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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

O problema da dívida pública - Luque, Silber, Luna e Zagha (Valor)

O problema da dívida pública

Estratégia econômica do governo não é clara, o que afeta também as taxas longas. Por Luque, Silber, Luna e Zagha.

Valor, 11/01/2021

O relatório anual do FMI sobre a economia brasileira surpreendeu ao apoiar as políticas expansionistas do governo brasileiro, equivalentes a 18% do PIB. Resposta à pandemia, elas permitiram uma contração do PIB em2020 menor do que prevista e foram importantes na redução na incidência da pobreza. Mesmo com aumento da dívida pública em relação ao PIB em 2020, o FMI recomenda, se necessário, manter políticas expansionistas em 2021, incluindo reduções adicionais da taxa de juros.

O reconhecimento pelo FMI de que políticas expansionistas podem ter um papel positivo é o resultado de um aprendizado de 20 anos. Em reação à sua atuação contraproducente na crise Asiática em 1997, da Rússia em 1998 e Argentina em 2001, o FMI iniciou avaliações independentes das análises feitas pelos economistas do FMI e das convicções que os orientavam, nem sempre com resultados concretos. A Grécia em 2014 e a Argentina em 2016-2019 são exemplos da distância entre questionamentos e prescrições do FMI.

O relatório sobre o Brasil reduziu essa distância. Nem tudo agrada. O relatório ignora o papel da depreciação do Real na recuperação da indústria, superestima os benefícios da conta financeira aberta e recomenda flexibilidade da taxa de câmbio. Atribui a depreciação do Real apenas à incerteza criada pelo aumento da dívida pública, sem levar em conta a redução do diferencial entre juros domésticos e internacionais e consequente redução das possibilidades de arbitragem. Também não discute limitações do teto de gastos para estabilizar a dívida. 

Ainda assim, a contribuição do relatório é importante ao desmitificar o tamanho da dívida pública, ao recomendar possíveis reduções adicionais da taxa de juros e ao ressaltar que é improvável queem2021 haja o retorno à normalidade. O desemprego continua crescendo e uma parte importante da população está fora da força de trabalho. As necessidades de auxílio emergencial e de apoio às empresas vão continuarem2021.

Esse grau de realismo não afetou discussões internas. Muitos de nossos melhores economistas e analistas adotam uma narrativa independente da realidade, ao afirmar que o tamanho da dívida pública é a chave para atingir o crescimento. O mecanismo não é explicitado, mas deve ser algo assim: o aumento da dívida vai criar dúvidas sobre a capacidade do governo de honrá-la, logo os compradores de títulos públicos irão exigir taxas de juros mais altas. Juros mais altos reduzirão o investimento e o consumo privado e, portanto, o crescimento no curto e no longo prazo. Reforçando esse mecanismo, dúvidas sobre a capacidade do governo de honrar sua dívida farão com que o capital financeiro saia do país pondo pressão sobre o Real e inflação, o que irá também exigir aumentos da taxa de juros. Prova desses mecanismos estarem em jogo são a (1) depreciação do Real, (2) o aumento da inflação, (3) a curva de rendimentos mais empinada, e (4) o encurtamento do perfil da dívida pública. O controle do tamanho da dívida reverteria esses mecanismos.

A realidade é provavelmente outra. Respeito a (1), a taxa de juros “mais alta do planeta” dos anos 2000-2018 criou oportunidades de arbitragem para o capital financeiro doméstico e internacional. A taxa mais baixa reduziu estas oportunidades e depreciou o Real. Consequentemente, aumentou o preço de alimentos e dos bens transacionáveis internacionalmente, o que se repercutiu no IPCA. O mercado acredita que esse choque é transitório: as expectativas de inflação continuam ancoradas e os valores esperados em 2021 e além não subiram.

Não há uma estratégia para controlar o teto dos gastos, nem para um crescimento sustentável.

Com relação à (3), a incerteza da política monetária futura tem um papel. Apesar de taxas de juros internacionais historicamente baixas e expectativas de que assim continuarão por vários anos, o BCB não se comprometeu a uma política de taxas de juros baixas. O Relatório Focus demeados de dezembro mostra que a expectativa do mercado é que a SELIC voltara a níveis historicamente altos já subindo em 2021 e 4.5% em 2022 e 6% em 2023. Uma consequência é um Real se apreciando a partir de 2021. A expectativa de que o BCB vai retornar a uma política “dura” faz com taxas de juros a 2-4-6-10 anos subam e empinem a curva de rendimentos. Finalmente, a estratégia econômica do governo não é clara o que afeta também afeta taxas longas.

É racional e não é um problema o BCB ter aumentado a proporção de dívida a curto prazo (4). Como nos lembrou numa coluna recente um antigo diretor do BCB, a denominação da dívida pública em reais fez com que, mesmo nos tempos de hiperinflação quando o encurtamento da dívida chegou ao overnight, não houve problema sem rolá-la.

Qual então é o problema da dívida pública? A resposta é: não temos uma estratégia viável lidando com seu aumento.

O setor financeiro tem vocalizado sobre a necessidade de controlar gastos, subir a taxa de juros, e combater o Real depreciado, sem levar em conta o empobrecimento da economia real. Quando a dívida pública mal chegava a 60% do PIB e os juros absorviam8-9% do PIB o grau de alarme era muito menor do que uma dívida agora 100% com um custo de juros bem menor.

Dito isso, é pragmático pôr a dívida pública numa trajetória onde ela se estabiliza no médio/ longo prazo. Aumentos no curto prazo podem trazer benefícios, mas uma trajetória que levasse a aumentos persistentes da relação dívida/PIB nos poria em terra incógnita com consequências que não podemos antecipar. Podemos aceitar aumentos da dívida no curto prazo e, pari-passu, implementar uma estratégia estabilizando-a no médio e longo prazo. Esse é o sinal que dever ser passado para os agentes econômicos: estabilidade ou redução no médio e longo prazo.

Isso pode ser atingido através de um crescimento mais rápido, juros mais baixos, impostos mais altos, ou gastos primários mais baixos em relação ao PIB. Dessas possibilidades o governo se foca unicamente no controle de gastos primários, com o teto dos gastos. Para um dos mais respeitados ex-diretores do BCB furá-lo não é uma questão de se, mas de quando. Não há uma estratégia para controlar o teto dos gastos, e tampouco há uma para pôr a economia numa trajetória de crescimento sustentável. Lembremo-nos que vários estudos empíricos mostraram é raro reduções na relação dívida/PIB serem alcançadas através de superávits primários.

Lidar com o problema da dívida pública exige aceitar seus aumentos no curto prazo ao mesmo tempo implementar uma estratégia que a estabilize no médio/ longo prazo. Essa estratégia devera necessariamente incluir o crescimento, compromissos com a taxa de juros presente e futura, compromissos com a evolução da taxa de câmbio, resistindo à tentação de um dólar barato, gastos primários, e aumentos de impostos sobre as rendas mais altas e riqueza.

Sem esses elementos, nosso futuro econômico continuará decepcionante.

Carlos Luque é professor da FEA- USP e presidente da Fipe.

Simão Silber é professor da FEA-USP

Francisco Vidal Luna é professor da FEA aposentado

Roberto Zagha foi professor Assistente na FEA-USP nos anos 1970 e no Banco Mundial a partir de 1980, onde encerrou a carreira em 2012 como Secretário da Comissão sobre o Crescimento e o Desenvolvimento, e diretor para a Índia.