A decisão do min. Dias Toffoli do STF por suspender investigações baseadas em dados fornecidos pelo COAF a partir de um pedido do senador Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), encalacrado com as movimentações financeiras pouco ortodoxas do seu entorno político, selou um pacto menos institucional do que estratégico e de autoproteção entre os Bolsonaro e o establishment, que põe o primeiro numa encruzilhada.
Em janeiro passado, quando o ministro Luiz Fux acatou o pedido liminar suspendendo qualquer procedimento investigatório contra Flavio até que o relator do processo no Supremo se pronunciasse, a militância bolsonarista descarregou críticas sobre o filho mais velho do presidente, surrando a retórica para dar conta de isolar o mandatário da família das suspeitas que se avolumavam de mau uso do dinheiro público.
Desde a semana passada, no entanto, essas posições vem mudando de face. O ‘sim’ de Toffoli ao novo pedido do senador, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, serviu de fleet paralisante, pacificou a timeline bolsonarista, que sentiu o cheiro de queimado, embora a maioria ainda esteja na fase de negação. A tergiversação deu o tom e mesmo as críticas públicas dos ponta-de-lança militantes nas redes sociais não foram além de acanhados ‘lamentável’.
O coro de ‘Dudu Chapeiro para embaixador nos EUA’ foi parte da estratégia. Calculou-se que era uma forma menos desgastante de desviar a atenção das franjas mais radicalizadas da militância do flerte descarado da família Bolsonaro com o estamento burocrático que ela diz pretender drenar. As declarações vulgares do presidente sobre fome e cinema no Brasil serviram ao mesmo fim.
A forma final dessa encruzilhada talvez se dê nas próximas semanas, quando o mesmo STF que agiu para proteger Flavio Bolsonaro, talvez aja para beneficiar o ex-presidente Lula, nêmesis do bolsonarismo. A ideia de ‘um cabo e um soldado para fechar o STF’ ainda é a melhor síntese do respeito legado pela militância do presidente a corte maior.
Intutelável, de pendor revolucionário, ainda mais radicalizado desde as manifestações de maio passado, tendo degradado as posições tanto dos militares quanto, em menor grau, é verdade, dos liberais dentro do governo, o arranjo olavobolsonarista que guia o pensamento do presidente e seus apoiadores mais fiéis é milenarista e tem afinado um clamor à violência crescente e cada vez mais desavergonhado nas redes sociais, onde ela melhor se organiza.
Mas a entropia aos poucos vaza para o mundo real. Episódios como o enfrentamento do grupo Direita SP contra membros do Movimento Brasil Livre nas manifestações recentes de apoio a Lava Jato, por exemplo, tem guarida e são, se não comemorados, tolerados em grupos de Whatsapp e fóruns de discussão reacionários como uma espécie de processo de depuração da ‘verdadeira direita’.
Protestos como o contra a participação da jornalista Miriam Leitão numa feira de literatura em Santa Catarina são estimulados com fervor de brigadas lutando contra o comunismo em pleno 1930. A fala do presidente atacando a jornalista e chancelando indiretamente os manifestantes parece loucura, mas tem método. Como numa lição que se repete mais claramente desde Revolução Francesa, as primeiras vítimas dos extremistas, para quem apoio é subserviência, são os moderados, ‘entulhos’, ‘isentões’ e ‘traidores’.
Em vídeos, memes e podcasts a gradação da linguagem bélica vai desde o uso de termos como ‘ucranizar’ (agressão pública em série a políticos de oposição) a elogios mal disfarçados de ‘zueira’ e ‘humor politicamente incorreto’ ao motorista suspeito de atropelar um idoso na semana passada num ato do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, de esquerda, em Valinhos (SP), ou frases como ‘nós vamos fazer o que os militares deixaram de fazer em 1964’, ‘vai faltar necrotério’ em alusão clara à repressão política.
Uma frase do escritor Olavo de Carvalho ilustra o ímpeto dos mais exaltados, quando diz que ‘moderação na defesa da verdade é prestar serviço à mentira’. Os que comungam desse entendimento respondem com presteza o que seria a verdade (o credo olavista e o apoio irrestrito ao presidente), a mentira (tudo que por eles seja identificado como comunismo), mas o limite da não moderação resta sempre em aberto. ‘Temer por suas existências físicas’ e ‘quebrar as pernas’ já foram expressões usadas pelo mesmo Olavo referindo-se aos opositores do presidente.
A pauta moral vai servindo de pasto ao gado militante e mantém, em potencial, a violência que pode ser conclamada mais abertamente à medida que se configurem embates político-institucionais como os que podem sequenciar ao abrandamento do cumprimento da pena do ex-presidente Lula.
É quando chegará a hora de por à prova a resistência do pacto Dias Toffoli-Bolsonaros. Um caminho leva à conciliação, com Supremo com tudo. Outro, ao arrostamento contra um dos três poderes da República, ‘cúmplice de tudo que está aí’. O eleitor raiz de Bolsonaro, cuja percepção é de podridão institucional generalizada, saliva pelo segundo. Os vazamentos da comunicação entre integrantes da força tarefa Lava-Jato só aguçaram esse faro para a carniça.
Pode não ser, no agudo da crise política que se avizinha, a hora em que a violência coesa e organizada vai entrar em cena no debate público, mas as aproximações a essa realidade tem sido paulatinas.
Como descreve René Girard, autor caro ao olavismo, ‘na onda crescente dos escândalos, cada represália evoca uma nova, mais violenta que a precedente. Se nada vier estancá-la, a espiral irá necessariamente desembocar nas vinganças em série, fusão perfeita de violência e de mimetismo’.
A prisão de Lula foi, dentro dessa visão sectária, o auge das represálias, de modo que sustá-la deixará uma lacuna. É fundamental ao bolsonarismo manter o espantalho do lulismo vivo, questão ontológica. A manutenção desse espectro/capital político talvez peça ao presidente, quem sabe, o sacrifício do seu próprio filho.