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quarta-feira, 2 de março de 2022

O ignorante Bozo e os dois espertos Rasputins, um já desaparecido - Thaís Oyama (UOL)

 OPINIÃO

WhatsApp mostra que apego de Bolsonaro a Putin vai além dos negócios

Thaís Oyama

Colunista do UOL, 02/03/2022 14h23

Antes de o Brasil votar a favor da resolução da ONU contra a Rússia, Jair Bolsonaro dizia, em público, que não poderia condenar a invasão à Ucrânia por questões pragmáticas. Sendo o país de Vladimir Putin o principal exportador de insumos para a produção de fertilizantes, o Brasil teria de manter uma posição de "equilíbrio" para não prejudicar o agronegócio, explicou o presidente. "Para nós, a questão do fertilizante é sagrada".

No privado, porém, o presidente não se furta a colidir com a ONU e externar as convicções que regem seu tirocínio geopolítico.

Como mostrou o jornal O Globo, o presidente repassou para um grupo de WhatsApp um texto apócrifo intitulado "A única verdade" — uma mensagem que mistura ideias de dois gurus: o dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho, e o de Putin, Alexander Dugin, este vivo, operante e fundador do neo-eurasianismo, teoria política que almeja explicar por que a Rússia deve ocupar um lugar central no mundo (Olavo conheceu Dugin e um debate online entre os dois resultou no livro Os EUA e a Nova Ordem Mundial, publicado em 2020).

O texto compartilhado por Bolsonaro começa pela tentativa de explicar o real motivo pelo qual o ex-capitão não pode e não deve tomar uma posição contra a Rússia.

"Só existe a Rússia, a China e a Liga Árabe capaz de enfrentar a NOM (Nova Ordem Mundial)".

A "Nova Ordem Mundial", doravante referida por sua sigla NOM, é, segundo os preceitos de Olavo de Carvalho, uma concertação secreta envolvendo arquibilionários, como George Soros, e que tem por objetivo usurpar a soberania das nações e desmontar os pilares da civilização ocidental (Deus, pátria e família), com o apoio de comunistas e por meio de disfarces insidiosos como o da filantropia.

"O Brasil está no radar da NOM", alerta o texto compartilhado por Bolsonaro.

Assim, diz o autor desconhecido, a frente russa-sino-árabe seria a única chance de o Brasil escapar de ser tragado por "um governo hegemônico mundial", interessado em fazer dele seu quintal, ou sua "horta".

Mais importante do que revelar o papel da Rússia na resistência à ameaça da NOM, o texto compartilhado por Bolsonaro resolve o dilema que, desde o início do conflito na Ucrânia, atormenta e constrange as mentes bolsonaristas: mas a Rússia não era a pátria dos nossos arquiiinimigos, os comunistas, e não era aliada da traiçoeira China e da detestável Cuba? Por que então devemos gostar de Putin e prestar "solidariedade" ao seu país?

Está tudo explicado na mensagem:

"O comunismo se transmutou, voltou para o seu berço europeu, agora não prega mais lutas de classes e sim, pautas, como as do preconceito, minorias, sexuais, machismo (...) O comunismo tem outro nome, se chama Progressismo e seu berço é a Europa".

Em suma, os reais "comunistas" (agora transmutados) são os "progressistas", defensores das causas identitárias disseminadas sobretudo por países como a França. Putin e a Rússia não têm nada a ver com isso — são gente nossa.

É por isso que Bolsonaro busca o "equilíbrio" no conflito.

Antes fosse por causa dos fertilizantes.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Imagem do Brasil DESABA no mundo: não participação na COP-26 rebaixou ainda mais o país - Luciana Gurgel (UOL)

 Análise | Mídia internacional tem mirado mais no governo e menos na marca Brasil

 

UOL | Luciana Gurgel | 09.11.2021

 

Londres – Para quem tem apreço pelo Brasil e se informa pela mídia internacional, dói ver o país tão associado a notícias negativas como nas últimas duas semanas.

 

Esta não é a primeira vez que o país enfrenta cobertura negativa capaz de arranhar tão fortemente sua imagem externa.

 

Mas há agora uma diferença sutil. As críticas têm sido dirigidas mais às autoridades de plantão do que à marca Brasil em si, e isso pode ser percebido em alguns momentos da cobertura da mídia sobre os encontros do G20 e COP26.

 

Brasil, China e Rússia sem líderes principais na COP26

A ausência do presidente Jair Bolsonaro em Glasgow para participar dos primeiros dias da conferência global do clima foi tratada como incompreensível, sendo a COP26 um encontro que reuniu 120 líderes globais.

 

Até alguns que ameaçaram não aparecer mudaram de ideia, como o indiano Narendra Modi. Ele apanhou bastante pela proposta de neutralizar as emissões de carbono até 2070, mas pelo menos estava lá.

 

Entre as grandes economias globais, o Brasil equiparou-se à China de Xi Jinping e à Rússia de Vladimir Putin como nações que delegaram a diplomatas e ministros a missão de representar o país em um dos mais importantes eventos diplomáticos dos últimos anos, com implicações diretas sobre a vida das pessoas.

 

A percepção foi negativa em todo o mundo, até em locais que não costumam prestar muita atenção ao Brasil.

 

A correspondente brasileira Cláudia Wallin, que vive na Suécia, registrou que o principal telejornal da rede pública, a SVT, deu destaque à seguinte crítica:

 

“Em vez de ir a Glasgow, Bolsonaro viajou para Anguillara Veneta para se tornar cidadão honorário”.

 

Mas os abalos não vieram só de Glasgow. A agressão a jornalistas na visita do presidente à Itália exibiu ao mundo uma truculência que repercutiu na mídia global.

 

Algo mudou no tratamento da mídia sobre o Brasil?

Alguns sinais ajudam a fazer crer que tanto jornalistas quanto entrevistados parecem fazer questão de “separar” o Brasil como instituição da atuação de seus governantes.

 

Reportagens sobre a violência contra os jornalistas na Itália apresentaram o presidente como figura isolada. O trecho de uma matéria da agência Reuters é um exemplo:

 

“O ex-capitão do Exército viu seu apoio internacional diminuir desde que Donald Trump perdeu sua candidatura à reeleição, enquanto o ceticismo de Bolsonaro em relação à Covid-19, vacinas e questões ambientais lhe rendeu poucos amigos no cenário global”.

 

Outro exemplo dessa distinção pode ser percebido em um artigo do The Guardian da cobertura da COP26 explicando a atuação do Brasil com relação ao desmatamento na Amazônia. O texto foi compartilhado globalmente pelos integrantes da coalizão Covering Climate Now.

 

Cobertura da imprensa global sobre meio ambiente perdeu em 2020 para a da Covid, mas superou a de anos anteriores

 

“Momento infeliz do país”

No dia abertura da conferência, Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda, autora do livro Justiça Climática (publicado em português) falou à Sky News sobre a decepção com a participação do Brasil na COP26.

 

Entretanto, fez a ressalva de que se tratava de um momento infeliz do país e de suas políticas ambientais, citando o nome da ex-ministra Izabella Teixeira como exemplo de autoridade que contribuiu para mitigar os problemas em sua gestão.

 

Só que esses lampejos podem não ser suficientes para compensar a avalanche de cobertura negativa.

 

Por mais que diplomatas e empresários se empenhem para desconstruir a má reputação do país, a questão da Amazônia tem um peso difícil de equilibrar, quando um nome como Al Gore diz à mídia global que não confia no presidente brasileiro e em seus compromissos.

 

Cobertura da Sky News direto da Amazônia

No Reino Unido, o massacre diário tem hora certa para acontecer.

 

Patrocinadora da cúpula do clima, a Sky News criou um “estúdio ao ar livre” em Manaus, de onde o jornalista Mike Stone co-ancora diariamente o principal noticiário da rede.

 

Da beira do rio ou de cenários amazônicos, ele entrevista pessoas comuns, cientistas, líderes indígenas e de ONGs, unânimes em condenar a condução governamental. Tem buscado ouvir vozes sensatas e ressaltado argumentos baseados em evidências científicas.

 

Mas isso não é suficiente para atenuar o impacto negativo, que não é apenas uma questão de imagem.

 

Uma má reputação em questões climáticas hoje em dia vale muito dinheiro e influência global.

 

Consciência ambiental do consumidor

A cobertura da mídia sobre a COP26 é massiva em todo o mundo. Atinge desde os altos escalões da política até as pessoas comuns que vão ao supermercado fazer compras.

 

Em países desenvolvidos, os consumidores estão cada vez mais conscientes sobre os problemas ambientais e sabem quem são as nações que não colaboram. Ou que continuam permitindo práticas inaceitáveis em relação aos ecossistemas e aos animais.

 

Uma das reportagens mais fortes exibidas pela Sky News há poucos dias mostrava uma criação de gado clandestina na Amazônia. Os animais eram empurrados em balsas, em condições absurdas de sofrimento.

 

Ao tentar caminhar pela frágil ponte que levava à embarcação, uma vaca desaba, sem força nas pernas. Mesmo sabendo que estava sendo filmado, um homem coloca os pés sobre a sua cabeça para afogá-la.

 

Cenas de crueldade dessa natureza, embora não sejam a prática da indústria agropecuária brasileira, comprometem o país porque mostram aos consumidores que o problema existe.

 

As grandes redes globais de supermercados evitam ter em suas prateleiras algo que seus clientes não gostam ou não compram. E os países com má reputação saem em desvantagem na hora de vender para essas redes.

 

Valor da marca Brasil

Apesar de várias matérias fazerem essa distinção entre governo e instituição, isso não acontece na totalidade da cobertura negativa, acaba assim acaba respingando na marca Brasil.

 

Em outubro passado, a consultoria britânica Brand Finance revelou em seu estudo Nation Brands que o Brasil perdeu 12% do valor de sua marca nacional em 2021. E a queda se deveu sobretudo à cobertura negativa relativa à resposta falha à Covid-19.

 

A marca do país, que era a 16ª mais valiosa do mundo no ano passado, perdeu cinco posições no ranking global e assim deixou de integrar o clube das 20 mais valiosas do mundo, que continua liderado por Estados Unidos e China.

 

No caminho inverso ao do Brasil, o valor da marca do México aumentou US$ 23 bilhões (3,6%), o que fez o país subir uma posição e passar a integrar o Top 20.

 

Dessa maneira, com a ultrapassagem mexicana, a marca do Brasil passou a ser apenas a quarta mais valiosa das Américas, atrás também de Estados Unidos e Canadá.

 

Diante da onda de cobertura ambiental negativa da imprensa global que se abateu sobre o Brasil nas últimas semanas e que ainda deve durar alguns dias, só resta torcer para que o valor da marca brasileira não despenque ainda mais.

 

E que a distinção entre governo e a reputação institucional do país ajude a suavizar o impacto à marca Brasil depois da COP26.

 

https://mediatalks.uol.com.br/2021/11/09/midia-internacional-tem-mirado-mais-no-governo-e-menos-na-marca-brasil/

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Isolado, Bolsonaro recua em sua política externa e cede à China - Jamil Chade (UOL)

 Isolado, Bolsonaro recua em sua política externa e cede à China

UOL
Jamil Chade
19/09/2021, 04:00

Evitado pelos principais líderes democráticos, denunciado por crimes, alvo de chacota nos corredores da diplomacia internacional, isolado, sem conseguir sua sonhada adesão à OCDE e pressionado, o presidente Jair Bolsonaro cede - sem alarde - sobre alguns dos pilares de sua política externa.

Declarações e pronunciamentos feitos durante a reunião de cúpula dos Brics consolidaram o posicionamento da China em relação à pandemia da covid-19, obrigando o governo brasileiro a recuar no tom usado sobre a origem do vírus, acesso às vacinas e apoio ao sistema multilateral. Sinais apontando nessa mesma direção já tinham sido identificados nos encontros ministeriais do G-20, nos debates na OMS e mesmo no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

 

Mas a mudança ficou escancarada no encontro dos Brics que ocorreu, nesta quinta-feira, de forma virtual e foi marcada por um discurso público por parte do presidente brasileiro de elogios aos chineses por seu papel no combate ao vírus e no fornecimento de vacinas.

Bolsonaro usou um tom conciliador, em franco contraste com as críticas que ele e seus aliados fizeram por meses contra Pequim. Sem o respaldo de Donald Trump, com uma Europa que se afasta de qualquer envolvimento com sua presidência, com acordos comerciais que não conseguem ser fechados, com a adesão à OCDE ainda indefinida e com a ONU proliferando denúncias contra Bolsonaro, o presidente usou o encontro dos Brics para sair em busca de costurar alianças, mesmo com um regime comunista.

Mas o posicionamento de recuo do brasileiro não se limitou ao discurso. Na declaração final aprovada pelos líderes, também prevaleceu a postura diplomática da China nos principais debates sobre a pandemia.

Um deles se refere à pressão para que Pequim aceite a visita de uma missão internacional para investigar a origem do vírus. Nas últimas semanas, governos como o dos EUA, Alemanha ou Reino Unido têm insistido na necessidade de que os chineses abram seu laboratório de Wuhan para que inspetores internacionais possam avaliar se a covid-19 surgiu no local.

A China rejeita a ofensiva, alertando que não tem motivos para dar acesso ao seu laboratório e que a manobra representaria uma politização do debate sobre a pandemia. O temor de Pequim é de que a questão seja usada para enfraquecer ou culpar a China por conta da pandemia.

Nos bastidores, o Brasil também passou a pressionar nessa direção dos demais países do Ocidente. Em maio de 2021, o próprio Bolsonaro chegou a insinuar que a China poderia ter manipulado o vírus.

«É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra?", questionou o presidente, de forma retórica.

Bolsonaro então emendou. "Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês. Que que está acontecendo com o mundo todo, o seu povo, com sua gente, com nosso Brasil?", acrescentou.

Mas, na declaração final dos Brics, foi a postura de Pequim que vingou nas negociações. O texto não faz um chamado para que uma missão internacional visite o laboratório e insiste na necessidade de que não se politize o debate, uma exigência da China.

"Observamos que a cooperação no estudo das origens da SRA-COV-2 é um aspecto importante da luta contra a pandemia da COVID-19", diz o texto.

"Apoiamos processos baseados na ciência, incluindo ampla experiência, transparentes e oportunos, livres de politização ou interferência, para fortalecer a capacidade internacional de compreender melhor o surgimento de novos patógenos e para ajudar a prevenir futuras pandemias", insiste.

Na tradução dos termos diplomáticos para a realidade, a China rejeita qualquer interferência em seu país e alerta que apenas haverá um trabalho de investigação com sua chancela.

Defesa da ONU e do multilateralismo

Outra concessão do governo brasileiro se refere ao reconhecimento explícito no documento dos líderes sobre a posição central da ONU e da necessidade de um fortalecimento do multilateralismo, principalmente para dar uma resposta à pandemia.

Se essa era uma tradicional postura do Brasil por décadas, a diplomacia do governo brasileiro sob Ernesto Araújo havia optado por questionar o sistema, rebater qualquer ideia de ampliar a influência dos organismos internacionais e via órgãos estrangeiros como veículo para uma suposta manipulação por parte da China ou de forças de esquerda.

Araújo chegou a fazer referências ao fato de que, se o Brasil tivesse de ser considerado um pária, ele estaria disposto, em nome de uma nova postura polêmica. Internamente, chegou-se a vetar palavras e referências nos textos lidos pelos diplomatas brasileiros pelo mundo que tivessem uma relação com uma suposta redução da soberania nacional.

Muitos dentro do Itamaraty apontam que o início da transformação no vocabulário da chancelaria se deu quando, de forma surpreendente, o Itamaraty renomeou seus departamentos. Um deles ganhou o nome de Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional, o que agrupa as divisões que estavam antes sob a Subsecretaria de Política Multilateral.

Sob o termo "soberania" estavam temas como direitos humanos e outros aspectos sociais. Entre parte dos diplomatas, a mudança foi interpretada como um sinal de que, nos fóruns multilaterais, o foco do Brasil seria o da defesa do interesse nacional e da soberania. E não dos desafios globais.

A mudança não ficou apenas na placa da porta do gabinete dentro do palácio do Itamaraty. Aos poucos, essa mudança foi se transformando em um novo comportamento do governo em reuniões.

Uma das consequências foi a decisão de se evitar a palavra "global" em textos oficiais, em resoluções e em discursos em nome do Brasil. Sua eliminação dependeria do contexto. Numa das resoluções sob debate na ONU, o termo "desafios globais" seria trocado por "desafios em comum".

A ideia é que não existem realidades globais, mas apenas desafios que seriam comuns a todos. Na prática, o Brasil mantém seu espaço soberano e evita aderir a princípios e padrões universais

Tampouco o Itamaraty gostou da ideia de que os discursos de seus diplomatas trouxessem o termo "sistema internacional". Sempre que possível, os representantes nacionais teriam de dar um enfoque no papel dos Estados soberanos. Portanto, "sistema internacional" se transformaria em "sistema de nações" ou simplesmente "Estados-membros".

Ao longo dos primeiros anos do governo, Araújo chegou a usar encontros internacionais para alertar que o "multilateralismo" seria uma ideologia, enquanto o próprio Bolsonaro subiu na tribuna da ONU para mandar mensagens contrárias ao maior fortalecimento da entidade.

Observadores internos no governo apontam que, em parte, a mudança de postura ocorre por conta de uma estratégia do novo chanceler, Carlos França, de retomar a ideia de um país que mantém relações com todos e que aposta no multilateralismo.

Mas parte da mudança de postura tem uma relação direta com o isolamento internacional do Brasil, escancarado inclusive pela ausência de visitas de chefes-de-estado de peso ao país.

No texto final da declaração dos Brics, portanto, o que vingou não foi a postura do bolsonarismo. A mensagem vai exatamente no sentido contrário de tudo o que o Itamaraty defendeu durante mais de um ano da covid-19.

"A pandemia reforçou nossa crença de que o multilateralismo eficaz e representativo é essencial para construir resistência contra os desafios globais atuais e futuros, promovendo o bem-estar de nosso povo e construindo um futuro sustentável para o planeta", diz.

Na declaração, os Brics ainda se comprometem em "fortalecer e reformar o sistema multilateral para tornar a governança global mais ágil e ágil, eficaz, transparente, democrática, representativa e responsável perante os Estados Membros, ao mesmo tempo em que reiteramos nosso compromisso com a defesa do direito internacional, incluindo os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central das Nações Unidas no sistema internacional".

Sem garantias para Conselho de Segurança

Apesar do reconhecimento do papel central da ONU, o Brasil não conseguiu do Brics uma chancela para sua candidatura para um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Na declaração, o bloco "reafirma a necessidade de uma reforma abrangente da ONU, incluindo seu Conselho de Segurança, com o objetivo de torná-la mais representativa, eficaz e eficiente, e de aumentar a representação dos países em desenvolvimento para que possam responder adequadamente aos desafios globais".

Mas não há um endosso explícito do pleito brasileiro. Moscou e Pequim, que fazem parte do Conselho, apenas apoiam um maior papel do país no organismo internacional, sem dar detalhes.

"China e Rússia reiteram a importância que atribuem ao status e ao papel do Brasil, Índia e África do Sul nos assuntos internacionais e apoiam sua aspiração de desempenhar um papel maior na ONU", completa.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/09/10/isolado-bolsonaro-recua-em-sua-politica-externa-e-cede-a-china.htm


quinta-feira, 22 de julho de 2021

O que esperar da diplomacia para o século 21? - Felipe Estre (UOL) - Paulo Roberto de Almeida

Este acadêmico, aparentemente mal informado, escreve isto ao final de seu artigo: 

Sob a estrutura vigente, opaca e autocentrada, o silêncio dos funcionários do Ministério face à destruição promovida por Ernesto Araújo não foi surpreendente: era esperado. A resistência, onde possível, partiu da sociedade civil; somente muito adiante o Senado se posicionou.

Ele parece ignorar que eu, diplomata da ativa, me pronunciei contra os novos bárbaros que tomaram o Brasil de assalto desde as eleições de 2018, e já em 2019 eu começava uma série de livros de um ciclo (infeliz, pois não deveria existir) que eu chamei de "bolsolavismo diplomático", acusando e atacando a destruição da diplomacia pelos aloprados ineptos em torno do presidente ignorante, e sobretudo pelas mãos e pés de seu capacho de estimação, o chanceler acidental. Foram dois anos e meio de intensas publicações neste meu quilombo de resistência intelectual, o Diplomatizzando, depois recolhidos em livros, vários dos quais livremente disponíveis, e que relaciono a seguir: 

Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (Brasília: Edição do autor, 2019, 184 p., ISBN: 978-65-901103-0-5). Livremente disponível na plataforma Academia.edu e em Research Gate.

Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (Boa Vista: Editora da UFRR, 2019, 165 p., Coleção “Comunicação e Políticas Públicas vol. 42; ISBN: 978-85-8288-201-6 (livro impresso); ISBN: 978-85-8288-202-3 (livro eletrônico); disponível nos links da Editora da UFRR e aqui;  e no site do Google books. Incorporado à plataforma Academia.edu e a Research Gate.

O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, 2020, 204 p.; Edição Kindle, 1302 KB; ASIN: B08B17X5C1; ISBN: 978-65-00-05968-7; disponível na Amazon. Apresentação no blog Diplomatizzando

Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, 2020, 169 p.) Anunciado no blog Diplomatizzando. Livremente disponível em Academia.edu

O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo2018-2021

(Brasília, 13 maio 2021, 114 p.; ISBN: 978-65-00-22215-9; Formato Kindle, ASIN: B094V28NGD; 927 KB). Divulgado no blog Diplomatizzando, com sumário, dedicatória e prefácio (8/05/2021); disponível na Amazon.com.br (link).

 E ainda tem este que está sendo editado para publicação: 

Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (Brasília, 29 março 2021, 263 p.) Apresentação geral no blog Diplomatizzando (3/06/2021). 

Sumários de todos os livros do ciclo do bolsolavismo diplomático, postado no blog Diplomatizzando (9/05/2021).

Paulo Roberto de Almeida


Opinião

O que esperar da diplomacia para o século 21?

O que esperar da diplomacia para o século 21?... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/colunas/democracia-e-diplomacia/2021/07/21/o-que-esperar-da-diplomacia-para-o-seculo-21.htm?cmpid=copiaecola
Democracia e Diplomacia, Colunista do UOL

21/07/2021 14h31 

Por Felipe Estre*

Em fins do século 19, às margens do rio Nilo, moradores locais encontraram curiosas placas de argila nas ruínas da antiga cidade egípcia de Amarna. Assim que chegaram em mercados de antiguidade, as placas chamaram a atenção de arqueólogos, que rapidamente iniciaram escavações na região.

Os mais de 300 itens então encontrados, datados entre 1350-1330 a.C., tornaram-se uma das mais importantes descobertas daquele século: condensam enorme riqueza de informações sobre as relações entre o Reino do Egito e seus vizinhos.

Esse verdadeiro "Departamento de Correspondência do Faraó" é um registro até pouco ignorado, mas inestimável para as relações internacionais: as placas condensam mais de 300 correspondências diplomáticas, que permitem conhecer com riqueza de detalhes a dinâmica política do Oriente Próximo. São o primeiro registro conhecido do que poderíamos chamar de diplomacia.

O que chamamos de diplomacia moderna, contudo, é uma invenção bem mais recente. Suas origens podem ser identificadas na Península Itálica, ao final do século 15. A enorme insegurança das cidades-estado italianas —ricas, porém pouco protegidas— tornou imperativa a constituição de uma rede ágil e contínua de comunicação. A proximidade das cidades, que compartilhavam o mesmo idioma e religião, mostrou-se o local ideal para o nascimento das primeiras embaixadas permanentes.

O próximo passo na evolução da diplomacia moderna pode ser encontrado na França do século 16. Em 1589, o Rei Henrique 3º atribuiu ao seu secretário Louis de Revol a responsabilidade por concentrar as relações da França com as demais entidades políticas. Está aí o embrião do Ministério das Relações Exteriores. Contudo, nos tempos de Richelieu, essa era uma atribuição pessoal, em nada se parecendo com uma burocracia nos moldes atuais. Será apenas no início do século 18, nos anos finais do reinado de Luís 14, que será formada uma estrutura mais especializada, responsável pela abundante correspondência diplomática entre a França, grande poder da época, e os demais estados.

Em meados do século 18, a maioria dos estados europeus já possuía estrutura semelhante. A Secretaria de Negócios Estrangeiros de Portugal foi criada em 1736; o Foreign Office Britânico foi dos últimos a surgir, em 1782; nos Estados Unidos, nasce em 1789 o Departamento de Estado; nas décadas seguintes, China, Japão, Turquia seguem o modelo. O Brasil herdou de Portugal essa estrutura. Contudo, ela em nada se parecia com o Itamaraty dos dias de hoje.

Até fins do século 19, os Ministérios das Relações Exteriores eram estruturas bastante reduzidas e pouco burocratizadas. Além disso, havia rígida separação —não apenas funcional, mas também socia— entre os funcionários do ministério no país e os diplomatas servindo no exterior. Os primeiros eram servidores públicos que lidavam essencialmente com a correspondência externa. Já os diplomatas eram membros da elite que compartilhavam de um ethos aristocrático, financiavam com recursos próprios suas moradias no exterior, e muitos passavam anos sem retornar ao país de origem.

Era também comum que os representantes no exterior fossem divididos entre o serviço diplomático e o consular. A depender do tamanho do estado, havia até mesmo um serviço comercial especializado.

Apenas no início do século 20 as instituições como as que hoje identificamos como Ministérios das Relações Exteriores de fato começam a se formar. Em 1904, a Noruega destaca-se como pioneira na modernização ao juntar na mesma estrutura os funcionários do estado e os diplomatas no exterior. Mais do que isso, começa a haver um movimento de afastamento do modelo personalista de lidar com negócios estrangeiros em direção a uma burocratização. Interessante notar que, não obstante seus méritos, o Barão do Rio Branco promove no Brasil movimento contrário a essa inovação administrativa ao imprimir ao Itamaraty sua liderança personalista e carismática. Será apenas na década de 1930 que o Brasil promoverá essa fusão.

Se a primeira metade do século 20 promove os últimos ajustes estruturais à diplomacia moderna, a criação da Organização das Nações Unidas em 1945 promove sua pluralização temática ao impulsionar decisivamente a diplomacia multilateral. Grandes conferências, grandes convenções, grandes negociações tornam-se atividade corriqueira, exigindo franca expansão da burocracia diplomática. A agenda diversifica-se: meio ambiente, direitos humanos, imigração, cooperação, cultura, comércio. Ainda que a primeira organização internacional - a União Internacional de Telecomunicações - tenha sido criada em 1865, houve aumento exponencial na quantidade desse tipo de instituição desde meados do século 20. A diplomacia não fica para trás, e os Ministérios das Relações Exteriores diversificam-se e especializam-se. A seleção torna-se mais exigente, e há constantes treinamentos ao longo da carreira. Departamentos regionais e seções temáticos são criados.

Desde o fim da Guerra Fria, o que se vê é uma intensificação das tendências identificadas. O descongelamento da política internacional pluraliza ainda mais a agenda e mais instituições são criadas, como a Organização Mundial do Comércio e o Mercosul. A isso, soma-se a intensificação da globalização e aceleração de inovações em transporte e comunicações. Cada vez mais atores participam da política internacional: governos municipais e estaduais, organizações não governamentais, empresas transnacionais. Não mais se pode pensar em diplomacia como atividade exclusiva de estados e de seus Ministérios das Relações Exteriores. A chamada "paradiplomacia", para bem e para mal, está aí para ficar.

O que se vê globalmente é um esforço de adaptação dos Ministérios das Relações Exteriores às tendências do século 21. Aos diplomatas generalistas, somam-se especialistas. Os processos de seleção permanecem rígidos, mas há esforço de ampliação e diversificação, promovendo seleção de mais mulheres e membros de minorias. Se, antigamente, os Ministérios dos Negócios Estrangeiros buscavam ser "leões de chácara", preservando as fronteiras do internacional, esforços de controle dos fluxos transnacionais hoje mostram-se não apenas infrutíferos, mas contraproducentes. A tendência global é que essas instituições atuem menos como protagonistas, mas como coordenadoras e facilitadoras das relações internacionais. A diplomacia do século 21 é mais diversa, mais descentralizada e mais cooperativa.

Se, como dizia Azeredo da Silveira, "a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se", é imperativo que o ministério do século 21 assuma papéis de facilitação, ampliando esforços de coordenação e cooperação com os demais entre federados, com outros ministérios, universidades, centros de reflexão em políticas públicas e associações civis. Para isso, será preciso maior grau de abertura, caso contrário a inércia prevalecerá. Não nos esqueçamos de que diplomatas são, antes de tudo, burocratas.

Sob a estrutura vigente, opaca e autocentrada, o silêncio dos funcionários do Ministério face à destruição promovida por Ernesto Araújo não foi surpreendente: era esperado. A resistência, onde possível, partiu da sociedade civil; somente muito adiante o Senado se posicionou. Parece seguro dizer que, tornando mais porosa e democrática a diplomacia brasileira, melhor protegeremos seu acumulado histórico e mais equipada estará para contribuir com os novos e diferenciados atores e desafios das relações internacionais contemporâneas.

* Felipe Estre é doutorando em relações internacionais pela USP e King's College London e pesquisador da Rede de Segurança e Defesa da América Latina (Resdal)


quarta-feira, 26 de maio de 2021

Crise na Índia impede envio de 8 milhões de doses de vacinas ao Brasil - Jamil Chade (UOL)

 Crise na Índia impede envio de 8 milhões de doses de vacinas ao Brasil


Jamil Chade
Colunista do UOL
26/05/2021 04h00

Por conta de sua crise sanitária, a Índia impediu a entrega ao Brasil de 8 milhões de doses da vacina da Astrazeneca, o equivalente a dois terços de todo o volume que havia sido adquirido pelo Ministério da Saúde em relação ao acordo com a empresa. O imunizante é produzido nos laboratórios do Instituto Serum, em Nova Déli.

O polo farmacêutico indiano é um dos parceiros da AstraZeneca na fabricação das doses e era a grande esperança de abastecimento no mercado internacional. Mas a explosão de contaminações na Índia levou o governo de Narendra Modi e suspender toda a exportação de vacinas.

O resultado foi uma escassez ainda mais dramática no mercado internacional, principalmente no fornecimento de doses para os países mais pobres.

De acordo com o governo brasileiro, um primeiro lote de vacinas indianas foi enviado ao Ministério da Saúde ainda no começo da campanha de imunização, no início do ano. Mas das 12 milhões de doses previstas no acordo, apenas 4 milhões embarcaram para o país. O restante acabou sendo prejudicado pela decisão do governo indiano de priorizar a vacinação local.

Nesta quinta-feira, o chanceler Carlos França teria uma reunião por vídeo conferência com o Ministério das Relações Exteriores da Índia e um dos temas seria a liberação das vacinas que já tinham sido contratadas. Mas o Itamaraty informou à coluna que encontro acabou sendo adiado. Não foi informado qual seria a nova data da reunião.

A avaliação do governo brasileiro é de que a crise indiana precisa ser considerada no debate sobre o acesso às vacinas. Mas as autoridades em Brasília consideram que Nova Déli também precisa dar uma sinalização sobre o destino das 8 milhões de doses bloqueadas.

No início de maio, os indianos indicaram que apenas voltarão a permitir a exportação de doses de vacinas a partir do último trimestre de 2021.

O impacto, porém, não se limita ao Brasil. O Instituto Serum também era um dos principais fornecedores para o mecanismo Covax, criado pela OMS para permitir a vacinação na África, América Latina e Ásia.

Mas, desde a suspensão das exportações, a Covax passou a viver o que negociadores chamam de "pesadelo". Até o final de maio, a OMS esperava distribuir 140 milhões de doses aos países mais pobres. Mas conseguiu enviar apenas 65 milhões.

O buraco deve se aprofundar ainda mais em junho, chegando a 190 milhões.

No caso da Covax, as vacinas que são destinadas ao Brasil vêm de um laboratório sul-coreano que também fez parceria com a AstraZeneca, o que impediu uma escassez ainda maior.

Em Genebra, os indianos também estão sendo alvo de pressão e a OMS quer garantias de que o abastecimento voltará a ocorrer. "Uma vez que o surto devastador ceda na Índia, também precisamos que o Instituto Serum volte ao cronograma e cumpra os compromissos de entregas para a Covax", disse Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.

A Unicef também confirmou que a crise na Índia afetou a distribuição de doses pelo mundo. "Entre as consequências globais da situação na Índia está a severa redução de fornecimento de vacinas para a Covax", admitiu a agência da ONU.

Sob pressão, o governo da Índia abandonou seu discurso triunfante adotado no início do ano de que iria abastecer o mundo com vacinas. Nova Déli esperava usar sua produção de doses para ampliar a influência política na região asiática e frear a hegemonia chinesa. Mas, diante de mais de 2 milhões de novos casos por semana, os indianos passaram a evitar as últimas cúpulas de chefes-de-estado.

Já o CEO do Instituto Serum, Adar Poonawalla, chegou a alertar que não era possível ampliar a produção da noite para o dia.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/05/26/india-impediu-envio-de-8-milhoes-de-doses-de-vacinas-ao-brasil.htm

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Por ideologia, Ernesto mobilizou diplomacia e minou combate contra pandemia - Jamil Chade (UOL)

Por ideologia, Ernesto mobilizou diplomacia e minou combate contra pandemia

Jamil Chade 
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/


Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.

Colunista do UOL

17/05/2021 04h00 

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/05/17/por-ideologia-ernesto-mobilizou-diplomacia-e-minou-combate-contra-pandemia.htm?

 

Resumo da notícia

· Ex-chanceler é o próximo convocado na CPI da pandemia, na terça-feira

· Durante sua gestão, ele hesitou em fazer parte de mecanismos internacionais de vacina e tentou impedir fortalecimento da OMS

·  Araújo não aceitou convite para reunião no qual Pequim ofereceu crédito de US$ 1 bi para América Latina comprar suas vacinas

·  Sob seu comando, o Brasil não fez parte de compromisso de 130 países para lutar contra a desinformação na pandemia 

 

 

Durante a pior pandemia em cem anos, a diplomacia brasileira foi usada como instrumento para promover uma ideologia, deixando em segundo plano os esforços nacionais e internacionais para combater o vírus da covid-19. 

Nesta terça-feira, o ex-chanceler Ernesto Araújo terá de responder diante da CPI sobre suas ações no comando do Itamaraty, durante a pandemia. Desde a eclosão da crise, porém, sua atuação na esfera internacional teve como meta enfraquecer uma resposta global à pandemia. 

Desde a hesitação em fazer parte da coalizão internacional por vacinas, a ausência do Brasil em esforços internacionais e medidas deliberadas para colocar a política e a ideologia acima da questão de saúde, a diplomacia nacional foi uma peça fundamental no fracasso da resposta nacional à crise sanitária. 

 

OMS e o "comunavírus" 

Com o desembarque da pandemia, quase imediatamente a OMS foi colocada no centro das atenções. Se havia um local onde a coordenação internacional poderia ocorrer, muitos acreditavam que era a agência que deveria pilotar a resposta à crise. 

Mas, para Araújo, um dos focos deveria ser o de impedir que agências internacionais ganhassem força. Ao longo de meses, torpedeou iniciativas, exigiu uma investigação sobre a OMS e fez questão de esvaziar a representação brasileira em cúpulas e reuniões. 

Ainda em abril de 2020, Araújo postou em plena madrugada um texto em suas redes sociais. Não se tratava de uma orientação para lutar contra a pior crise sanitária em quase cem anos. Nem um plano sobre como conseguir respiradores, testes ou máscaras. Tampouco se trata de uma estratégia para costurar novas alianças para garantir a recuperação da economia. 

Tratava-se de um alerta sobre a necessidade de que se combata o comunismo que, segundo ele, iria se aproveitar do momento de crise e de apelos por solidariedade para implementar sua ideologia por meio do fortalecimento de entidades internacionais, como a OMS. 

Desde sua chegada ao poder, Araújo deixou claro que o estado-nação não deve se submeter a um poder internacional e vinha implementando tal visão durante a pandemia. 

"O Coronavírus nos faz despertar novamente para o pesadelo comunista", advertia o título do texto do chanceler. "Chegou o Comunavírus", escreveu o então ministro, conhecido por suas posições próximas ao governo dos EUA... - 

Segundo ele, a ideia de transferir poderes para a OMS seria o primeiro passo de um plano comunista. 

Araújo insiste que tal ameaça fica esclarecida em uma obra de Slavoj Zizek, "um dos principais teóricos marxistas da atualidade, em seu livreto "Virus", recém-publicado na Itália". "Zizek revela aquilo que os marxistas há trinta anos escondem: o globalismo substitui o socialismo como estágio preparatório ao comunismo. A pandemia do coronavírus representa, para ele, uma imensa oportunidade de construir uma ordem mundial sem nações e sem liberdade", disse o brasileiro, que indica a influência do autor em diversos meios. 

No primeiro trecho da obra escolhida, Araújo deixa claro sua recusa por recomendações, como o lockdown. "Tomara que se propague um vírus ideológico diferente e muito mais benéfico, e só temos a torcer para que ele nos infecte: um vírus que faça imaginar uma sociedade alternativa, uma sociedade que vá além do Estado-nação e se realize na forma da solidariedade global e da cooperação."... - 

"O vírus aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o projeto globalista. Este já se vinha executando por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do cientificismo. São instrumentos eficientes, mas a pandemia, colocando indivíduos e sociedades diante do pânico da morte iminente, representa a exponencialização de todos eles", disse o brasileiro. 

"A pretexto da pandemia, o novo comunismo trata de construir um mundo sem nações, sem liberdade, sem espírito, dirigido por uma agência central de "solidariedade" encarregada de vigiar e punir. Um estado de exceção global permanente, transformando o mundo num grande campo de concentração", alertou o então chefe da diplomacia nacional. 

"Diante disso precisamos lutar pela saúde do corpo e pela saúde do espírito humano, contra o Coronavírus mas também contra o Comunavírus, que tenta aproveitar a oportunidade destrutiva aberta pelo primeiro, um parasita do parasita", completou o chanceler. 

"Uma coisa é certa: novos muros e outras quarentenas não resolverão o problema. O que funciona são a solidariedade e uma resposta coordenada em escala global, uma nova forma daquilo que em outro momento se chamava comunismo", disse. 

Em outro trecho, o ataque do ministro brasileiro se refere ao plano relativo à coordenação da OMS. 

"Um primeiro e vago modelo de uma tal coordenação na escala global é representado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (...) Serão conferidos maiores poderes a outras organizações desse tipo", diz o texto do autor europeu. "Transferir poderes nacionais à OMS, sob o pretexto (jamais comprovado!) de que um organismo internacional centralizado é mais eficiente para lidar com os problemas do que os países agindo individualmente, é apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária" alertaria. 

Meses depois, durante a abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU, já em 2021, Araújo voltaria a atacar a ideia de lockdown. "Sociedades inteiras estão se habituando à ideia de que é preciso sacrificar a liberdade em nome da saúde", disse. "Não critico as medidas de lockdown ou semelhantes, que tantos países aplicam. Mas não se pode aceitar o lockdown no espírito humano, o qual dependente da liberdade e dos direitos humanos", afirmou. ... - 

Uma primeira reunião entre um chanceler brasileiro e a OMS apenas ocorreu em abril de 2021, mais de um ano depois da declaração de uma emergência internacional. Também em abril, a agência se aproximaria ao novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e faria um pedido: que o Brasil voltasse a exercer sua "liderança tradicional" em temas de saúde pública global. 

 

Vacinas

Também por motivos ideológicos, o Itamaraty ficou de fora do lançamento da Covax, a aliança mundial de vacinas. Em abril de 2020, o primeiro encontro contou com chefes de estado de vários países do mundo. Mas a ausência do Brasil chamou a atenção. Naquele momento, procurado pela coluna, o governo explicou que mantinha "outros projetos de alianças", sem jamais explicar quais seriam. 

Pressionado inclusive por senadores, o Itamaraty optou por aderir ao projeto. Mas com várias ressaltas. A primeira delas é de que pediria o menor volume permitido de vacinas dentro do esquema criado: doses que poderiam cobrir apenas 10% da população nacional. Pelas regras do mecanismo, o país poderia ter pedido o dobro. 

A decisão de aderir ao projeto, que foi tomada nas últimas horas do prazo dado pela OMS, ainda estabeleceu mais flexibilidades. O Brasil conseguiu o direito de entrar no mecanismo, reservando-se o direito de não comprar o primeiro lote da vacina, caso fosse da mesma empresa que já estava fornecendo doses ao país. Mas isso significaria que, para a segunda entrega de doses, o Brasil seria colocado para o final da fila entre os recipientes. 

 

Patentes

Um outro elemento chave na política externa brasileira foi a decisão de romper a postura tradicional do país, se distanciar de outros países emergentes e se negar a apoiar a ideia de uma suspensão de patentes de vacinas. O projeto foi apresentado pela Índia e África do Sul, na OMC em outubro, e previa que qualquer país poderia produzir versões genéricas da vacina, sem que fosse punido pela quebra da patente. 

Negociadores consideraram que a falta do apoio brasileiro foi central para que proposta não tivesse a força necessária e que o projeto se arrastasse por meses, sem uma definição. Ao tomar essa postura, o Itamaraty rompia com mais de 20 anos de uma política de defesa da saúde como sendo prioridade sobre questões comerciais ou econômicas. 

De um líder incontestável nessa questão, o Brasil passou a ser um dos maiores obstáculos para que houvesse um acordo para a produção em massa de vacinas. 

Como um terremoto no mundo diplomático, o governo de Joe Biden decidiu recentemente apoiar a suspensão de patentes, dias depois de o Itamaraty voltar a afirmar que não mudaria de postura e que a proteção das patentes era fundamental. 

 

Anti-China e aliança com Trump

Um dos aspectos que marcou sua gestão foi ainda as repetidas críticas contra o governo da China, o que, para ex-ministros do governo de Jair Bolsonaro e para o governador João Doria, afetou a capacidade de o Brasil ter acesso privilegiado a insumos chineses fundamentais para a vacinação no país. 

O ex-chefe da pasta da Saúde Luiz Henrique Mandetta revelou à coluna que, ainda no início da crise, foi buscar contato com a embaixada da China em Brasília e aproximar posições. Mas suas tentativas eram minadas pelo Itamaraty. 

Ainda em abril de 2020, em um texto publicado, o ex-chanceler criticou Pequim. "Não surpreende que, ao menos até agora, a China - que já empregava largamente sistemas de controle social digitalizado - se tenha demonstrado a mais bem equipada para enfrentar a epidemia catastrófica. Deveremos talvez deduzir daí que, ao menos sob alguns aspectos, a China represente o nosso futuro? Não nos estamos aproximando de um estado de exceção global?", questionou. 

"Mas se não é esse [o modelo chinês] o comunismo que tenho em mente, que entendo por comunismo? Para entendê-lo, basta ler as declarações da OMS." Para ele, o lockdown em Wuhan naquele momento veio "à custa da destruição dos empregos que permitem a sobrevivência digna e minimamente autônoma de milhões e milhões de pessoas, ao preço do desmantelamento de sua liberdade e de seu sustento, se atinge um mundo "em paz consigo mesmo". 

Não houve apenas ataques em redes sociais. Ainda no início da crise, o governo da China promoveu um encontro com chanceleres da América Latina para debater a proposta de dar um crédito de US$ 1 bilhão para que a região comprasse vacinas chinesas. Araújo foi um dos poucos ministros da região que recusou o convite. 

A recusa em permitir qualquer aproximação com a China vinha de uma percepção clara e alinhada com o governo de Donald Trump que a pandemia seria um momento decisivo para o poder de Pequim no mundo. A ordem, portanto, era de impedir uma maior influência dos chineses, mesmo que isso representasse custos para o país. 

Além de apoiar ataques dos filhos de Bolsonaro e outros membros do governo contra a China, seminários foram promovidos dentro do Instituto Rio Branco com supostos especialistas que usaram a entidade para difundir críticas contra Pequim. 

"Eu tô cada vez mais convencido de que o Brasil tem hoje as condições, tem a oportunidade de se sentar na mesa de quatro, cinco, seis países que vão definir a nova ordem mundial", disse o então ministro, naquele encontro com a presença de Bolsonaro. 

“É, outro dia a...na conversa do presidente com o primeiro-ministro da Índia, o indiano disse que vai ser tão diferente o pós-coronavírus do pré quanto pós segunda guerra do pré", explicou. 

"Eu acho que é verdade e assim como houve um conselho de segurança que definiu a ordem mundial, cinco países depois da... da segunda guerra, vai haver uma espécie de novo é... conselho de segurança e nós temos, dessa vez, a oportunidade de tá nele e acreditar na possibilidade de o Brasil influenciar e forma... ajudar a formatar um novo é... cenário", afirmou. 

Um trecho, porém, revelou um ataque velado contra a China. "Que que aconteceu nesses trinta anos? Foi uma globalização cega para o tema dos valores, para o tema da democracia, da liberdade. Foi uma globalização que, a gente tá vendo agora, criou é... um modelo onde no centro da economia internacional está um país que não é democrático, que não respeita direitos humanos etc., né?", disse, numa referência aos chineses e sem citar o nome do país. 

 

ONU: Itamaraty opta por ficar de fora de combate contra desinformação

Ao longo de seu mandato, porém, o governo brasileiro se distanciou de iniciativas internacionais, não apoiou resoluções na ONU, não criticou o corte de dinheiro dos EUA para a OMS, não enviou ministros para reuniões, não adotou uma postura de protagonismo no cenário internacional e não foi a uma reunião entre ministros para fortalecer o multilateralismo. 

Em dezembro de 2020, por exemplo, Araújo, usou um evento extraordinário da ONU para tratar da crise da covid-19 para criticar a OMS, questionar o multilateralismo e para defender alguns de seus mantras da diplomacia do atual governo, principalmente a soberania nacional. 

O evento virtual contou com mais de 90 presidentes e primeiros-ministros. A meta era a de garantir um compromisso amplo sobre como dar uma resposta global à crise. Mas o presidente Jair Bolsonaro optou por não participar. Araújo, pelo protocolo, ficou para o final da fila, sendo um dos últimos a discursar e quando já era o início da noite em Nova York. 

Em seu discurso, o chanceler fez questão de romper um tom de apoio ao multilateralismo adotado pelos demais governos e deixar claro que foram governos nacionais quem deram uma resposta à crise. Segundo o ministro, a crise não poderia ser usada como "pretexto" para ampliar a agenda ou o mandato da ONU e, em sua visão, o organismo é apenas uma "plataforma para compartilhar experiências".

Sua defesa era de que a resposta contra a covid-19 é de responsabilidade de governos nacionais, e não de organismos estrangeiros. Para ele, não deve haver uma transferência de competências do nível nacional para o internacional e criticou "clichês bonitos como "o mundo precisa de mais multilateralismo" ou "problemas globais exigem respostas globais". 

O governo brasileiro ainda optou por não aderiu a um compromisso assinado por 130 países de todo o mundo na ONU contra a desinformação em meio à pandemia. Em junho de 2020, uma ofensiva na ONU por parte de governos estabeleceu um compromisso global para lutar contra a desinformação durante a pandemia... - 

Aliados do governo de Jair Bolsonaro como Israel, Índia, Hungria e Japão assinaram a declaração. Até mesmo o governo dos EUA de Donald Trump aderiu, assim como o Reino Unido de Boris Johnson. Também aderiram ao projeto Alemanha, França e Itália, entre muitos outros países. 

O texto da iniciativa alertava que "à medida que a COVID-19 se espalha, um tsunami de desinformação, ódio, bode expiatório e assustador foi desencadeado". Segundo os governos, em tempos de crise de saúde, "a propagação da "infodemia" pode ser tão perigosa para a saúde e segurança humana quanto a própria pandemia". 

"Entre outras consequências negativas, a COVID-19 criou condições que permitem a disseminação de desinformação, notícias falsas e vídeos para fomentar a violência e dividir as comunidades", alertaram os governos. "Por estas razões, pedimos a todos que parem imediatamente de difundir informações errôneas e observem as recomendações da ONU para enfrentar este problema", sugeriram os governos. 

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Brasil não fecha acordo do spray nasal em Israel; dados têm sigilo até 2036 - Jamil Chade (UOL)

 Brasil não fecha acordo do spray nasal em Israel; dados têm sigilo até 2036

Jamil Chade
Colunista do UOL
14/05/2021 04h00

RESUMO DA NOTÍCIA
-Em resposta ao PSOL, Itamaraty admitiu que proposta de carta de intenções não foi fechada durante visita de Ernesto Araújo para Israel
-Telegramas diplomáticos sobre viagem foram classificados como confidenciais e serão acessíveis apenas no ano de 2026 ou mesmo 2036
-Custo da viagem foi de mais de R$ 88 mil, sem contar o avião da FAB que levou a comitiva
-Ministério da Saúde não deu respostas sobre o motivo da falta de um acordo
-Proposta de carta de intenções com outro instituto israelense tampouco foi concluída

O Itamaraty admite que a viagem do ex-chanceler Ernesto Araújo para Israel, em meio à pandemia, não resultou na assinatura de um acordo por escrito de cooperação com o hospital Ichilov para o desenvolvimento ou importação de um tratamento contra a covid-19 conhecido como spray nasal.

Tampouco houve a assinatura de um convênio final com outra entidade israelense, o Instituto Weizmann, responsável por diversas pesquisas no campo da pandemia. O governo brasileiro ainda decidiu classificar os telegramas diplomáticos entre Brasília e Tel Aviv como reservado ou secretos, impedindo alguns deles de serem consultados pelos próximos 15 anos.

Na prática, as informações completas sobre a viagem da delegação brasileira, que foi alvo de polêmica, serão conhecidas apenas em 2036.

As revelações fazem parte de uma resposta de mais de 40 páginas submetida pelo novo chanceler Carlos França à bancada do PSOL na Câmara, no dia 7 de maio. Os deputados tinham solicitado explicações sobre a viagem de uma delegação do governo brasileiro para Israel, na primeira semana de março.

Além de Ernesto Araújo, que chegou a levar um pito público durante a viagem por não usar máscara, o avião da FAB (Força Aérea Brasileira) transportou para Israel o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o deputado Helio Lopes (PSL-RJ), o assessor especial Filipe Martins, e o então secretário de Comunicações, Fabio Wajngarten, além de diplomatas.

Da área técnica, a delegação contava com apenas dois representantes: Hélio Angotti Neto, do Ministério da Saúde, e Marco Morales, do Ministério da Ciência e Tecnologia.

No total, o custo da missão foi de mais de R$ 88 mil, sem contar o transporte no avião da FAB e a parcela de gastos arcada pelo governo de Israel.

Antes da missão, Eduardo Bolsonaro e outros membros do governo justificaram a ida para Israel por conta, entre outros fatores, de uma perspectiva de cooperação no desenvolvimento de um spray que ajudaria a combater a covid-19.

O presidente Jair Bolsonaro também usou sua live nas redes sociais para tocar no assunto. O produto teria tido bons resultados contra a covid-19. Mas tinha sido testado em apenas 30 pessoas.

Ao escrever para os deputados do PSOL, o chanceler Carlos França confirmou que houve reunião com a direção do hospital Ichilov, responsável pelo desenvolvimento do spray, oficialmente denominado de EXO-CD24.

No encontro, foi acordado um programa de cooperação "com vistas à participação do Brasil no desenvolvimento conjunto do produto (fase 2 e 3 de estudos), caso a Anvisa e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa autorizem ensaios clínicos no país".

"Foi proposto que o Brasil integrasse a fase 2 do desenvolvimento do medicando EXO-CD24", fazendo parte de pool internacional", explicou o chanceler.

Mas, na mesma resposta, o Itamaraty também afirma que a cooperação em relação ao spray nasal não se concretizou por meio de um documento, apesar de a delegação ter preparado em inglês e português um modelo de carta de intenções que foi levada para Israel.

"No que diz respeito à carta de intenções entre o Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Saúde e OBCTCCD24 LTDA [empresa que desenvolve o produto] sobre cooperação em relação ao spray nasal EXO-CD24, cujo objetivo seria consolidar a intenção do governo brasileiro de dar continuidade ao diálogo sobre cooperação com aquela empresa, o projeto da carta não teve sua celebração completada, uma vez que não foi assinada pelo representante do Ministério da Saúde e não chegou à troca de instrumentos entre os signatários, conforme prática de negociações internacionais", diz o texto assinado por França.

Aos deputados, o chanceler submeteu a proposta de texto do acordo. Ela traz as assinaturas de Ernesto Araújo e da parte israelense, mas a do Ministério da Saúde está ausente.

Procurada, a pasta hoje comandada por Marcelo Queiroga não explicou o motivo de o texto não ter sido assinado, mesmo com um representante do Ministério da Saúde na delegação em Israel. Seus assistentes chegaram a pedir à reportagem mais tempo para que a informação pudesse ser buscada pela pasta. Mas não deram mais retorno.

Ainda nas respostas dadas aos parlamentares, o ministro França insistiu que a viagem "não deve ser reduzida às iniciativas de cooperação no domínio da Saúde, muito menos às tratativas para potencial desenvolvimento do spray nasal".

Procurada, a embaixada de Israel no Brasil explicou que "o trabalho da delegação brasileira que foi a Israel foi muito frutífero e positivo". "Muitas discussões estão sendo feitas. Os hospitais Hadassah e Ichilov estão em contato com o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil", disse.

"Uma série de acompanhamentos por videoconferência sobre o assunto está em andamento", completou.

No hospital Ichilov, a coluna tentou em diversas ocasiões contato com os responsáveis pelo projeto após a viagem de Araújo. Mas os pedidos de informação não foram atendidos.

Em resposta à coluna, o Itamaraty explicou que, "em 9/3/2021, a delegação brasileira que foi a Israel reuniu-se com o diretor do Hospital lchilov/Sourasky, Dr. Ronni Gamzu, e com o chefe do Centro de Pesquisa Médica daquela instituição, Dr. Nadar Arber, e com representantes da empresa OBTCD24. O lchilov é o maior hospital de Tel Aviv, responsável pelo desenvolvimento do spray nasal EXO-CD24, para fins de tratamento da COVID-19".

Mas a chancelaria confirma que o acordo não foi concluído. "Carta de intenções sobre cooperação em relação ao ''spray" nasal "EXO-CD24" foi rubricada pelo então Ministro das Relações Exteriores, embaixador Ernesto Araújo, com o objetivo de consolidar a intenção do governo brasileiro de dar continuidade ao diálogo sobre cooperação com a empresa OBCTCD-24", disse.

"O projeto de carta não teve sua celebração completada, uma vez que não foi assinada pelo representante do Ministério da Saúde e não se chegou à troca de instrumentos entre os signatários, conforme prática de negociação internacional", disse.

"O projeto de carta de intenção, apenas rubricado, não continha elementos juridicamente vinculantes, nem previsão de gravames financeiros ou obrigações de qualquer espécie para as partes participantes naquela etapa das tratativas", apontou.

Ausência de assinatura de acordo com instituto
Esse não foi o único assunto que não resultou num acordo por escrito. Diferentemente do que o site do governo dá a entender, o Itamaraty declarou em sua carta aos deputados que "não há registro da assinatura de instrumento com o Instituto Weizmann, apesar da propositura do Ministério da Ciência e Tecnologia". Ou seja, a intenção do governo era de ter um convênio assinado.

O Instituto é um dos maiores centros de pesquisa do mundo. De acordo com a resposta da chancelaria, houve despachos telegráficos sobre o tema. No entanto, assim como todos os demais telegramas solicitados, os parlamentares apenas receberam o trecho em que diz que os documentos foram classificados como sigilosos ou secretos.

Segundo o Itamaraty, quatro telegramas diplomáticos se referem à cooperação com o Instituto Weizmann. Mas toda a informação está embargada por anos.

No texto da explicação assinado pelo chanceler Carlos França, ele confirma, porém, que houve um encontro com o presidente do Instituto Weizmann, Alan Chen, durante o qual foi debatido intercâmbio de acadêmicos e que, no curto prazo, "acordou-se que a prioridade da parceira será a cooperação em temas ligados à pandemia".

Ao terminar a viagem, num comunicado de imprensa, o governo anunciou que a delegação de autoridades brasileiras "firmou cooperação, de curto prazo, com o Instituto Weizmann, para pesquisas de combate à covid. A longo prazo, foi estabelecida cooperação em outras áreas, entre elas, a bioeconomia."

Em resposta à coluna, o Itamaraty explicou que, no dia 7 de março, a delegação liderada pelo então Ministro das Relações Exteriores, com a participação de Secretários do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações (MCTI) e do Ministério da Saúde (MS), "manteve produtiva reunião com o presidente do Instituto Weizmann, Dr. Alon Chen". "O Weizmann é um dos dez maiores institutos de pesquisa do mundo, que dispõe de 65 linhas de pesquisa sobre o COVID-19, incluindo desenvolvimento de vacinas", diz a chancelaria.

"Ao final do encontro, decidiu-se pela adoção simbólica, por consenso e sem assinatura, de um plano de trabalho entre o MCTI e o Instituto Weizmann", completou.

Telegramas em sigilo até o ano de 2036
Os deputados ainda solicitaram que todos os telegramas diplomáticos sobre a viagem fossem disponibilizados. Mas o Itamaraty enviou 28 Termos de Classificação de Informação, no qual apontava como todos os documentos passaram a ser impedidos de ter seus conteúdos revelados.

Alguns deles estão sob sigilo até 2026, enquanto outros até o ano 2036. O Itamaraty ainda colocou tarjas negras para impedir que se saiba até mesmo o motivo pelo qual os telegramas foram classificados como secretos

Viagem estava em discussão havia um ano
Entre as diversas respostas, o Itamaraty ainda indicou que a viagem era um tema que há meses vinha sendo tratado. O primeiro convite partiu do governo de Israel, ainda em maio de 2020 e, naquele momento, não tinha como principal objetivo buscar soluções para a pandemia, mas a manutenção e aprofundamento do laço preferencial com Israel. A pandemia, porém, foi adiando a possibilidade de uma viagem.

Segundo o governo, foi o "agravamento dos efeitos da pandemia e o surgimento de variantes do novo coronavírus no mundo" que deram um "sentido de urgência" à ideia de uma missão até Israel.

Entre as metas estava "conhecer in loco os notáveis resultados obtidos por Israel no combate à pandemia". Além da "premência de colher frutos, sobre tudo em termos de cooperação técnica e científica, da parceira estratégica entre Brasil e Israel".

Nas declarações emitidas ao final da viagem, porém, os dois governos deixaram claro que a questão da pandemia não era o único assunto. Naquele momento, o então chanceler deu apoio aos israelenses em suas críticas contra a decisão da procuradoria do Tribunal Penal Internacional de abrir investigações contra membros do governo de Israel por suas ações contra palestinos.

Na resposta aos deputados, porém, o Itamaraty adota uma postura mais equilibrada e diz respeitar a independência da corte, em Haia.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/05/14/brasil-nao-fecha-acordo-do-spray-nasal-em-israel-dados-tem-sigilo-ate-2036.htm