Por Denize BACOCCINA
No comando da Organização Mundial do Comércio (OMC), desde setembro de 2013, o embaixador brasileiro Roberto Azevêdo já passou por seu primeiro teste: impedir a morte da entidade, sediada em Genebra
No comando da Organização Mundial do Comércio (OMC), desde setembro de 2013, o embaixador brasileiro Roberto Azevêdo já passou por seu primeiro teste: impedir a morte da entidade, sediada em Genebra, na Suíça, ao conseguir um acordo para facilitar o trânsito de mercadorias, na conferência de Bali, na Indonésia, em dezembro. Agora, seu desafio é mobilizar os 160 países-membros para modernizar o comércio internacional, que desde a crise de 2008 vem crescendo bem menos do que a média histórica. Enquanto as grandes economias negociam a criação de grandes blocos comerciais, a missão de Azevêdo é garantir que os pequenos não fiquem fora do jogo. "Quem faz a agenda bilateral são as grandes economias, que têm mercado atraente", disse o embaixador, em entrevista à DINHEIRO.
DINHEIRO – A conferência de Bali serviu para mostrar que a OMC não morreu, como se temia. Mas muitos observadores dizem também que não se avançou na ampliação do acesso a mercados. Qual é o cenário a partir de agora?
ROBERTO AZEVÊDO – O que nós fizemos, em Bali, foi o destravamento das negociações multilaterais, absolutamente paralisadas há quase 20 anos. A área de acesso a mercados não está limitada a um tema. Não é só agricultura, bens industriais ou serviços, mas as três áreas ao mesmo tempo. É muito difícil negociar avanços individualmente em apenas uma dessas áreas. Um país desenvolvido que vai fazer concessões na área agrícola vai querer maior acesso a seus produtos e serviços em outros mercados. Já sabíamos que seria impossível um acordo para as três áreas.
DINHEIRO – Antes, eram os países desenvolvidos que seguravam a negociação na área agrícola. Em Bali, houve resistência também da Índia, alegando a questão da segurança alimentar. Qual é a dificuldade do setor agrícola atualmente?
AZEVÊDO – Um avanço na questão agrícola dificilmente acontecerá sem algo semelhante no setor industrial. Os países que subsidiam a agricultura não vão concordar em avançar nessa discussão sem ter contrapartida na área industrial ou de serviços. Ou os três temas estão sobre a mesa ou nenhum deles está. Essa é a dificuldade: a agricultura não vai caminhar sozinha.
DINHEIRO – Por isso, o sr. já propôs, desde o início das conversas, um documento mais sintético?
AZEVÊDO – Isso. Chegamos a um pacote mais reduzido, em termos de abrangência, limitado basicamente à facilitação de comércio e a alguns temas de agricultura e outros de desenvolvimento, principalmente para países de menor desenvolvimento relativo. Mesmo assim, não foi nada fácil, como alguns diziam. A facilitação de comércio era algo que vinha sendo dito desde a primeira vez que eu cheguei a Genebra, em 1997, antes mesmo do lançamento da Rodada de Doha. E somente agora conseguimos avançar nesse tema.
DINHEIRO – Na prática, o que significa esse acordo de facilitação do comércio?
AZEVÊDO – Significa, basicamente, a simplificação dos procedimentos alfandegários, facilitando a entrada e saída das mercadorias nos países que compram e vendem. Os países têm práticas diferentes, e esse acordo vai levar a uma harmonização. Para muitos deles, são procedimentos que vão modificar bastante suas práticas aduaneiras e, por isso, alguns terão mais tempo para colocar essas mudanças em vigor.
DINHEIRO – Existe um cálculo do Instituto de Economia Internacional de que esse acordo poderia elevar em US$ 1 trilhão o comércio mundial. A OMC tem alguma estimativa sobre valores?
AZEVÊDO – Não temos um cálculo preciso, mas estimamos que os custos para atravessar a fronteira representem cerca de 10% da transação. Com o comércio internacional movimentando cerca de US$ 20 trilhões por ano, podemos imaginar que, se conseguirmos reduzir esse custo pela metade, para 5% da transação, poderemos economizar cerca de US$ 1 trilhão. Trata-se de um dinheiro que não será gasto em procedimentos alfandegários e que seria injetado na economia mundial.
DINHEIRO – A resistência dos países menos desenvolvidos, que têm menos estrutura, foi maior?
AZEVÊDO – Não houve resistência, mas preocupação com os custos. Muitas vezes, esses países não têm os recursos, alguns não têm nem rede de comunicação em postos remotos na fronteira. Eles pediram mais tempo para implementar as mudanças e a cooperação técnica, que será dada pelos países doadores. O acordo entra em vigor quando for ratificado por dois terços dos países, e o prazo final é janeiro de 2016.
Área de movimentação de contêineres para exportação e importação, no porto de Santos
DINHEIRO – Qual é o cenário para o comércio mundial nos próximos meses?
AZEVÊDO – Em 2013, a projeção é de um aumento de 2,5%, o que é pouco. Em 2014, devemos crescer um pouco mais, em torno de 4,5%. Ainda assim é um crescimento anêmico. O comércio mundial tem crescido pouco desde 2008, bem abaixo das médias históricas, entre 6% e 7%.
DINHEIRO – No início da crise internacional, em 2008, houve uma grande onda de protecionismo. Isso já foi revertido? O mundo hoje é mais ou menos protecionista do que há seis anos?
AZEVÊDO – Ainda não. Ao contrário. Um relatório que fizemos no fim de 2013 mostra que as barreiras estão subindo. Não de uma maneira extraordinária, mas estão subindo. Oitenta por cento das barreiras implementadas depois de 2008 ainda estão em vigor. Apenas 20% das medidas protecionistas foram revertidas. É um número ainda muito alto, temos de progredir .
DINHEIRO – O que a OMC pretende fazer para reduzir o protecionismo?
AZEVÊDO – Desde que as medidas tomadas estejam enquadradas nas disciplinas previstas pela Organização, não há nada que possamos fazer. O que fazemos é monitorar, continuar monitorando, notificando, insistindo em transparência. É um movimento que não está concentrado em um ou dois países, mas espalhado por todo o mundo. A medida restritiva pode ser ilegal, mas também pode ser adotada de maneira legal, totalmente compatível com as regras multilaterais. Mas, mesmo sendo legal, houve um aumento do protecionismo.
DINHEIRO – A União Europeia entrou com processo contra o Brasil por causa das medidas do setor automotivo, que privilegiam a indústria nacional. Qual é a sua avaliação?
AZEVÊDO – Essa não é uma atribuição do diretor-geral da OMC. O pedido é protocolado junto ao órgão de solução de controvérsias e há um processo de consultas. Um grande número dos casos se encerra nesta fase, sem a necessidade de um contencioso. Mas cada caso é um caso. Não me cabe fazer comentários adicionais sobre o tema.
Plantação de algodão, tema de disputa na OMC
DINHEIRO – O Brasil ganhou um processo contra os Estados Unidos, por causa dos subsídios aos produtores de algodão, mas os americanos não vêm pagando a indenização combinada, de US$ 147 milhões por ano. O que a OMC pretende fazer?
AZEVÊDO – Não cabe ao diretor-geral fazer comentários ou juízo de valor sobre isso. É uma solução técnica, de um mecanismo que ainda está em aberto. As partes ainda continuam negociando uma solução.
DINHEIRO – O fato de o Brasil abrir mão da retaliação não pode enfraquecer esse tipo de mecanismo, desencorajar esse tipo de ação?
AZEVÊDO – Essa é uma avaliação que cabe ao governo brasileiro, que com certeza está estudando isso com atenção. As estatísticas mostram que há uma ampla aplicação dos resultados dos contenciosos na OMC. Cerca de 90% dos processos resultam em implementação das recomendações dos órgãos de solução de controvérsias. Apenas 10% são casos como esse do algodão, em que as partes ainda não chegaram a um acordo mutuamente satisfatório. Mas esses casos são a exceção, e não a regra.
DINHEIRO – O Brasil sempre privilegiou os acordos na OMC em vez de negociações bilaterais ou regionais. Mas muitos países não fizeram isso e hoje os Estados Unidos, por exemplo, estão envolvidos em dois grandes acordos, o Transpacífico, com a América do Sul e a Ásia, e outro com a União Europeia. O mundo hoje está mais compartimentado, em termos de regras comerciais e de acesso a mercados?
AZEVÊDO – Esses acordos bilaterais, regionais ou plurilaterais, como os chamamos, sempre existiram, e vão continuar existindo. O sistema multilateral não é um desbravador de fronteiras comerciais. Esse papel é justamente dos acordos bilaterais e plurilaterais. O que estava acontecendo – e isso é preocupante – é que nas duas últimas décadas o sistema multilateral não estava negociando nada, criando-se uma distância muito grande entre a base multilateral e a fronteira dos acordos bilaterais. O sistema multilateral ainda tinha por base os anos 1980, quando nem existia comércio eletrônico, e a China, que hoje é o maior exportador mundial, ocupava o 11º lugar. Era um mundo completamente diferente do atual. Temos de avançar no sistema multilateral para diminuir essa defasagem.
DINHEIRO – A configuração do comércio em grandes blocos não deixa os países menores mais fragilizados, fora do comércio?
AZEVÊDO – Sim, porque eles estão fora da formação da agenda. Quem faz a agenda bilateral são as grandes economias, que têm mercado atraente. Já os mercados pequenos, menos atraentes, são os mais prejudicados, porque ficam de fora do processo de avanço das regras.
DINHEIRO – É preocupante a situação desses países em desenvolvimento, com essa nova configuração?
AZEVÊDO – Quanto menor o país, mais difícil de participar desses processos.
DINHEIRO – Como fica o Brasil nesse cenário de formação de grandes blocos?
AZEVÊDO – É uma decisão do governo brasileiro.
DINHEIRO – A Rodada de Doha não tinha a função de mudar essa situação, privilegiando os países em desenvolvimento?
AZEVÊDO – A Rodada de Doha buscava uniformizar e nivelar as condições de jogo. E isso continua. O que vamos fazer agora é ver como conseguimos avançar nesses temas. Bali não é o fim, mas o começo do caminho. Nossa esperança é avançar com os acordos multilaterais daqui para a frente.