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segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Antonio Riserio: entrevista sobre o seu livro sobre a fantasia fascista da esquerda identitária

Grato a Hugo Rogelio Suppo pelo envio desta entrevista.
Paulo Roberto de Almeida

ENTREVISTA A LUCIANO TRIGO A PARTIR DO MEU LIVRO “SOBRE O RELATIVISMO PÓS-MODERNO E A FANTASIA FASCISTA DA ESQUERDA IDENTITÁRIA”.
P: Você faz uma analogia entre as patrulhas ideológicas dos anos 70 e o que chama de comportamento fascista da esquerda identitária dos dias atuais. O que aproxima e o que diferencia os dois fenômenos?

R: Penso que há duas diferenças básicas: a diferença mental e a diferença comportamental. A diferença mental diz respeito ao seguinte: apesar do sectarismo e da estreiteza política e cultural, aqueles esquerdistas das patrulhas ideológicas ainda tinham uma visão de conjunto da sociedade que pretendiam mudar. Hoje, não: os identitários não têm uma percepção global da sociedade. Só sabem ver baias, guetos, nichos, escaninhos. Perderam a percepção da totalidade. Pensam e operam de forma fragmentária, canonizando seus próprios guetos. Suas reivindicações não levam em conta a população brasileira, mas apenas os desejos e interesses deles mesmos. Por exemplo: os neonegros se conduzem como se o problema do desemprego não fosse social, mas étnico; as neofeministas, por sua vez, se conduzem como se todo problema trabalhista fosse sexual. Não estão nem aí para o fato de o desemprego ser um problema geral da população brasileira. Já no plano comportamental, a diferença está no grau de violência. O grau de violência das patrulhas ideológicas era relativamente baixo. Mas as milícias identitárias são brutais, truculentas. O que aproxima as antigas patrulhas e as atuais milícias é a intolerância. Com a diferença de que os identitários levam essa intolerância ao extremo. Se tivessem poder, promoveriam banimentos e fuzilamentos. Digamos, por assim dizer, que as patrulhas eram fascistoides, ao passo que os identitários são fascistas de cabo a rabo, fascistas totais.

P: Você escreve que a esquerda identitária se sente moralmente superior aos mortais comuns, mas também que ela promove a "politização do ressentimento". De que forma essa esquerda capitaliza o ressentimento de determinados grupos?

R: Eles se veem como a própria encarnação do Bem. Comportam-se como se o “oprimido” fosse, apenas por ser “oprimido”, um ente sagrado, moralmente superior. Mais: o “oprimido”, só por ser “oprimido”, é o portador da verdade, do sentido e do destino histórico da humanidade. Ora, quem se vê assim, não tem o que aprender no mundo. Daí que a esta autoconsagração se alie a mais rude ignorância – ignorância filosófica, histórica, estética, política, cultural. O militante identitário, regra geral, é um obtuso, incapaz de enxergar um palmo além do seu nariz ou do seu quintal. Daí que, quando questionados mais seriamente, reajam não com argumentos, mas com xingamentos e ataques histéricos, acusando quem os questiona de canalha, desonesto, fascista, machista, escória moral da espécie humana, etc. Ou seja: não estão interessados em nenhum conversa; trata-se apenas de calar e asfixiar qualquer discordância, qualquer dissenso, qualquer dissidência. E fazem isso reunidos em bandos, em “coletivos” que, na verdade, não passam de milícias. E o mais curioso é que adotam essa postura moral justamente para atropelar raivosamente os mais elementares princípios éticos. Veja então qual é a estratégia discursiva do identitário: a afirmação de “status” através da afirmação da inferioridade social. É a sua autodefinição como “excluído” ou “oprimido”que lhe confere “status”. Ou seja: a autovitimização é um atalho para a autonobilitação na figura sofrida e heroica do “oprimido”, que agora veio cobrar a conta do “Ocidente Branco”. Até parece coisa de desenho animado. De certa forma, havia algo disso já na esquerda tradicional, num certo endeusamento do proletariado, contrariando, nesse caso, a visão do próprio Marx (em “A Ideologia Alemã”, por exemplo) ou mesmo a de Trótski, em “Literatura e Revolução”. A diferença é que a esquerda tradicional endeusava o proletariado, enquanto os identitários endeusam-se a si próprios.

P: A destruição de reputações com base em acusações levianas de racismo, homofobia ou misoginia vem se tornando um fenômeno frequente e assustador. A que interesses atendem as pessoas que se unem nas redes sociais para destruir o outro, sem medir consequências, em um verdadeiro tribunal inquisitorial? Não é paradoxal que essa prática venha ancorada em um discurso de defesa da tolerância?

R: Vamos caminhar com vagar. Os identitários acham que são donos absolutos da verdade, que são moralmente superiores ao resto da espécie humana e querem dominar o mundo. Ora, quando uma pessoa é capaz de chegar ao ponto de se convencer de uma coisa dessas, ela se converte em fanática. É isso o que está acontecendo à nossa volta, e já há algum tempo, com nossos políticos, artistas, intelectuais, salvo exceções realmente honrosas, apoiando ou fazendo vista grossa para o fato E o fanatismo se guia por uma perversão lógica tão insustentável quanto inflexível, tão patológica quanto implacável. Acha que vale tudo. Que tudo é legítimo para impor o “bem” e destruir o “mal”. É uma postura imediatamente comparável à dos evangélicos combatendo o candomblé. E é por isso mesmo que os identitários não demonstram a mínima hesitação em falsificar a história, em desprezar a realidade factual, em investir violenta e mentirosamente sobre quem não concorda com eles. Podemos listar facilmente exemplos de cada uma dessas coisas. Veja-se como os racialistas neonegros fecham os olhos para o fato dos negros de Palmares e dos negros malês terem sido escravistas. Fecham os olhos para o fato de que, no sistema escravista brasileiro, até escravos compravam escravos. Do mesmo modo, as neofeministas se concentram exclusivamente no ataque a um Ocidente que não mais existe: um Ocidente “patriarcal”. E não dizem nada sobre o resto do mundo: fecham os olhos para a barra pesada que as mulheres sofrem sob a opressão islâmica; fecham os olhos para a prática da extração do clitóris em culturas tradicionais africanas; fecham os olhos para a cruel dominação masculina sobre as mulheres que vemos no mundo indiano e mesmo ainda no mundo chinês. E assim por diante. É por isso mesmo que Camile Paglia diz que os identitários deveriam ser obrigados a ter cursos de história comparada – e também, acrescento, de antropologia e sociologia de sociedades e culturas extraocidentais. Se tivessem um mínimo de noção disso, saberiam que a escravidão não é um karma branco, mas um karma da humanidade. Assim como não dariam atestados de estupidez ao considerar que hoje a mulher é mais oprimida no Ocidente do que em sociedades muçulmanas, por exemplo. Mesmo em nossa antiga sociedade tupinambá, onde desfrutavam temporariamente de alguma liberdade sexual, as mulheres eram mercadoria, moedas de troca, dadas de presente a chefes e guerreiros – e, enquanto um homem podia ter várias mulheres, a mulher que cometesse adultério podia ser punida com a morte. Como os identitários se recusam a ver essas coisas, agridem e execram quem quer que chame a atenção para elas. Na verdade, para lembrar aquele slogam da polícia novaiorquina, a política deles é de “tolerância zero”.

P: Por medo, covardia ou complacência, são raríssimos os intelectuais que ousam criticar a perseguição promovida por essas novas milícias, na universidade e fora dela. Como romper essa espiral de silêncio?

AR: O silêncio e a covardia dos políticos são atestados de cinismo, evidentemente, mas também é até mais compreensível do que o silêncio e a covardia dos intelectuais, já que o cinismo é uma das peças principais da “caixa de mágica” deles. Os intelectuais, ao contrário e ao menos em princípio, deveriam se manifestar com clareza contra o fascismo identitário e suas ações persecutórias. Mas essa história do “em princípio” dificilmente é confirmada pelos fatos. Renato Janine Ribeiro e outros intelectuais “de esquerda” falaram do fascismo de direita tentando impedir e impedindo pessoas críticas ao atual governo de falarem em feiras literárias como a de Paraty, que hoje mais sugerem arraiais juninos do identitarismo. Mas eles silenciam quando a mesma coisa é feita pela esquerda. E olha que a esquerda identitária começou a fazer isso bem antes, entre nós. Já em 2013, na feira literária de Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, não deixaram o geógrafo Demétrio Magnoli falar, atirando inclusive uma cabeça de porco ensanguentada em direção à mesa de onde ele falaria e praticamente o expulsando da cidade. É hilário, mas, apesar de Stálin-Mao Zedong-Pol Pot, a esquerda encena a farsa de que se acha imune ao fascismo. É muito cinismo, também. Quando ouço ou vejo essas coisas, não resisto e acabo lembrando a seguinte história. Em 1932, na Alemanha, Adolf Hitler lançou sua candidatura a chanceler. Em oposição a ele, a chamada “coalizão de Weimar” (reunindo sociais democratas, católicos e liberais) apoiou a tentativa de reeleição do marechal Hindenburg. E os comunistas lançaram candidato próprio. A parada ficou para ser decidida então no segundo turno, entre Hitler e Hindenburg. Neste segundo turno, os comunistas votaram maciçamente em Hitler. Adiante, como sempre me lembra um amigo, o Pacto Molotov-Ribentrop consagrou o parentesco entre os dois totalitarismos... No meu livro, digo que os stalinistas que levaram Maiakóvski ao suicídio são monstruosamente idênticos aos nazistas que levaram Benjamin ao suicídio. E ponto final. Agora, como romper a “espiral do silêncio”? Entrando em campo com clareza e firmeza, sem abrir mão dos fatos, sem temor, botando os pingos nos ii. Não se faz isso porque, ao contrário do que nossos professores querem nos fazer crer, a covardia intelectual é coisa mais do que comum, coisa rotineira mesmo, no dia a dia do ambiente acadêmico.

P: Você não tem receio de se tornar vítima de um linchamento por parte daqueles que detêm o virtual monopólio da fala na academia? Em outras palavras, não teme se tornar mais um alvo do fenômeno que seu livro denuncia?

R: Não, não tenho medo de nada. E essa gente já me xinga de todo jeito, sempre que tem oportunidade. Me chamam de canalha, fascista, racista, etc. Eles fazem de tudo para me intimidar, me silenciar. Na Bahia, onde moro, não só os identitários, o PT me cerca, me ameaça, me fecha todas as portas, complicando muito, inclusive, minha sobrevivência material. Cheguei a ser colunista de um jornal lá e o governo petista, que controla tudo na província com os mesmos métodos de Antonio Carlos Magalhães, exigiu minha demissão. Deixei de escrever no jornal, na imprensa local. Mas não adianta. Não vou parar de pensar, nem de dizer o que penso. No meu doce exílio na Ilha de Itaparica, sob os signos de José de Anchieta e do meu amigo João Ubaldo Ribeiro, montei uma plataforma de lançamento de mísseis político-culturais. E não vou parar de lançá-los. Esta é, na verdade, minha principal diferença com meu amigo Francisco Bosco, autor de “A Vítima Tem Sempre Razão?”. Bosco, no fundo, tem um pé plantado fundo no identitarismo. Parece mesmo acreditar na legitimidade intelectual e política do binarismo maniqueísta. Quer convencer identitários e trazê-los a outro aprisco, num horizonte mais moderado. É uma coisa de aparar arestas e promover a conciliação. Não acredito nisso. Não acredito que seja possível reconverter fanático. E não escrevo com essa intenção. Eles são irrecuperáveis. Logo, vou para a guerra. Não escrevo para eles, mas para o conjunto da sociedade, que é onde eles podem ser derrotados.

P: Você afirma que o sistema educacional brasileiro se tornou uma fábrica de ignorância. Por quê?

R: É uma constatação. Só. Antigamente, a gente dizia que era preciso ensinar os analfabetos a ler e escrever. Hoje, podemos dizer que é preciso ensinar os universitários (e professores universitários) a ler e escrever. É tão simples assim.

P: Você acredita que artistas de esquerda foram cooptados por um projeto de poder em troca da dependência crescente de recursos públicos? Fale sobre isso. Você concorda com a frase de Millôr Fernandes que recomenda desconfiarmos do idealista que lucra com seu ideal?

R: É impressionante a atração da “classe artística” (de direita, de centro, de esquerda, de tudo) por dinheiros estatais. Querem que o governo – vale dizer, o país, a sociedade – financiem todas as suas fantasias. Pensam que o Estado é uma vaca e que deve assegurar-lhes o direito de, sempre que desejarem, entrar no curral para ordenhá-la. De um modo geral, dá vontade de repetir para essa gente, ligeiramente alterada, a célebre frase de John Kennedy: não pergunte o que o Estado pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo Brasil... Mas isso não foi – nem precisa ser – sempre assim. Para não recuar muito na história, podemos nos limitar à segunda metade do século XX. A bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo e o tropicalismo – vale dizer, nossas maiores e mais brilhantes criações estético-culturais – aconteceram sem editais, sem patrocínio oficial, sem leis de incentivo. E dou também um pequeno, recente e bem significativo exemplo. Quando Ana de Holanda era ministra da Cultura, seu irmão Chico Buarque decidiu corretamente que não seria recomendável buscar patrocínio do MinC. Percorreu o país inteiro com um belo show, sem qualquer incentivo fiscal do Estado. Um outro aspecto, que acho de alta relevância: desenvolver políticas públicas para a cultura, no Brasil, não significa bancar uma clientela preferencial, financiar artistas e intelectuais. Atuando na esfera da administração pública na Bahia, por exemplo, criei e coordenei um programa de preservação da integridade territorial e física dos terreiros de candomblé. Mais tarde, entre Brasília e São Paulo, formulei o projeto geral para a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Além disso, boa parte dos órgãos públicos “de cultura” hoje, no Brasil, vai derrapando solenemente na maionese identitária: o que importa não é a qualidade do que se faz, mas a ação afirmativa. Ou seja, para lembrar uma expressão perfeita da socióloga Lúcia Lippi, caíram no conto do vigário da “institucionalização da compaixão”.

P: Os movimentos em defesa das minorias começaram para defender a diferença, a "outridade". Como foi possível que esses movimentos se tenham tornado tão intolerantes com a divergência? A que fatores você atribui esse processo, resumidamente?
R: O melhor é recontar a história porque aí a deformação identitária vira fratura exposta. Esses movimentos (gays, mulheres, pretos, etc.) surgiram ou ressurgiram ao longo da década de 1970, no horizonte de nossa luta geral pela reconquista da democracia no Brasil. Todas essas movimentações (na época, “de minorias”; hoje, identitárias) se projetaram então, ganharam visibilidade política e social, no contexto da luta em defesa do outro. Da luta pelo reconhecimento do outro, pelo respeito ao outro. Foi o momento maior, pelo menos em nossa história recente, de defesa e afirmação da outridade. Agora, aí vem a contradição: vitoriosos em nome do reconhecimento do outro, a primeira coisa que esses identitários fizeram, ao se afirmarem vitoriosamente na cena brasileira, foi justamente negar e combater o outro. Promover um ataque feroz e sem tréguas à outridade. Assim, negros (fenotípicos ou simbólicos) não querem saber de conversa com não-negros. Mulheres (heterossexuais ou lésbicas), desde que “radfems”, não querem saber de homens palpitando em assuntos femininos. Etc. O que começou como uma luta pelo reconhecimento do outro termina agora como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade. É uma negação muito estranha, mas que deve ser entendida também como a luta por um monopólio da fala que se traduz, objetivamente, em reserva de mercado: só negros podem falar de assuntos negros; só mulheres podem abordar questões femininas. É a guetificação e a celebração da guetificação, inclusive porque isso assegura verbas, fontes de financiamento, controle político-ideológico, etc. Toma-se então o outro, caricaturalmente, como inimigo. E assim as movimentações se encorpam numericamente, ampliando o número de seus fiéis. Claro: sabemos muito bem que o caminho mais curto para conquistar a massa não é o da complexidade, das nuances, dos matizes enriquecedores. É o caminho do binarismo maniqueísta, que gera leituras tão fáceis quanto falsas da realidade envolvente.
P: De forma sintética, quais são as suas críticas ao "racialismo neonegro"?
R: O problema principal do nosso racialismo neonegro é pretender substituir a experiência histórica e social de um povo pela experiência histórica e social de outro povo. E assim substituem a formação histórico-social brasileira pela norte-americana, numa típica conduta de colonizados. Nossos processos configuradores são totalmente distintos. Além disso, em matéria de relações interraciais, os Estados Unidos não são exemplo nenhum para o mundo. Muito pelo contrário, são uma anomalia planetária: o único país do mundo a não reconhecer oficialmente a existência de mestiços de branco e preto. Outra coisa é que nossos racialistas fecham os olhos para a realidade do assassinato espiritual do negro africano nos Estados Unidos, sob a poderosíssima pressão do poder puritano branco. Tanto que lá inexistiam orixás, terreiros, babalaôs, etc., até que eles começaram a chegar pelas migrações antilhanas, pela perseguição à “santería” cubana, promovida por Fidel Castro. No Brasil, religião negra é candomblé. Nos Estados Unidos, é a variante negra do protestantismo branco. Martinho Lutero (em inglês, Martim Luther) King era um pastor evangélico, não um babalorixá. Sempre digo que, se tivesse acontecido, no Brasil e em Cuba, o que aconteceu nos Estados Unidos e na Argentina, não teríamos hoje um só deus africano, um só orixá, em toda a extensão continental das Américas... Outra coisa é que os racialistas neonegros idealizam ao extremo a tal da “Mama África”. Daí, ficam surpresos quando dão de cara com a realidade mais ostensiva atualmente de países como a Nigéria e Angola, que é a realidade da exploração do negro pelo negro. A África Negra se tornou um rosário de ditaduras corruptas, com elites negras multimilionárias e o povo negro na miséria. Nossas feministas neonegras também fecham os olhos para um aspecto essencial da vida de Ginga, a rainha de Matamba, que não só tinha escravas pretas, como as usava como poltronas, sentando-se durante horas sobre seus dorsos nus, enquanto fazia tratativas políticas, comerciais ou militares. Apenas para tocar mais uma tecla, nossos neonegros, que são todos variavelmente mulatos, ficam perplexos, quando tomam conhecimento do fortíssimo preconceito contra os mulatos que vigora em boa parte da África Negra. Costumo observar que Barack Obama jamais ganharia uma eleição na Nigéria ou em Angola: seria rejeitado pelas massas negras pelo simples fato de não ser preto, mas mulato. Aliás, em Angola, os mulatos são tratados pejorativamente como “latons”. Bem, “latons” é como seriam classificadas por lá figuras como Nei Lopes, por exemplo. E “latonas” são, na terminologia popular dos pretos angolanos, Camila Pitanga e Thaís Araújo.
P: O feminismo estaria passando pelo mesmo processo de cooptação política e sectarização?
R: O feminismo contracultural de Betty Freedan, Germaine Greer e Gloria Steinen degringolou no neofeminismo puritano-fanático de Andrea Dworkin e similares. Elas assumiram um discurso maluco que abole totalmente a história. Imaginam um estupro original, ocorrido às primeiras luzes da história da espécie e congelam tudo aí: acreditam que aquele suposto estupro pré-histórico se repete sempre, até aos dias atuais, sempre que um homem e uma mulher vão para a cama. Qualquer relação heterossexual é colocada então sob suspeita. Catherine Deneuve e algumas intelectuais e artistas francesas reagiram contra isso, defendendo o livre exercício da sexualidade e condenando o neofeminismo norte-americano que trata o homem como inimigo. E outra mulher, Camile Paglia, definiu bem: essas neofeministas são puritanas fanáticas. Como se não bastasse, também muitas neofeministas se fazem de cegas, a depender da conveniência. Veja-se o caso do “black panther” Eldridge Cleaver, relatado por ele mesmo em seu livro “Soul on Ice”. Cleaver conta aí que estuprou uma mulher branca como “um ato de insurreição”, a fim de “sujar” as mulheres do homem branco. Mais ainda: Cleaver escreve, com a maior tranquilidade do mundo, que, antes de estuprar brancas, treinou no gueto, currando pretas pobres! E as neofeministas nunca disseram nada sobre isso. Nem contra o estupro, nem contra o racismo de Cleaver diante das moças pobres do gueto. Angela Davis preferiu não tocar no assunto. É impressionante. E mostra a que ponto as coisas podem chegar: identitários não condenam crimes cometidos por identitários. É uma noção muito estranha de justiça.
P: Que avaliação você faz das políticas de cotas e dos movimentos de ação afirmativa, como conceito e como resultados práticos? As cotas alimentam o vitimismo? O que pensa do conceito de "dívida histórica"?
R: Não acho que cotas sejam realmente necessárias e digo isso a partir da realidade dos asiáticos e seus descentes na sociedade brasileira. Não existem cotas para “amarelos”. No entanto, a ascensão social dos amarelos, no Brasil, é um fato notável. Mas, se querem implantar políticas de cotas, elas não devem ser étnicas, raciais. A razão é simples. Nem todo preto é pobre, nem todo pobre é preto. No Brasil, há pobres de todas as cores. Entre numa favela em Santa Catarina que isso fica bem explícito. E penso que não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas um determinado segmento étnico. Isso não tem nada a ver com democracia ou justiça social. Então, se é para ter cotas, que elas não sejam simplesmente “étnicas”, mas sociais. Agora, essa conversa de “dívida histórica” é picaretagem. Se quiserem, comecem a cobrar, primeiramente, da classe dominante negra lá na África, que encheu as burras com sua participação decisiva no tráfico de escravos. Os nagôs e os orixás só foram parar na Bahia porque foram derrotados em guerras contra os daomeanos, sendo então escravizados e vendidos para cá. Reis do Daomé chegaram, inclusive, a enviar embaixadas à Bahia, na tentativa de assegurar para eles o monopólio da venda de escravos para os baianos. Agora, até hoje, as classes dominantes na África Negra gostam de fazer esse truque, de enganar o povo, dizendo que todos eles foram vítimas do “homem branco”. É mentira. Recorrem a esse expediente de botar tudo na conta da “exploração branca” a fim de esconder a exploração a que elas mesmas submeteram (e ainda hoje submetem) os povos negros. As classes dominantes negras não foram vítimas, foram sócias dos brancos no comércio transatlântico de carne humana.
P: Que análise você faz das políticas públicas racialistas promovidas pelos governos de FHC e Lula? De que forma elas contribuíram para o fortalecimento do que você chama de fascismo identitário?
R: A minha impressão é que eles não entenderam bem ou não prestaram a devida atenção, lá no início, no que estava começando a acontecer. Nem pensaram nas consequências de muitas coisas. De Sarney a Lula, porque a política racialista de caráter “compensatório” começa com Sarney e ganha extrema visibilidade com a criação da Fundação Palmares, que foi a entidade que, com seus procedimentos enviesados, criou mais quilombos no Brasil do que Zumbi seria capaz de sonhar. Fernando Henrique não se tocou com a grande deformação pedagógica realizada sob seu nariz, com a gravação de uma contra-história esquerdista do Brasil, invertendo tudo da primeira história oficial de Varnhagen e companheiros, nos parâmetros curriculares do ensino. No caso de Lula e do PT, penso o seguinte. Lula, Dirceu, etc., estavam concentrados em política e em caminhos para chegar ao poder. Não tinham qualquer interesse específico ou especial em discursos de “minorias”, como então se dizia. Eles apenas abrigaram essas minorias no partido e deixaram que elas se movessem por conta própria. Como não tinham tempo ou disposição para discutir seus discursos, tomaram uma atitude curiosa: sacralizaram os discursos dos “oprimidos”. Dentro do PT, tudo que índio, preto, veado ou mulher dissesse, não se discutia. O negócio era celebrar os oprimidos, dar voz aos que nunca tiveram voz, etc. E isso está mesmo na base da formação do fascismo identitário.
P: Que caminhos você visualiza para que a sociedade brasileira saia desse apartheid maniqueísta e dessa guerra de narrativas que nos divide a ponto de rompermos relações com amigos e familiares?
R: Temos a polarização político-ideológica e as polarizações identitárias. No primeiro caso, só há uma saída. Deixar petistas e bolsonaristas de parte – e partir para fortalecer o campo democrático. O problema é que esse próprio “campo democrático” não parece realmente disposto a fazer isso, no sentido simples de que, na prática, se recusa a empreender uma releitura crítica rigorosa de sua trajetória e do entendimento do processo que veio das manifestações de junho de 2013 à vitória eleitoral da extrema direita na eleição presidencial de 2018. No segundo caso, é preciso dessacralizar os identitários. Desmantelar aura e auréola de vítimas e mártires que pretendem se colocar acima de tudo, como juízes e algozes implacáveis das coisas da vida e do mundo. Combater seus “tribalismos”, sua glorificação do gueto, seus expedientes fascistas. Deixemos de parte as exacerbações particularistas, setoriais, e vamos voltar a nos mover no campo da maioria, nas águas mais vivas do conjunto da sociedade brasileira. O que digo é isso: precisamos superar o “apartheid” identitário e reencontrar a democracia. Em todos os campos do pensar, do sonhar, do imaginar e do fazer.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

A cultura da esquerda: Sete pecados que atrapalham seu desenvolvimento - Paulo Roberto de Almeida (2005)


A cultura da esquerda
Sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento

Paulo Roberto de Almeida
(texto de 2005)
  
Prólogo necessário:
Faço parte daquilo que poderia ser classificado, à falta de melhor definição, como “cultura de esquerda”, algo suficientemente disseminado no Brasil para desobrigar-me aqui de maiores elaborações sobre seu conteúdo específico. Talvez eu devesse dizer que pertenço hoje bem mais à “cultura” do que à “esquerda”, et pour cause: adjetivos desse tipo, one-sided, são em geral reducionistas ou simplificadores e os maniqueísmos que usamos na vida corrente não estão adaptados aos matizes da realidade e a uma visão abrangente dos processos sociais, sempre complexos em sua totalidade. Dicotomias como “esquerda” e “direita” são partes de um todo, mas relutam em abrigar as particularidades que não se encaixam em seus moldes pré-concebidos.
Sem maiores considerações terminológicas ou metodológicas, pretendo listar e em seguida discorrer sobre o que considero serem os sete grandes pecados da cultura da esquerda, características pouco defensáveis e que parecem atrapalhar sobremaneira seu desenvolvimento e sucesso público. Alguns desses pecados são “veniais”, como a visão popularesca da cultura e da vida social, outros são “mortais”, como a ojeriza ao mercado ou a objeção à democracia simplesmente formal, mas todos eles me aparecem como “inutilidades históricas” ou “relíquias bárbaras” que já deveriam ter desaparecido do discurso da esquerda, se é verdade que ela pretende se colocar como alternativa credível de poder e de administração pública.
Quais são, afinal, esses “pecados dialéticos” que afligem a esquerda, no Brasil e no mundo? Listei apenas sete, como os sete pecados capitais, mas eles poderiam ser mais. Contentei-me, no momento, com estes sete, mas aceito sugestões “amplificadoras”.

1. A esquerda é estupidamente antimercado.
2. Ela é (falsamente) igualitarista.
3. Ela se posiciona contra a “democracia formal”, preferindo a “democracia real”.
4. A esquerda é geralmente estatizante (o que é, realmente, uma pena).
5. Ela é anti-individualista, preferindo os “direitos coletivos”.
6. Ela é tristemente populista e popularesca.
7. Também costuma ser voluntarista e anti-racionalista.

Voilà: feita a listagem dos pecados “dialéticos” que julgo identificar na esquerda, certamente atribuídos a uma história de lutas que remonta ao século XIX (mas que ela se esqueceu de atualizar para nossos tempos de globalização), vejamos como explicar cada um deles e, quiçá, contribuir para sua superação.

1. Antimercado.
Eu disse que a esquerda é “estupidamente” antimercado, e tenho, infelizmente, de reforçar o adjetivo estúpido, pois isso constitui um flagrante atestado de incoerência e de irracionalidade da parte de um grupo que, supostamente, cultiva as boas virtudes do método dialético. Trata-se, porém, de uma atitude muito frequente no meio acadêmico e comum às várias vertentes do movimento. Ela deriva de um preconceito original, filiado geneticamente ao velho barbudo, mas que sempre constituiu o mais grave pecado que prejudicou terrivelmente a carreira da esquerda em todo o mundo. Suas consequências foram verdadeiramente trágicas, pois que não apenas redundaram em inúteis sofrimentos sociais, incompreensíveis inconsistências econômicas, além de catastróficos atentados aos direitos humanos nos vários países nos quais experimentos de esquerda tentaram “corrigir” as chamadas “insuficiências do mercado”, como elas continuam a obstaculizar os progressos da esquerda em direção a uma administração mais racional das “coisas”.
Mercados (e moedas) são antiquíssimas instituições humanas – ou melhor, “societais” – que muito contribuíram para “empurrar” as sociedades a patamares mais avançados de organização social da produção e de distribuição de bens e serviços. São não apenas indispensáveis como insubstituíveis, já que permitem operacionalizar, na prática, a velha lei da oferta e da procura, sinalizando o encontro de produtores e de consumidores, mediante esta outra instituição intangível, mas tremendamente real, que se chama “preço”. A esquerda pode até não gostar da lei da oferta e da procura, mas ela não tem o direito de negar sua realidade social e sua validade histórica. Ela pode também achar que a sociedade estaria mais bem organizada segundo o princípio vagamente utópico que proclama, seguindo Marx na sua “Crítica ao Programa de Gotha” (da socialdemocracia alemã do século XIX), “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.
De fato, a ojeriza da esquerda contra os mercados deriva diretamente de Marx, pois ela não é típica de outras correntes socialistas (como as proudhonianas ou de autogestão, por exemplo), e provavelmente se explica pelos horrores da exploração do trabalho durante a primeira Revolução Industrial, dos quais Marx tinha conhecimento pela leitura de relatórios oficiais britânicos e pelo livro de seu amigo Engels sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra (não consta que ele jamais tenha adentrado numa fábrica). O pecado original está aí: Marx concluiu, de modo hegelianamente falso, que o vilão da história era essa instituição singular e onipresente chamada “mercado”, e não um fator real e diretamente responsável, chamado “mercado laboral”, então, e ali na Inglaterra, caracterizado pelo “excesso” de oferta de trabalhadores, o que deprimia o “preço de mercado” dos trabalhadores em questão. Concluindo pela perversidade natural dos mercados, Marx recomendou sua abolição, mas ele o fez de modo puramente teórico, sem maiores consequências para a humanidade. Em todo caso, mesmo em sua época, economistas como John Stuart Mill e Vilfredo Pareto já tinham criticado as posições de Marx sobre a “extração de mais-valia” como inexequíveis e irracionais, mas a esquerda se “esqueceu” de ler esses críticos do profeta maior.
As coisas se complicaram quando Lênin, um gênio em política mas um inculto em economia, resolveu concretizar as poucas idéias vagas de Marx sobre o funcionamento de uma “economia socialista”, na sua concepção podendo prescindir dos mercados. Não deu outra: foi um desastre completo, tanto que ele resolveu, rapidamente, voltar a aceitar o funcionamento parcial dos mercados, na chamada NEP, a “nova economia política”. Mas, mesmo nesse regime, as grandes fábricas foram nacionalizadas, burgueses e latifundiários foram devidamente expropriados e se começou a lançar as bases do “planejamento econômico socialista”, algo que Stalin aperfeiçoaria tremendamente alguns anos depois, com os custos humanos que se conhecem.
Desde o início, entretanto, um economista “liberal” como Ludwig Von Mises advertia para a impossibilidade de funcionamento de uma “economia socialista” naquelas bases, pela ausência do mecanismo absolutamente indispensável ao cálculo econômico: a fixação dos preços via mercado, ou seja, a velha lei da oferta e da procura. A esquerda também preferiu ignorar essas advertências e seguiu construindo o socialismo a seu risco e perigo. Deu no que deu: um imenso desperdício de “forças produtivas”, uma coerção absolutamente inimaginável, em termos históricos, das “relações de produção”, e uma ausência notável de progresso econômico sob aquele “modo de produção”, em virtude dos reduzidos (ou inexistentes) incentivos à inovação tecnológica, em vista da recusa de “riqueza proprietária” (ou de acumulação em bases individuais).
Podemos até compreender, e de certa forma aceitar, que tais erros tenham sido cometidos no passado, uma vez que até mesmo “engenheiros sociais” de espírito e vocação eminentemente capitalista (e até mesmo aristocrática), como Saint Simon por exemplo, puderam incorrer na ilusão de que mercados e sistemas produtivos pudessem ser organizados pelos homens de maneira mais “racional” do que aquela permitida pelo simples funcionamento da lei da oferta e da procura. O inacreditável é que, ainda hoje, pessoas que se consideram de esquerda – mantendo, portanto, certo comprometimento com o progresso social e o bem estar das pessoas – mantenham o preconceito totalmente equivocado contra o mercado alimentado pelos pais fundadores do marxismo. Marx certamente cometeu um erro, Lênin persistiu no equívoco e Stalin simplesmente acumulou crime sobre crime, ao pretender fundar uma nova economia na ausência total de mercado e de sinalização de preços. O fracasso só poderia ser completo.
Tanto isso é verdade que os primeiros experimentos de “reforma socialista”, no pós-Segunda Guerra, inspirados por economistas que tinham vivido sob o capitalismo como Oskar Lange, pretenderam introduzir mecanismos de mercado na “economia planejada”, voltando a utilizar os preços como sinalizadores do cálculo econômico. Não deu muito certo, nem naquela época, nem posteriormente, em tempos de glasnost e perestroika, uma vez que a autonomia operacional e gestora requerida pelos mercados, com livre disposição dos bens em função do custo de produção e apropriação de renda segundo as oportunidades de mercado, revelou-se incompatível com o monopólio partidário exercido por uma nomenklatura que se apropria do processo de decisão sem medir a raridade relativa dos fatores de produção e organizando ela mesma a distribuição, segundo critérios não econômicos de “mérito”.
Esse desastre conceitual se perpetua ainda hoje pelo simples fato de que os principais produtores e disseminadores de “conhecimento”, que são os professores da rede pública, em especial os universitários, mantêm a ilusão (e o autoengano) de viver à margem do mercado, pois que eles recebem sua paga independentemente dos seus níveis de produtividade relativa. Esta é uma das muitas distorções do serviço público, mas que sempre são sancionadas pelo mercado e pelos preços (neste caso indiretamente, via retorno social dos investimentos feitos ou gastos incorridos no sistema de ensino público), independentemente do que possam pensar tais “disseminadores” de cultura antimercado.
O preconceito da esquerda contra os mercados, e seus sinalizadores, pode até ser aceito no pequeno mundinho semi-produtivo da cultura universitária, mas ele se revela absolutamente catastrófico quando transmutado para o terreno das políticas públicas, em especial as de cunho diretamente econômico. A pretensão de certos intelectuais, em geral diretamente saídos do mundo universitário, de organizar a sociedade e a economia em bases “socialmente justas”, isto é, “corrigindo as imperfeições dos mercados”, traduziu-se em desastres incomensuráveis do ponto de vista da riqueza social, o que geralmente se refletiu na “desacumulação”, no “desinvestimento” e em manifestações mais prosaicas como fuga de capitais, alocação sub-ótima (senão totalmente errada) de recursos escassos e assistencialismo inconsequente do ponto de vista da produtividade do trabalho humano.
Os “intelectuais” que assim procedem pensam que seu trabalho de “planejador” é pago com “recursos públicos”, quando a única fonte de riqueza, em qualquer sociedade, é o trabalho diretamente produtivo dos agentes econômicos que possuem ou manipulam fatores de produção (e a administração estatal não é um deles, muito menos o ensino universitário, ainda que este possa contribuir para “acumular conhecimento”, base do progresso tecnológico). Em todas as instâncias de geração de riquezas, repito “em todas”, os mercados são absolutamente indispensáveis para o bom funcionamento do mecanismo econômico da sociedade. Pretender ignorá-los, e a seus sinalizadores imediatos que são os preços, constitui uma atividade de imenso risco social, como aliás já deveríamos ter descoberto aqui no Brasil. A esquerda precisaria refletir sobre isso.

2. Igualitarismo.
A esquerda é igualitarista, o que é compreensível: isso faz parte de seu credo evangelizador e legitima o discurso político pelo qual ela pretende conseguir adeptos e ter sucesso social. O mesmo ocorre com outros cultos ou mesmo religiões inteiras: pregar a simplicidade na vida, uma partilha equitativa dos bens e um usufruto razoavelmente equilibrado dos recursos disponíveis sempre soou como disposição de bom senso e de inegável mérito humanitário. Mas, e sempre tem um mas, existe um problema aqui: não existe almoço grátis, como reza uma velha arenga, e se você está se alimentando de graça é porque alguém está pagando por isso. Em outros termos, como não existe maná dos céus ou uma cornucópia infindável jorrando alimentos a partir do nada, os recursos escassos têm de ser organizados para servir a fins socialmente úteis.
A sociedade humana inventou uma outra instituição tão velha quanto os mercados e as moedas para tentar organizar essa escassez relativa: a propriedade. Ela é apropriada individualmente (sempre quando isso é possível) porque a fonte de toda a riqueza é o trabalho humano – como ensinavam Adam Smith e Marx – e se supõe que as instituições estatais (que também surgem muito cedo na história das sociedades) respeitem esse princípio da “acumulação individual”. Quando isso não ocorre é mais do que provável que não haverá um incentivo à acumulação e, portanto, ao aumento da riqueza social, com o que todos serão mais pobres, mas especialmente os mais pobres dentre os pobres, uma vez que os verdadeiramente ricos sempre distribuem um pouco de seu patrimônio em torno de si, sob a forma de trabalho doméstico e outros serviços “aliviadores” do seu próprio trabalho.
Mas eu disse que a esquerda é falsamente igualitarista porque não conheço, em qualquer parte do mundo, uma sociedade que tenha conduzido um experimento inovador de igualitarismo radical. Aceitando-se que alguns possam dispor de bens sem qualquer correspondência com sua contribuição efetiva para a criação da riqueza que os sustenta, como todas as sociedades socialistas admitem, tem-se que existe uma igualdade para os simples iguais e um pouco menos de igualdade para os “mais iguais”. Admitamos que estes sejam “detalhes” numa situação distributiva bem mais complexa e tratemos daquilo que incomoda realmente a esquerda: o excesso de desigualdade distributiva e os absurdos da ostentação social de riqueza, por um punhado de ricos, entenda-se, numa situação de relativa penúria para a maior parte da sociedade.
Essa situação realmente existe e sua origem é geralmente atribuída, pela esquerda, ao capitalismo, aos mercados, à apropriação individual de riquezas, ou a todos esses fatores reunidos. Passemos por cima da tremenda simplificação que significa equacionar capitalismo a mercados, quando o primeiro convive com os mais diferentes tipos de mercados e se puder tenta contornar e conformar os mercados segundo seus gostos e preferências particulares (sempre no sentido da acumulação e da concentração). Existe, por certo, certa tensão entre “acumulação capitalista” e distribuição de riqueza, mas as relações causais entre uma e outra não são unívocas ou unidirecionais: um dos países nos quais é maior o crescimento das desigualdades distributivas é justamente a China atual, formalmente descrita como “socialista de mercado” ainda oficialmente comprometida com a igualdade de condições dos cidadãos. Devemos assim observar que os diferenciais mais gritantes de distribuição de riqueza geralmente são encontrados em sociedades muito pouco capitalistas pela sua organização e tradição e que as sociedades plenamente ou tipicamente capitalistas apresentam um perfil distributivo bem mais, arrisquemos a palavra, “igualitário”.
Isto se dá porque o capitalismo plenamente eficaz e funcional implica em relativa “anomia” dos mercados, isto é, total “anarquia” dos sistemas produtivos e distributivos. Em princípio, todos são livres para produzir e vender o que desejam fabricar e distribuir, nada se opondo à constituição de pequenas firmas ou grandes empresas que arriscam o patrimônio de seus proprietários (e os ativos de outros participantes, acionistas diretos ou investidores longínquos) no livre jogo da oferta e procura de bens e serviços, triunfando apenas o menor preço e a maior qualidade. Quando os mercados são verdadeiramente livres, o capitalismo exerce todas as suas qualidades de melhor sistema para criar e distribuir riquezas; quando eles, ao contrário, são pouco livres, até o capitalismo ostenta suas mais horrendas feições, sob a forma de cartéis e de monopólios que distorcem a concorrência e alimentam, aí sim, o mais iníquo dos perfis distributivos de riqueza (pois que baseado na exploração impiedosa daqueles que foram alijados do mercado por critérios outros que não os diretamente econômicos).
O problema da distribuição, que está na base das vocações (e das pretensões) supostamente igualitaristas da esquerda, deriva justamente do fato de que ela pode ser organizada em bases que não têm diretamente a ver com a dotação de fatores existentes num determinado sistema produtivo. Ou seja, havendo um Estado que atua como agente regulador e “distribuidor” de bens e serviços “públicos”, é muito provável que os atores estatais sejam tentados a organizar a distribuição desses bens, mesmo daqueles que não são necessariamente “públicos”, em bases “socialmente justas”, praticando um pouco de “Robin Hood” a serviço dos mais pobres. É até “normal” que isso ocorra e plenamente compreensível nos termos “morais” em que o assunto é colocado pelo discurso da esquerda (que nesse caso se confunde com as pregações religiosas de muitos cultos). O problema começa quando se passa do “fluxo” de riquezas para a gestão dos “estoques”.
Expliquemos mais um pouco, pois a esquerda tende geralmente a confundir fluxos com estoques. Os fluxos são constituídos por todo produto do trabalho humano, sendo tanto maiores quanto forem elevados os índices de produtividade desse trabalho. Já os estoques são simplesmente riqueza acumulada, ativos de diversos tipos em formas por vezes não diretamente líquidas, e que representam apropriação individual ou coletiva. Tanto fluxos como estoques variam tremendamente, entre as sociedades e dentro delas, dependendo da capacidade produtiva e da maior ou menor propensão a poupar dos agentes sociais (a poupança é uma atitude eminentemente individual, mas existem indutores estatais de poupança “compulsória”). A poupança e o investimento são dois elementos absolutamente indispensáveis ao crescimento da riqueza social, e sem eles simplesmente não haveria o que distribuir, pois que os estoques existentes seriam simplesmente dilapidados entre os atores do jogo social.
Um dos problemas da esquerda não é o de pretender ao igualitarismo social – o que poderia ser até perdoado on moral grounds –, mas é o de pretender fazê-lo atuando sobre os estoques existentes, em lugar dos fluxos continuamente criados para aumentar a riqueza disponível. A esquerda parece querer realmente ser “Robin Hood”, ou seja, tomar dos ricos para dar aos pobres, quando o que ela consegue fazer, por essa via, é incitar os ricos a esconder ou expatriar sua riqueza, diminuindo a poupança, ou os investimentos, e em geral a ambos, o que impede o aumento contínuo de riqueza social. Que o mundo seja injusto e desigual, isso é conhecido desde os tempos bíblicos e até antes disso. Que a correção dessa desigualdade – equiparada ou não a uma “injustiça social” – possa ser feita mediante repartição dos estoques existentes, significa que esse tipo de “engenharia social”, quando praticada, pode teoricamente acarretar outras injustiças individuais, irracionalidades econômicas e até mesmo certo grau de violência social.
A melhor forma de praticar “igualitarismo” é, portanto, atuar sobre os fluxos, isto é, fazer com que os atores sociais possam retirar o máximo de remuneração e de retorno social possíveis de suas atividades diretamente produtivas (também distributivas, isto é, nas áreas que têm a ver com a intermediação e os serviços, inclusive o ensino público). Isto geralmente consegue-se elevando os padrões de produtividade do trabalho humano, o que tem a ver com a capacitação educacional e profissional dos atores sociais. Daí se conclui que a melhor forma de se fazer uma distribuição “igualitária” das chances de sucesso social (e de acumulação de riqueza, portanto) seria via qualificação educacional de todos, segundo padrões universais (e mínimos, mas quanto maiores melhor) de ensino e de aprendizado técnico profissional. Isso se consegue por um ensino fundamental de boa qualidade, o que geralmente é admitido pela esquerda, mas apenas teoricamente, pois que ela prefere se dedicar ao ciclo universitário (que pode ser tudo num país, menos universal). Quando a esquerda admitir que a melhor forma de ajudar os “pobres”, no Brasil, seria praticando uma revolução educacional radical (mas isso deve ser feito essencialmente em favor dos mais pobres, que não passam do segundo ciclo), talvez possamos começar a pensar na diminuição dos níveis absurdamente altos (iníquos e imorais, em todos os planos) de concentração de riqueza em nosso país.

3. A esquerda é contra a democracia formal.
A esquerda sempre foi contra a “democracia burguesa”, por ela considerada como simplesmente formal, ou “vazia de conteúdo social”, com consequências trágicas para as liberdades em várias épocas e circunstâncias. O que ela pretende é uma “verdadeira” democracia, querendo com isso dizer que todos devem dispor de igualdade de chances, e de um patamar mínimo de subsistência, para exercer plenamente os “direitos políticos”.
Isto é um equívoco grave, pois é como se o conteúdo do regime político fizesse parte de seu “envelope” social. A democracia nada mais é do que um “método”, um conjunto de regras do jogo que se situa na esfera das relações sociais, mas que não podem determinar, essas mesmas regras, as formas pelas quais os membros da sociedade irão repartir as riquezas e administrar as competências individuais, na produção de bens e no seu consumo.
Em outros termos, a democracia não pode ultrapassar sua vocação original, que é a de simplesmente determinar como os cidadãos delegarão mandatos e poderes a seus representantes para o desempenho de funções administrativas (executivas e legislativas), técnicas (serviços públicos), corretivas (justiça) ou defensivas. Mas todas essas funções – e algumas outras não eventualmente compreendidas nessas acima – são meramente redistributivas de alguma riqueza previamente criada em outras esferas da vida social, e não podem, elas mesmas, criar riquezas para que a “democracia” as distribua. Isso é virtualmente impossível. Pretender o contrário seria pedir demais à democracia.
Por isso mesmo que a democracia deve permanecer formal, pois qualquer outra atribuição concreta e real, no plano das desigualdades distributivas, implicaria certo grau de “violência social” que comprometeria as bases do regime democrático. A esquerda deveria lutar para aperfeiçoar o regime democrático no plano da representação – não necessariamente de tipo corporativo – e no âmbito do controle dos recursos públicos (que são eminentemente “privados”, como já se esclareceu) que são colocados à disposição desses representantes para o desempenho de suas funções eminentemente políticas (e não econômicas).
Parece óbvio, por exemplo, que a democracia brasileira, plenamente existente no plano das instituições, é de “baixa qualidade”, seja no que se refere à representação – o que deriva da educação política da população –, seja no que se refere ao exercício mesmo das funções delegadas, muito pouco controladas pelo povo representado e, sobretudo, se prestando a diversos abusos de forma e de conteúdo (como o fato de que certos delegados do povo façam dessa representação um verdadeiro negócio privado). Quanto mais formal for a democracia brasileira, isto é, menos sujeita a injunções pessoais e idiossincrasias das corporações em que se organiza o Estado e mais atenta às regras da boa gestão pública, com controle social das funções delegadas, melhor será para a população.
A democracia brasileira não será mais ou menos “burguesa” se ela se apresentar como simplesmente “formal”, mas ela será de melhor qualidade se esse formalismo for capaz de diminuir ou simplesmente minimizar as demandas particularistas – seja da burguesia, do proletariado ou de qualquer outra categoria social – em direção de um sistema de organização política que pretende, meramente, dispor sobre as “regras do jogo” (na feliz definição de Norberto Bobbio), sem avançar na definição de “direitos sociais” ou “econômicos” que podem inviabilizar seu modo de funcionamento. A esquerda brasileira deveria parar de pretender atribuir rótulos à democracia e empenhar-se, tão simplesmente, em construir uma “boa democracia formal” em nosso país.

4. A esquerda é estatizante.
É realmente uma pena que assim ocorra, pois que o próprio Marx não era estatizante, pelo menos não no sentido finalista. Verdade que no Manifesto do Partido Comunista, texto que alguns consideram a “bíblia” do comunismo ideal – mas que não constituiu senão uma plataforma preliminar para a tomada do poder pelos trabalhadores, escrita muito rapidamente no início de 1848 para responder à onda revolucionária então em curso na Europa –, várias das medidas preconizadas “para os países mais avançados” comportam uma estatização integral de diversos setores da economia: sistema bancário, transportes, latifúndios e instrumentos de produção em geral. Tratava-se, contudo, de um programa imediato de correção das desigualdades sociais, não de uma proposta definitiva para a organização social da produção em regime socialista, já que logo em seguida se afirmava que “uma vez desaparecidas no curso do desenvolvimento as diferenças de classe e concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perde o seu caráter político”.
Marx certamente não era anarquista, mas ele via o Estado como um instrumento de dominação de classe, podendo, portanto, desaparecer uma vez superada essa situação, como registrado nos textos posteriores à Comuna de Paris. Ele pretendia mesmo, como confirmado por Lênin em uma de suas últimas obras “teóricas”, o fim do Estado e, na expressão de Engels, a “substituição do comando dos homens pela administração das coisas”. O Estado era visto por Marx e por Engels, como também (hipocritamente) por Lênin, como um mero expediente temporário, um “mal necessário” na transição para uma sociedade sem classes. Deixemos de lado essa pretendida (e ilusória) abolição da sociedade de classes, que acarretaria a consequente eliminação do Estado, para nos concentrarmos no seu papel econômico, que não é, obviamente, um simples comitê gestor dos negócios da burguesia, como está escrito no Manifesto.
Os socialistas marxistas partilham, de certa forma, da boutade de Proudhon, segundo a qual toda propriedade é um roubo. No sentido mais especificamente marxista, a eliminação da extração de mais valia e de sua apropriação individual pelo capitalista, por meio da revolução proletária, deveria resultar em uma gestão coletiva dos meios de produção, com uma administração igualmente coletiva dos mecanismos redistributivos. Ora, não há forma mais eficiente de fazê-lo, acredita a cultura de esquerda, do que pela intervenção direta do Estado, uma instituição que deveria ser colocada acima das classes e servir tão somente de instrumento temporário de redistribuição equânime de riquezas.
Por características próprias das sociedades modernas, o Estado acabou assumindo um papel econômico exagerado em relação aos velhos princípios da economia política de Adam Smith e do próprio Marx: guerras, revoluções e outros conflitos civis, e mais frequentemente crises financeiras e bancarrotas industriais, acompanhados ou não de ciclos econômicos depressivos, com alto desemprego e sofrimentos sociais, levaram o Estado a assumir um papel incomparavelmente maior do que o normalmente esperado numa economia de livre mercado. Por outro lado, a forma especificamente estatizante assumida pelo socialismo bolchevista, com a expropriação completa dos produtores privados e o desenvolvimento do planejamento centralizado, também contribuiu para essa concentração enorme de poderes econômicos nas mãos do Estado moderno, algo inédito, mesmo para os padrões dos antigos “despotismos orientais”.
Disso redundou que, durante todo o decorrer do século XX, tanto nas sociedades capitalistas como nas socialistas, o Estado assumiu um papel central na organização e na gestão de diversas atividades econômicas que, ainda que estivessem na esfera dos chamados “bens públicos” (serviços de infraestrutura e de comunicações são os mais típicos, mas educação e saúde também podem ser arroladas), poderiam ser fornecidas e garantidas em bases totalmente privadas, ou segundo a conhecida fórmula dos mercados regulados. Com efeito, não existe nenhuma razão racional, à exceção daqueles serviços de retorno difuso e contabilidade aleatória – como são as atividades de defesa e justiça –, pela qual a maior parte dos bens e serviços “públicos” não possa funcionar em bases de mercado: a demanda por determinados serviços, como se sabe, é desigual segundo as famílias e não há justificativa econômica, por exemplo, para que solteiros ou casais sem filhos paguem pela educação dos filhos de terceiros. O mesmo se aplicaria à saúde e à maior parte das chamadas public utilities: o critério de mercado é o que melhor se ajusta à alocação ótima de recursos segundo a demanda, evitando desperdícios indevidos que sempre vêm associados à chamada apropriação coletiva de serviço públicos.
Trata-se de uma posição absolutamente racional, suscetível de convencer aqueles que mais deveriam prestar atenção ao bom uso dos recursos públicos, de maneira a maximizar os ganhos de bem estar do conjunto da sociedade. Um Estado eficiente, bom gestor dos recursos que lhe são atribuídos pela sociedade – e sabe-se que esta possui um limite de tolerância para a imposição tributária –, estaria em melhores condições de prestar serviços aos verdadeiramente desprovidos de meios e condições de prover à sua própria subsistência, ou à educação e saúde dos familiares. Da mesma forma, uma gestão não estatal do sistema de previdência social poderia, provavelmente, obter melhores resultados em termos de retorno futuro, eventualmente sob a forma de contas individuais de capitalização das contribuições recolhidas, do que o atual sistema de fundos difusos, administrados na base do pay-as-you-go, que coloca todos os recursos nas contas globais do Estado, de onde eles saem segundo as necessidades momentâneas da administração em vigor.
O culto que a esquerda devota ao Estado, como provedor de “bens públicos”, é absolutamente antimarxista e, de toda forma irracional, pois que ele não foi feito para arcar com responsabilidades gestoras que têm uma dimensão própria e um modo peculiar de provimento, geralmente de cunho microeconômico (como são os “mercados” já referidos, segmentados segundo os usuários, forçosamente desiguais em suas demandas), e que nada têm a ver com suas funções típicas – legislativas, judiciárias ou de defesa nacional –, que seriam mais bem desempenhadas se o Estado a elas se dedicasse de maneira mais focada. A esquerda deveria refletir sobre essas realidades e revisar um pensamento já por si anacrônico e responsável, nos dias de hoje, por perdas sociais cumulativas, que só podem acarretar prejuízos para os mais pobres, como sempre ocorre.

5. A esquerda é anti-individualista.
Este é um axioma do pensamento da esquerda, pelo menos desde a Revolução Francesa, ou quiçá antes, desde alguns filósofos iluministas. Esta não é, obviamente, a tradição do liberalismo e do utilitarismo britânicos, dos iluministas escoceses e dos liberais ingleses. Karl Popper já tinha feito amplos esclarecimentos sobre algumas das raízes dessa tradição, que ele faz remontar a Platão e vem dar direto em Hegel e Marx no século XIX. A Revolução Francesa atravessa e alimenta essa corrente, de forma algo contraditória aliás, pois ela tinha começado por uma proclamação sobre os direitos do homem e do cidadão, de cunho absolutamente liberal e “burguês”. Mas a esquerda prefere apoiar a tradição termidoriana que se manifesta com clareza em Robespierre (seguido por Lênin quase que ipsis litteris). É a linha dos direitos coletivos, da “razão do Estado”, que vai resultar no Stato totale de Mussolini e outros (como Salazar, em Portugal, com seu “Estado novo”, e nossos autoritários caboclos, que o seguiram até meados do século XX pelo menos).
Antes disso, Lênin já tinha manifestado sua apreciação pelos métodos de “justiça expedita” seguidos por Robespierre. Homenageando a criação da polícia política do novo Estado bolchevique, ele dizia, sem hesitação: “Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia enquanto classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror Vermelho” (in Paul Johnson, Tempos Modernos. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998, p. 56). Em síntese, os direitos individuais devem se anular face aos “direitos coletivos” e a sociedade sempre tem preeminência em relação ao indivíduo.
O problema não é apenas filosófico ou moral, uma vez que ele tem consequências práticas, segundo o tipo de política pública privilegiada pelos indivíduos que ocupam temporariamente (por vezes de modo delongado) o Estado. A questão é claramente exemplificada pelo caso de Cuba, que constitui, como se sabe, um dos mais tradicionais bastiões de luta política da esquerda brasileira. A defesa da Revolução cubana se faz de modo integral, em bloco, sem distinguir os aspectos meritórios da luta anti-ditatorial conduzida por Fidel Castro e seus seguidores – contra um regime, o de Batista, enfeudado ao imperialismo americano e praticando uma política de entrega do interesse nacional –, de outros aspectos menos gloriosos, ligados à repressão política indefensável contra o direito dos cidadãos cubanos desenvolverem atividades econômicas privadas, de expressar opiniões diferentes das do partido único ou, simplesmente, de emigrarem, de acordo com sua consciência ou vontade própria.
O fato de alguns expoentes da esquerda brasileira terem justificado o julgamento sumário e o fuzilamento de indivíduos – que não eram sequer dissidentes políticos –, simples “candidatos” à emigração, não é apenas indefensável do ponto de vista político, mas é moralmente abjeto e condenável sob todos os critérios. A justificativa se fez, e se faz, a pretexto de “defesa da Revolução”, contra seus inimigos internos e externos, ou seja, os “direitos coletivos” da sociedade cubana – o que quer que isso queira dizer – devem se sobrepor aos direitos individuais dos cidadãos cubanos. Triste posição essa de expoentes da esquerda brasileira, denegando direitos humanos a indivíduos cubanos em nome de uma ideologia e de um movimento político.
Direitos coletivos constituem uma categoria especial de direitos, geralmente de natureza social ou econômica, que se somam, mas não substituem, os direitos individuais, que são inalienáveis, segundo as declarações universais subscritas pelo governo cubano, relativas ao direito à vida, à liberdade de pensamento e de circulação, inclusive o direito de dispor de sua residência. A defesa dos direitos individuais, mesmo contra o Estado, constitui um dos mais notáveis progressos da consciência coletiva e da própria humanidade; eles não são simplesmente ocidentais ou “burgueses”, mas são universais. Que novos direitos, de base coletiva, comunitária, étnica, social, econômica ou ambiental, venham se agregar aos direitos existentes trata-se de um progresso desejável, mas isto não pode se fazer em detrimento dos direitos naturais dos indivíduos.
A esquerda não pretende negar os direitos do homem e do cidadão, mas ela tende a defender, em primeiro lugar, a soberania dos Estados e, em segundo lugar (e a isso ligado), os direitos coletivos, que podem ser formulados de maneira a anular os direitos individuais. Os próprios acordos internacionais preveem, em alguns casos, a derrogação de alguns direitos, em caso de grave ameaça à segurança do Estado e à defesa nacional. Sabemos, pela experiência histórica, que essa invocação é muito facilmente feita pelas ditaduras, em casos nos quais os direitos individuais tentam se opor ao poder discricionário desses governos, que invocam a segurança do Estado ou algum outro “perigo público” para denegar a observância desses direitos. Trata-se de um claro retrocesso, que não poderia ser sancionado por qualquer movimento político que aspira ao direito de governar um país.
Dentre os direitos que não são derrogáveis, segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), estão o direito à vida, a prescrição da tortura, a não-sujeição à escravidão ou servidão, a prisão por dívida, a não-retroatividade penal, o direito de cada um ao reconhecimento de sua personalidade, bem como a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Que a igualdade, a solidariedade, a participação no bem-estar coletivo e outros direitos possam igualmente ser assegurados pelos Estados constitui, sem dúvida, um grande progresso no sentido da promoção de valores universais, mas essa promoção não pode se fazer em detrimento dos direitos individuais.

6. A esquerda é populista e popularesca.
Invariavelmente, os textos da esquerda, de natureza cultural ou mesmo política, estão repletos de frases derrogatórias das “elites” e valorizadoras das características do povo e da cultura popular. É de certa forma patético constatar isso, mas tudo o que vem da elite é considerado como intrinsecamente mau, ao passo que o que vem do povo é bom, por definição. Quando esse tipo de discurso vem das hostes da direita, é identificado com o chamado populismo e condenado de uma penada, sem apelação.
As culpas pelo nosso subdesenvolvimento material, as características perversas do modelo social brasileiro, a corrupção e o atraso são inevitavelmente atribuídos às elites e aos seus “500 anos de dominação”. De certa forma, isso encerra o discurso, pois que essas elites não são em geral definidas, nem identificadas em seu perfil próprio a cada época. Basta culpar as elites, elogiar as virtudes do povo e a “análise sociológica” está feita. De certa forma, o antropólogo Darcy Ribeiro foi um grande expoente desse tipo de pensamento, que passa por progressismo de esquerda.
Ao mesmo tempo, a esquerda não consegue perceber que ela também é de elite, ainda que não necessariamente do poder e do dinheiro. Elites sindicais, partidárias e intelectuais são tão elites quanto quaisquer outras, com amplo acesso aos meios de comunicação e, eventualmente, até aos círculos do poder, quando não conseguem, elas mesmas, assumir esse poder, como ocorreu em outubro de 2002. Recusar essa realidade é acreditar naquelas imagens que veem a elite como um gordo capitalista de cartola e charuto, sentado num monte de dinheiro, e achar que o povo é unicamente formado por aqueles trabalhadores de macacão com os quais a esquerda se identifica, mas, que de fato, esse povo não se reconhece nessa outra elite, a do pensamento.
A esquerda é dominante no establishment universitário, nos círculos culturais, nos meios de comunicação e em vários outros ambientes influentes na sociedade brasileira. Ela conforma, portanto, uma elite, no sentido pleno do termo. O fato da esquerda se recusar a ver a si mesma como elite, não lhe retira o caráter de elite, nem de fato, nem de direito. Sua identificação com o povo é meramente retórica, tão ou mais populista do que os discursos da direita que pretende encarnar o “verdadeiro espírito nacional”, geralmente centrista e conservador. Com efeito, o pensamento progressista, de esquerda, só existe numa fração esclarecida da população, geralmente da classe média para cima, no máximo entre alguns poucos membros da “aristocracia operária”, que também são a elite da classe trabalhadora.
De resto, a condenação genérica das elites pelo discurso de esquerda é hipócrita e mal informada, pois que não referida a uma elite concreta, mas sim a um simulacro de elite, que só existe no pensamento da esquerda. Da mesma forma, a exaltação dos valores do povo, de sua “genialidade” cultural e inventividade “natural”, soa como um escárnio, aliás uma verdadeira manifestação de elitismo cultural, pois que redundando, igualmente, numa aceitação acrítica e condescendente dos “produtos” populares, independentemente de seu valor intrínseco e contribuição para o enriquecimento cultural da população. Esse tipo de atitude termina por justificar e legitimar formas erradas de expressão oral e letrada (por evidente incultura do “produtor popular”), que podem até encontrar acolhimento no campo do folclore, mas jamais no campo do conhecimento a ser promovido pelo Estado.
Ao assim fazer, a esquerda acaba confundindo manifestações da cultura popular, plenamente aceitáveis em seu contexto próprio e que acabam fazendo parte do chamado “patrimônio” nacional, com a cultura formal, que não precisa ser erudita, mas que sempre é cientificamente rigorosa e dotada de certa lógica intrínseca, e que constitui uma condição indispensável para a elevação cultural de qualquer povo. Os raciocínios semiológicos e os exercícios de “intuição” típicos da cultura popular, cultivados por políticos e outros demagogos, mas que deveriam ser rejeitados por membros de uma elite intelectual e do pensamento, como pretende ser a esquerda, constituem contrassensos culturais e um desserviço à causa da elevação educacional do povo. Não há nada de mais populista ou popularesco do que cultivar acriticamente o popular apenas pelo fato de ser popular. Quanto à condenação genérica das elites, a esquerda deveria olhar no espelho e fazer um sério exercício de autocrítica.

7. A esquerda é voluntarista e anti-racionalista.
O voluntarismo, aqui, se refere a uma suposta encarnação da vontade popular, da qual a esquerda pretende deter o monopólio (não se sabe bem se por direito divino). Se olharmos o registro histórico, entretanto, veremos que as esquerdas, em suas diversas versões político-ideológicas, estiveram muito pouco à frente de governos ou enquanto responsáveis de políticas públicas. Esta não é uma afirmação gratuita e sim uma simples constatação de fato: deve haver algo de errado com um movimento que se proclama vanguarda popular, mas que na verdade esteve muito pouco em condições de determinar políticas que influenciaram a vida das sociedades nos últimos 150 anos, pelo menos.
Mesmo na América Latina, que conheceu por longos períodos muitos governos de direita que, aliás, combateram duramente (por vezes cruelmente) as esquerdas, e onde as esquerdas finalmente chegaram ao poder ao início do século XXI, não se observa uma mudança radical de políticas econômicas ou mesmo de políticas sociais, em relação às políticas e práticas anteriormente adotadas. Observa-se, incidentalmente, nos países que elegeram dirigentes de esquerda, uma forte retórica mudancista, mas, de fato, práticas cautelosas, quando não conservadoras de administração da “coisa pública”. As próprias esquerdas são conscientes desse fato, pois elas são as primeiras a protestar contra a não-mudança, em ruidosas manifestações de rua e em incontáveis manifestos de intelectuais.
O que acontece, na verdade, é que se as propostas e sugestões de políticas que são oferecidas nessas manifestações e manifestos fossem submetidas a referendo popular elas seriam fragorosamente derrotadas. Por outro lado, os movimentos de “esquerda” que foram eleitos tiveram sucesso pelo fato mais prosaico de terem revertido um discurso vazio e uma retórica oca que prometia “grandes mudanças”, em prol de uma abordagem mais realista e cautelosa das políticas macroeconômicas e setoriais. Como as esquerdas “intelectuais” dispõem de ampla audiência nos meios de comunicação, elas tendem a acreditar que seu discurso mudancista, pela via da ruptura, é aceito pela sociedade, quando na verdade ele se move em círculos auto-concêntricos, falando para seus próprios convertidos. Quanto às esquerdas “práticas”, elas já se converteram, de modo sub-reptício, à socialdemocracia, praticando, sem dúvida, um discurso mudancista, agora pela via da reforma paulatina, mas sobre isso elas calam, têm vergonha ou hesitam em confessá-lo.
Isso nos remete ao segundo conceito selecionado neste sétimo (e último, até aqui) “pecado dialético” da cultura da esquerda: o anti-racionalismo. A esquerda se pretende aberta ao debate público e às controvérsias em torno de questões políticas, sociais e econômicas, mas isso habitualmente se dá no plano mais geral das questões atinentes à própria sociedade nacional e aos problemas internacionais, ao passo que, no terreno das idéias, ela é sabidamente autista e infensa ao debate público sobre suas próprias posições. O que é isso senão, de fato, anti-racionalismo?
Antes que alguém me acuse de má vontade em relação às idéias da esquerda, se o conceito se aplica, gostaria de trazer dois pequenos exemplos em apoio ao argumento. Tenho sido um leitor habitual e frequente das publicações da esquerda, nos últimos 40 anos, pelo menos (confesso que com crescente cansaço em relação a certa sensação de déjà vu). Se eu fizesse uma tabulação das matérias mais relevantes e dos temas mais frequentes nessas revistas (agora boletins eletrônicos) os campeões absolutos seriam, pela ordem: a crise do capitalismo, a agressividade do imperialismo, a nocividade das políticas sociais e econômicas “burguesas” do ponto de vista dos interesses populares e, mais recentemente, a condenação absoluta do “consenso de Washington” e do neoliberalismo, ambos no mesmo saco indistinto da globalização capitalista, excludente e assimétrica. Estarei exagerando? Não creio, pois basta consultar os títulos das matérias dessas revistas (que me eximo de citar para não fazer publicidade indevida e gratuita).
Gostaria que me indicassem quantas vezes compareceram artigos fazendo autocríticas dos próprios erros analíticos, matérias de revisão das previsões erradas sobre a crise geral (em alguns casos final) do capitalismo, ensaios em torno de algum (mesmo modesto) reconhecimento pela factibilidade nula, ou marginal, das próprias propostas da esquerda para uma solução “inventiva” dos “graves desequilíbrios econômicos e sociais do capitalismo”, enfim, de discussão das próprias idéias da esquerda que foram (e são) sistematicamente derrotadas nas urnas, mesmo quando pretendem encarnar a vontade geral do povo e a “recusa de tudo isso que aí está”. Esses exemplos são mínimos, ou simplesmente inexistentes, pois o tom geral é de condenação das idéias dos outros, não de reconsideração das suas próprias idéias. Mais uma vez: gostaria que me contestassem.
Dentre os cinco exemplos práticos apontados como representando um avanço das idéias da esquerda latino-americana no campo eleitoral, três pelo menos podem ser considerados como excepcionais e não representativos. O Chile emergiu de uma transição cautelosa da ditadura e elegeu, primeiro, um governo democrata-cristão, depois um de cunho socialista que, ambos, voluntariamente ou porque concluíram que não havia outro caminho, praticaram as mesmas políticas econômicas em vigor na fase final da ditadura militar. A Venezuela ainda não se recuperou da grave crise de legitimidade que atingiu seu sistema partidário, totalmente desacreditado politicamente, e enveredou pelo caminho do populismo voluntarista, que só se sustenta economicamente graças à renda petrolífera, um maná do subsolo que representa ao mesmo tempo uma maldição em termos de (baixa) diversificação de sua economia. A Argentina, por fim, mergulhou num verdadeiro abismo econômico, também por incapacidade de suas elites políticas, não apenas “radicais”, mas, sobretudo, peronistas, e tem ainda um largo caminho pela frente para recuperar o terreno perdido em anos de experimentos econômicos mirabolantes.
A rigor, apenas o Brasil e o Uruguai poderiam ser apresentados como exemplos de legítimas transições políticas de “esquerda”, ainda que o conceito seja duvidoso do ponto de vista das políticas econômicas adotadas por seus dirigentes. A retórica social progressista, que conseguiu afastar os tradicionais partidos de centro-direita do poder, ainda não foi capaz de realizar uma verdadeira transformação das estruturas econômicas e sociais e é mesmo duvidoso que intentem fazê-lo, a despeito de afirmações em contrário. Obviamente, o balanço final dos resultados concretos ainda precisa ser feito, sendo cedo para avaliar corretamente essas experiências desses governos de esquerda” do ponto de vista de suas próprias idéias, tal como expostas em programas eleitorais e repetidas em incontáveis discursos nos meios de comunicação.
Em todo caso, abstraindo-se os exemplos da Venezuela e da Argentina, que conformam manifestações agudas de crises gerais de seus sistemas políticos, alimentadas também por crises econômicas mais ou menos profundas, o único modelo de crescimento econômico, de transformação produtiva e de progresso social na região parece ser o do Chile, não por acaso sistemática e sintomaticamente desprezado pelas esquerdas. A razão parece simples: se há um exemplo de país que seguiu, de modo quase religioso, pode-se dizer, as idéias do chamado “consenso de Washington” e as práticas recomendadas pelos neoliberais, este país foi o Chile. Que ele venha experimentando anos e anos de crescimento sustentado, de estabilidade macroeconômica e conhecendo progressos reais, embora modestos, no caminho da elevação dos padrões de vida da população, tudo isso pode ser mera coincidência, mas o exemplo poderia incitar, talvez, os analistas de esquerda a se debruçarem um pouco mais de perto sobre esse modelo “neoliberal” de desenvolvimento econômico e social.
O segundo exemplo, finalmente, de autismo e de anti-racionalismo nas esquerdas é representado pelo chamado movimento altermondialista, que deveria ser chamado, mais apropriadamente, de simplesmente “antiglobalizador”, uma vez que ele recusa de modo peremptório a globalização, mas não conseguiu, ainda, determinar qual seria esse “outro mundo possível”. Não se tem notícia de exemplo mais patético de recusa da realidade, como essa assemblagem de representantes progressistas e de esquerda, reunida sob o emblema do Fórum Social Mundial, que proclama, a cada encontro e de modo estridente, as carências da globalização capitalista, invariavelmente descrita como excludente e concentradora, quando todas as evidências estatísticas e factuais vão de encontro a esses argumentos enviesados.
Um pouco mais de modéstia, ou de simples atenção à realidade, poderia fazê-los constatar que a globalização é eminentemente progressista, que ela retira, sim, milhões de excluídos da miséria mais abjeta, e que seu caráter capitalista não constitui uma marca de opróbrio ou uma maldição, pela simples razão de que o único “modo de produção” que restou nos supermercados da história foi o velho e duro capitalismo, por absoluta inexistência de qualquer modo alternativo de se organizar a produção material e a distribuição de bens e serviços em escala mundial. Relatórios e mais relatórios, estudos empíricos de entidades não suspeitas de colusão ideológica com os capitalistas triunfantes de Wall Street têm demonstrado suficientemente as transformações benéficas – que tendem largamente a superar os impactos negativos – da globalização capitalista, mas isso não parece comover de nenhum modo os antiglobalizadores mais enragés.
Que um “outro mundo” seja possível não é de se descartar, embora isso pareça pouco provável no horizonte histórico previsível, mas os antiglobalizadores podem até fazer um esforço teórico adicional para expor de modo mais concreto sua configuração precisa, em lugar de simplesmente ficar atirando pedras nas vitrines do capitalismo. Que esses antiglobalizadores não gostem do lucro, da acumulação capitalista e até das duras regras de mercado – como também acontece com as “velhas” esquerdas – pode ser compreensível e mesmo esperado em estudantes universitários dotados de indignação juvenil anticapitalista, mas eles estão geralmente “excluídos” da economia de mercado pela via do trabalho direto (ainda que não deixem de ser consumidores). Que esse tipo de crença seja alimentado também por velhos militantes da esquerda, por sindicalistas experimentados e, mais ainda, por políticos profissionais, aí o caso é bem mais grave, conformando um tipo de autismo que pode ser incurável.


Voilà: encerro por aqui meus comentários sobre a cultura da esquerda, não sem antes lembrar que minha lista não é exaustiva. Existem, por certo, muitos outros “pecados dialéticos” no comportamento, nas atitudes e sobretudo nas “disposições mentais” da esquerda, mas prefiro no momento não comentar essas outras deficiências.
Contento-me, em contrapartida, com apontar o fato de a esquerda valorizar, reconhecidamente, muito mais o ensino universitário do que a educação popular, o que pode contribuir para manter o Brasil nesse estado catatônico de indigência produtiva, dada a baixa qualificação das massas trabalhadoras. Ora, é sabido que a única fonte de riqueza de uma nação é a produtividade do trabalho humano, que no Brasil apresenta índices reduzidos.
Que tal se a esquerda operasse uma “revolução mental” e passasse a defender, de modo resoluto, uma verdadeira “revolução” no ensino público fundamental do Brasil?

Paulo Roberto de Almeida (25 de março de 2005)
Revisão: 29/01/2014.
1412. “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento”, Brasília, 25 mar. 2005, 22 p. Comentários sobre obsessões da esquerda (antimercado, igualitarismo, estatismo, etc.), que conformam pensamento ultrapassado para suas tarefas políticas. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. IV, n. 47, abr. 2005;). Objeto de crítica de Robinson dos Santos, intitulada “‘Milk-shake’ indigesto ou sete equívocos de uma crítica à esquerda?: Réplica a Paulo de Almeida” (Espaço Acadêmico, na. IV, n. 48, abr. 2005;). Feita tréplica registra em Trabalhos n. 1425, publicada no número de junho. Reproduzido no blog português “O Insurgente”, em 10/2005, com comentários agregados por leitores de Portugal (registrados no dossiê 1412). Nova réplica de outro leitor, respondida com o trabalho n. 1432. Relação de Publicados n. 549.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Brasil: o incrivel caso do pais sem partidos de direita - Gabriel Castro (Veja)


O Incrível caso do país sem direita
Não há partidos conservadores no Brasil. O único liberal de peso agoniza depois de perder nomes importantes. E são poucas as perspectivas de mudança
Veja
Por Gabriel Castro


Espectro político baseado na auto-declaração dos presidentes dos partidos revela: somos um país sem direita (Arte: Luciana Martins/VEJA)

O espectro político brasileiro é peculiar: na ponta esquerda, tem o jurássico PCO. Passa por socialistas radicais, como o PSOL e o PSTU, pelos comunistas conformados do PPS, pelos social-democratas do PT e do PSDB, pela esquerda verde do PV e se encerra no centro, onde estão PP e DEM. Não há, entre os 27 partidos brasileiros, um que se assuma como direitista. E o recente anúncio da criação do PSD, que se define como social-democrata, abre um buraco no DEM e empurra o eixo da política brasileira ainda mais para a esquerda.

A situação é única. Todas as grandes democracias do mundo têm ao menos um partido conservador forte, como o PP espanhol, o Partido Republicano dos Estados Unidos, a UMP francesa e o PDL italiano. O que teria levado a direita brasileira à lona enquanto, em outros países, como os vizinhos Chile e Colômbia, ela ocupa o poder máximo? Para especialistas e políticos ouvidos pelo site de VEJA, a causa está na herança maldita da ditadura militar.
O primeiro a definir o conservadorismo como uma doutrina política foi o inglês Edmund Burke, no século XVII. Esta corrente política considera que os indivíduos realizam as coisas melhor do que o estado. Que as liberdades individuais devem ser mantidas a todo o custo. E que os valores tradicionais da sociedade devem ser preservados. Nas democracias modernas, o conservadorismo se traduz como uma recusa ao estatismo, a defesa do livre mercado, a proteção da família e a oposição a medidas como a legalização de drogas e do aborto.
No Brasil, o discurso adotado pelos partidos políticos pouco se diferencia: todos adotam termos como “justiça social”, “distribuição de riqueza”, “igualdade”. Obviamente, ninguém é contra essas bandeiras, mas o linguajar denuncia que todos, por razões diversas, adotam um vocabulário de esquerda. Expressões como “livre iniciativa”, “responsabilidade individual” e “valores morais” raramente são ouvidas pelos corredores do Congresso ou do Palácio do Planalto. As palavras “social” e “trabalhista” e “socialista” aparecem na maioria dos nomes das legendas. Há apenas um partido que faz referência ao liberalismo – o PSL, que, ainda assim, também se diz social – e nenhum que tenha a expressão “conservador” no nome.

Situações peculiares – O declínio de valores não-esquerdistas se acentuou a partir do governo Lula, quando o PT moderou seu posicionamento e roubou parte do discurso de partidos de centro. Legendas que a princípio eram pouco afeitas às ideias do partido deixaram as diferenças de lado para ingressar na partilha do poder: é o caso do PR, que resultou da fusão do PL com o Prona, do PTB, do PP e do PMDB. Todos se dizem centristas.
O adesismo inflou o bloco governista e juntou a esquerda moderada, a socialistas anacrônicos e a arrivistas de olho na divisão de benesses. Com isso , o PT arrastou consigo praticamente todos os partidos com algum peso. PSDB e DEM permaneceram na oposição mais por questões estratégicas do que programáticas. “Os partidos não se posicionam amparados em raízes históricas, mas em razões conjunturais”, opina o cientista político Leonardo Barreto. Para ele, há espaço para o surgimento de uma legenda conservadora no país.
Na falta de uma direita verdadeira, a esquerda acaba inventando a sua própria: “Oposição à direita é um erro grave porque você tem um país com contradições sociais gravíssimas, concentração de renda das maiores do mundo. Quer concentrar mais? À grande maioria isso não interessa”, diz o primeiro-secretário do PSB, Carlos Siqueira, para quem a direita trabalha para aumentar a injustiça no país.
Mesmo entre a oposição, o discurso ideológico não é afinado: o presidente do PPS, Roberto Freire, faz uma diferenciação: “Existe a oposição de esquerda, como o PSOL, PSTU e parte do PSDB. Na oposição de direita temos o DEM”. O rótulo, no entanto, é descartado pelos próprios democratas.
Trauma da ditadura – Mesmo o autoproclamado centrismo do DEM parece não ser bem recebido no meio político: o partido, em eterna crise de identidade, já se refundou duas vezes e tenta se livrar da pecha de conservador. Da última vez, tentou colar a imagem ao Partido Democrata americano – que, por lá, abriga diversos matizes da esquerda. Ainda assim, vem sofrendo sucessivos golpes, vindos de dentro e de fora. O último deles é o nascimento do PSD de Gilberto Kassab.
O presidente do DEM, José Agripino Maia, reconhece que as bandeiras de seu partido se limitam à defesa do “liberalismo moderno”. Ao site de VEJA, ele torceu o nariz quando indagado sobre a dicussão de temas que costumam pautar os partidos conservadores, como o casamento gay, o aborto e a liberação de drogas: “Isso não é o carro chefe do partido”.
De fato, o DEM não pode ser definido como um partido de direita: bandeiras como a redução da maioridade penal, o endurecimento da punição a criminosos e a oposição ao desarmamento civil não são bandeiras pela qual o DEM se empenha. “No Brasil, a direita é muito vinculada aos regimes totalitários e estamos totalmente fora disso. O que é esquerda? Muro de Berlim, Cuba? Estamos fora disso também”, diz Agripino Maia. O antigo PFL, aliás, esteve ao lado do governo petista na defesa do desarmamento da população civil, em 2005.
O deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO) se alinha a bandeiras clássicas do conservadorismo, como a defesa da livre iniciativa, a não-interferência do estado na vida do cidadão e oposição à legalização do aborto. Mas não se assume como direitista. Para ele, o rótulo só faria sentido em países onde há tradição de uma direita democrática, o que não existe no Brasil. “Aqui não existe essa tradição”, explica.
Não por acaso, os partidos não foram capazes de sintetizar a oposição do eleitorado brasileiro à legalização do aborto. Na última campanha eleitoral, o tema surgiu quase de forma clandestina, em discussões na internet e nas igrejas. O PSDB de José Serra veio a reboque, aproveitando-se do tema para criticar a petista Dilma Rousseff – que, por sua vez, se apressou em tentar apagar o passado e dizer que nunca havia defendido a legalização do aborto.
Petistas e tucanos, aliás, têm mais similaridades do que diferenças. O líder do PSDB no Senado, Alvaro Dias, reconhece que a disputa tem mais a ver com a aplicação das ideias do que com a orientação ideológica: “O PT, no poder,adotou as propostas do PSDB. Não inovou. Não há nenhum programa social novo. Ocorre que a execução é que é diferente. Geralmente, a postura do PT é mais promíscua em relação ao Legislativo”, afirma.
Falta tradição – Para o cientista político Ricardo Caldas, a rejeição ao rótulo de direitista está ligada à herança negativa deixada pelas legendas conservadores no país. Estes partidos foram contra a abolição da escravidão, contra o fim da monarquia e, na figura da Arena, apoiaram o regime militar. Não é uma ficha corrida das melhores. “Eles tiveram dificuldade de conviver com a democracia e ficaram com essa pecha de antidemocráticos.”
O especialista acredita que a direita brasileira não se modernizou. Em vez disso, foi engolida pelo recente pragmatismo de esquerda, difundido pelo PT, ou aderiu ao outro lado por oportunismo eleitoral. Se o espectro político brasileiro vai da extrema-esquerda ao centro, a disputa pelos principais postos de poder está ainda mais restrita. Em 2010, só havia candidatos de partido de esquerda na disputa pela Presidência da República.
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