdisciplinar conecta, aliás, mais de mil instituições em todo o mundo,
formada não apenas por historiadores interessados nas técnicas materiais e nos
processos tecnológicos e suas relações com as ciências e as mudanças sociais,
mas também por curadores de museus de tecnologia, cientistas práticos e
engenheiros da ativa, assim como antropólogos, cientistas políticos e
economistas.
Esse mesmo
espírito anima a equipe coordenada por Shozo Motoyama, que tem oferecido uma
contribuição inestimável ao desenvolvimento da pesquisa histórica sobre as
ciências no Brasil, começando pela sua própria casa, isto é, pela USP e pela
Fapesp. Prevista na Constituição paulista de 1947, a Fapesp conseguiu,
finalmente, ser constituída em 1962, graças à iniciativa de um dos
representantes da “burguesia ilustrada” de São Paulo, o governador Carvalho
Pinto (que também foi ministro da Fazenda em um dos gabinetes parlamentaristas
dessa época tumultuada). Um pouco da história exemplar da Fapesp, que serviu de
modelo para a criação de muitas outras FAPs estaduais – sobretudo a partir da
segunda conferência nacional de ciência e tecnologia, em 2001 –, está contado
nos dois volumes coordenados por ele e sua equipe, a saber: Shozo Motoyama (org.), Fapesp: Uma
história de política científica e tecnológica, (São Paulo: Fapesp, 1999,
300 p.); Shozo Motoyama, Amélia
Império Hamburger e Marilda Nagamini (orgs.), Para uma história da Fapesp: Marcos documentais (São Paulo: Fapesp, 1999, 250 p.).
Mas, a história
da pesquisa científica no Brasil é obviamente indissociável da trajetória do
CNPq, o antigo Conselho Nacional de Pesquisa, criado pelo presidente Eurico
Gaspar Dutra, em 1951, e atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico. Sua história, seguida através dos mandatos de cada um de seus
presidentes nos seus primeiros cinqüenta anos de vida, está apresentada no
livro 50 Anos do CNPq contados pelos seus presidentes, editado
justamente por Motoyama, auxiliado por uma equipe de pesquisadores, por
iniciativa da Fapesp. São vinte presidentes do Conselho, entre 1951 e 2001,
que, em um volume de mais de 700 páginas, discorrem sobre sua formação, a
carreira profissional, as iniciativas tomadas à frente da instituição, bem como
as dificuldades e sucessos nessa trajetória. Motoyama e sua equipe, formada por
três pesquisadores do Centro Interunidade da História da Ciência da USP – Edson Emanoel
Simões, Marilda Nagamini e Renato Teixeira Vargas – conseguiram
entrevistar 15 dos presidentes, recolhendo centenas de horas de gravação e
documentos relativos à gestão dos demais (anais do Conselho, discursos de
posse, memorandos de trabalhos, comunicações, entrevistas anteriores e papéis
diversos).
Não
se trata, contudo, de uma simples “história biográfica” individualizada, isto
é, fracionada entre essa vintena de presidentes e suas “reminiscências
pessoais”, e sim de um verdadeiro racconto
storico sobre a evolução da pesquisa científica e tecnológica no Brasil, no
meio século concluído em 2001. O projeto tinha sido concebido vinte anos antes,
mas foi preciso esperar que a Fapesp o encampasse para concretizar as pesquisas
e entrevistas que levaram à sua elaboração (aliás, surpreendentemente rápida).
Na verdade, o livro cobre mais do que o período de existência do CNPq, uma vez
que a história remonta à participação do almirante Álvaro Alberto, seu primeiro
presidente, na Comissão de Energia Atômica da ONU, em 1946.
O
reforço do CNPq e do sistema nacional de pesquisa científica e tecnológica em
seu conjunto se deu, essencialmente, durante o regime militar. Em 1967 foi
instituída a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), seguida, em 1969, pelo
Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), destinado a
financiar projetos prioritários. Na redemocratização, de modo contraditório, o
CNPq e seus programas sofreram constrangimentos, sobretudo em função da erosão
inflacionária de seus orçamentos, de disputas burocráticas entre agências
públicas e de alguma influência política na escolha dos seus responsáveis.
Hoje, o sistema nacional de pesquisa científica está consolidado e conta com
mais de doze mil grupos de pesquisas e cerca de 50 mil pesquisadores engajados
em número aproximadamente igual de linhas de investigação, nas mais diversas
áreas de conhecimento. A plataforma Lattes, criada em 1999 e parte fundamental
no processo de conexão dos diversos centros de pesquisa, vem sendo inclusive
exportada para outros países. Em 2000, a pesquisa científica estava tão
avançada a ponto de o Brasil possuir um projeto de genoma nacional e de
participar, em igualdade de condições com os centros mais desenvolvidos, de
redes de seqüenciamento de DNA.
Foi,
assim, uma longa trajetória de avanços graduais e, na maior parte do tempo,
erráticos, desde as primeiras explorações de pau-brasil nas costas brasileiras,
passando ainda pelas tentativas iniciais de produção metalúrgica, até as mais
modernas técnicas de exploração petrolífera off-shore
e de construção aeronáutica. Uma cronologia histórica completa esse volume
único na literatura da história oral da ciência tecnologia no Brasil. Muito
útil para seguir os passos institucionais da pesquisa científica, e centrada nas
atividades do CNPq, a cronologia vai de 1946, quando se coloca na Constituição
federal que “o amparo à cultura é dever do Estado”, até 2001, quando se realiza
a conferência nacional de ciência tecnologia e inovação e se cria o Centro de
Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), instituído para administrar os fundos
setoriais de apoio à ciência e à tecnologia formados nesses anos.
Depois
de 700 páginas de CNPq, mais 500 de ciência e tecnologia no Brasil como um
todo, neste Prelúdio para uma História.
Shozo Motoyama assina, em primeiro lugar, uma longa introdução, “Ciência e
Tecnologia no Brasil: Para Onde?” (p. 15-58), na qual desfaz alguns mitos sobre
a inconsistência nacional nesses campos e enumera os avanços recentes da
ciência, bem como os progressos tecnológicos das últimas décadas. De fato,
casos de sucesso não faltam, desde Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, até o
seqüenciamento da Xylella fastidiosa,
relatada nas páginas da revista americana Science
(288, 5467: 800) como um “genome Cinderella story”.
Apesar de apresentar, com modéstia, um dos
trabalhos mais completos sobre a ciência e a tecnologia no Brasil, Motoyama diz que “não
foi possível fazer um estudo completo e detalhado sobre o tema. Apenas
esboçamos uma visão panorâmica do conjunto, ao longo de sua história, realçando,
na medida do possível, alguns eventos marcantes do ângulo da relação da
pesquisa científica e tecnológica com os outros atores da sociedade brasileira”
(p. 57).
O
próprio Motoyama assina um longo primeiro capítulo: 1. Período Colonial: o
Cruzeiro do Sul na Terra do Pau-brasil (p. 59-117). Depois comparece a
professora Marilda Nagamini, responsável por outros dois longos capítulos
substantivos, do Império à Velha República, respectivamente: 2. 1808-1889:
Ciência e Técnica na Trilha da Liberdade (p. 135-183), e 3. 1889-1930: Ciência
e Tecnologia nos Processos de Urbanização e Industrialização (p. 185-231).
Motoyama retoma o fio da meada, ao tratar, no capítulo 4, do período
desenvolvimentista, de 1930 a 1964 (p. 249-316). Em seguida, a densidade da
produção científica e tecnológica acumulada desde então passa a exigir o
trabalho de toda uma equipe para sua recapitulação. Trata-se do capítulo 5:
1964-1985: Sob o Signo do Desenvolvimentismo (p. 317-385), sob a
responsabilidade de Motoyama, do professor Francisco Assis de Queiroz (da
Universidade de Londrina e pesquisador do CHC-USP) e do já conhecido Milton
Vargas (professor emérito da Escola Politécnica da USP). Finalmente, o sexto e
último capítulo leva a história até nossos dias: 1985-2000: A Nova República
(p. 387-452), escrito por Motoyama e por Francisco Assis de Queiroz.
Trata-se
de uma longa história de 500 anos, com muitos nomes conhecidos – como Einstein,
Mario Schenberg, Maurício Rocha e Silva, Cesar Lattes e Leite Lopes – e outros menos
conhecidos, mas que ainda assim deram sua contribuição para a lenta acumulação
dos saberes e das técnicas no Brasil. O seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa volta com destaque na
última parte do livro, uma vez que ela representa a consagração da pesquisa
genética brasileira, em igualdade de condições com os centros reconhecidos de
produção de ciência no plano mundial. É uma história de lutas, de sucessos e
frustrações, ainda sem algum prêmio Nobel, mas já respeitada e respeitável pela
excelência da pesquisa conduzida em laboratórios brasileiros. O fato de a maior
parte desses pesquisadores estarem trabalhando em centros universitários, e não
em laboratórios de empresas, explica o fato de ser tão lenta e precária a
transposição dessas pesquisas para o terreno da tecnologia e dos processos
produtivos, mas esse tipo de disfunção tende certamente a ser superado.
Finalmente, como
registro de uma dessas histórias de sucesso na combinação da pesquisa de ponta
com sua aplicação prática, vale a pena conferir o livro de J. Irineu Cabral, Sol da Manhã: Memória da Embrapa
(Brasília: Unesco, 2005, 344 p.). O autor dirigiu importantes centros de
pesquisa como o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, o
Comitê Interamericano de Desenvolvimento Agrícola e o Departamento de Projetos
Agrícolas do BID. O “sol” do título se refere à variedade de milho BRS, criada
pela Embrapa em 1998, após um trabalho de catorze anos de pesquisa
participativa, envolvendo trezentas comunidades de agricultores, em seis estados
brasileiros, com quinze mil famílias de produtores. Numa era em que o
agronegócio parece dominar todos os espaços da moderna agricultura de mercado,
a Embrapa continua a fazer pesquisas voltadas para as necessidades de todos os
setores envolvidos na agricultura capitalista brasileira, inclusive o pequeno
produtor em regime familiar. O livro é prefaciado por Luiz Fernando Cirne Lima
que, como ministro da agricultura em 1973, em plena revolução verde no mundo,
criou a Embrapa, deitando portanto a semente que iria frutificar na mais
possante agricultura competitiva em plena zona tropical menos de vinte anos
depois.
A Embrapa, hoje,
é uma possante rede de pesquisas nos mais diversos campos da atividade
agropecuária (inclusive da instrumentação), com mais de quarenta unidades
espalhadas em todo o território brasileiro, mandando ainda pesquisadores se
aperfeiçoar no exterior, mas basicamente produzindo ela mesma a tecnologia de
ponta de que o Brasil necessita, e também fornecendo a outros países em
desenvolvimento, em especial na África e na América Latina, técnicas de manejo
e pacotes tecnológicos perfeitamente adaptados às condições ecológicas
desenvolvidas sob as mesmas latitudes. Como bem salientou o ministro da
Agricultura, Roberto Rodrigues, em destaque no livro: “Nenhum outro setor da
economia brasileira possui um núcleo de produção de ciência e tecnologia
equivalente ao fôlego acumulado pela Embrapa. O Brasil tem a mais importante
instituição de pesquisa agropecuária dos trópicos. Ela garante ao país a margem
de manobra indispensável para fazer da agricultura e do espaço rural uma
poderosa turbina de expansão econômica do século XXI”.
E pensar que cinqüenta
anos atrás, quando estava surgindo o CNPq, falar do Brasil como “país
essencialmente agrícola” representava sinônimo de atraso e de
subdesenvolvimento. A agricultura brasileira, nas condições atuais de pesquisa
e de desenvolvimento científico e tecnológico e de métodos produtivos já
acumulados pela comunidade de trabalhadores de laboratório e de engenheiros de
terreno, constitui, provavelmente, uma das chaves essenciais para nossa
inserção competitiva nos circuitos da interdependência econômica contemporânea.
Os progressos científicos e tecnológicos são reais: resta agora disseminá-los ao
conjunto da sociedade.
Paulo Roberto de
Almeida é doutor em ciência sociais e mestre em planejamento econômico, e
diplomata de carreira.
Brasília, 9 de outubro
de 2005