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domingo, 5 de agosto de 2018

Brasil: municipios continuam dependentes de aportes externos - Mariana Alvim (BBC)

Matéria bem feita sobre a emancipação de uma cidade-bairro que tornou-se município recentemente e que, como muitos outros, provavelmente mais da metade, não dispõe de recursos próprios, dependendo de transferências federais.
Diferente da democracia de base nos EUA, onde cada unidade política precisa ser realmente autônoma, no Brasil, criar município novo significa ter cargos na burocracia pública para viver da riqueza criada por empresários e trabalhadores. Essa cultura do rentismo e do patrimonialismo precisa acabar.
Eis o que escrevi em meu trabalho de análise da Constituição de 1988 sobre essa questão:
"O Título III está dedicado à organização do Estado, sendo que o capítulo da organização político-administrativa admite, em seu Art. 18, a criação de novos estados e municípios através de plebiscito e de lei complementar federal. Ora, tendo ocorrido, logo depois de promulgada a Constituição, a criação de número excessivo de municípios sem qualquer viabilidade econômica, o assunto teve de ser regulado pela emenda constitucional n. 15 (1996), dada a absoluta dependência das novas unidades de transferências federais, em vista de sua total incapacidade em dispor de recursos próprios. Mesmo com essa limitação, estima-se que praticamente a metade das unidades primárias da federação não consegue fazer funcionar seus serviços essenciais (saúde e educação, por exemplo, mas crescentemente segurança e mesmo o quadro funcional) com base unicamente em seus próprios recursos, dependendo, por conseguinte, da redistribuição de verbas federais, o que sempre constitui foco de tensões políticas, de barganhas, quando não de chantagens recíprocas por ocasião de projetos importantes para o Executivo, que é quem controla a maior parte dos recursos públicos. 
Nota: Estima-se que, entre 1988 e 2000, tenham sido criados 1.400 novos municípios, até alcançar um total de 5.507; cf. “Iniciativa perdulária”, Editorial O Globo, 10/06/2013. O número total situa-se, em 2018, em 5.570, com todos os encargos e atributos criados para lotar prefeituras, câmaras de vereadores, secretarias municipais e outros órgãos públicos de funcionários próprios ou terceirizados, que passam a dividir o mesmo bolo federal de repartição de recursos, com as repetidas reclamações de novos fundos.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 5/08/2018

Cidade mais jovem do Brasil expõe dilemas sobre criação de municípios

Ônibus passa em frente a casa com placa que diz: "Pescaria Brava"Divulgação/Câmara Municipal de Pescaria Brava
Pescaria Brava, em Santa Catarina, foi um dos cinco municípios oficializados em 2013
Com apenas cinco anos de idade, a pequena Pescaria Brava, cidade com menos de 10 mil habitantes no litoral de Santa Catarina, já enfrenta problemas financeiros de "gente grande". 
Desde que foi criada, em 2013, já teve suas contas rejeitadas por três anos consecutivos pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina (TCE-SC). Descumpre, também, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): em 2016, mais de 71% dos gastos foram para o pagamento do funcionalismo público, acima do limite de 54% estipulado pela lei. A dificuldade vem da baixa capacidade de arrecadação própria e da forte dependência dos repasses estaduais e federais. 
Por outro lado, moradores e representantes da mobilização que levou à emancipação do município garantem ver os resultados dos clamores que justificaram sua separação do município de origem, Laguna (SC). Pescaria Brava, antes um distrito, foi criada sob a justificativa da falta de investimentos e representatividade política. Hoje, pessoas que veem a criação do município com bons olhos apontam para melhorias como pavimentação das ruas, acesso a bancos e lotéricas e expansão da rede escolar. 
É esse delicado equilíbrio, entre questões orçamentárias e as demandas da população, que ronda o debate sobre a criação de novos municípios - possibilidade congelada pela lei após décadas de expansão de novas cidades brasileiras. É esta balança também que costuma colocar em um prato especialistas em administração pública e, no outro, políticos. 
O tema voltou à pauta com a possibilidade de que a Câmara dos Deputados vote, nas próximas semanas, um projeto que pode facilitar o surgimento de novas cidades. A proposta, com origem no Senado, tramita em urgência na Câmara. Sua tramitação vem sendo acompanhada com grandes expectativas por movimentos emancipacionistas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, apoiados pela Frente Parlamentar Mista de Apoio à Revisão Territorial dos Municípios. 
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje há 5.570 municípios no país. Pescaria Brava faz parte da última leva a completar essa lista, no primeiro dia de 2013 (municípios novos são oficializados no primeiro dia do ano seguinte a uma eleição municipal). Foram cinco cidades nascidas nessa data, mas a cidade catarinense foi a criada mais tardiamente via lei estadual, em 25 de outubro de 2003 - fazendo dela o município mais jovem do país. 

Maioria dos municípios brasileiros apresenta dependência em recursos externos

"Pescaria Brava nasceu com complicações, como um descontrole na gestão dos recursos, déficits e gastos com o pessoal acima do legal. Agora, o município vem se reequilibrando, mas de forma ainda tímida", diagnostica o auditor Moisés Hoegenn, diretor de Controle dos Municípios TCE-SC, tribunal que deu parecer pela aprovação das contas de 2013 do município, e pela rejeição nos exercícios de 2014, 2015 e 2016 (o ano de 2017 ainda está sendo avaliado). 
Segundo dados da plataforma Meu Município, que mapeia informações orçamentárias de centenas de cidades brasileiras, apenas 8% do dinheiro em caixa da pequena cidade catarinense em 2016 veio de tributos próprios - impostos recolhidos por municípios, principalmente o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveise) e ISS (Imposto sobre Serviço). A maior parte da receita de Pescaria Brava veio de repasses estaduais e da União: nada menos do que 89% (cerca de R$ 16 milhões). 
Município no litoral catarinense, Pescaria Brava tem pouco menos de 10 mil habitantes
Essa é, na verdade, a realidade da maior parte dos municípios brasileiros: de acordo com o Ranking de Eficiência dos Municípios de 2016, do jornal Folha de São Paulo, aproximadamente 70% das cidades do país dependem em mais de 80% de fontes externas. 
Primeiro prefeito de Pescaria Brava e presidente da comissão de emancipação do município por cinco anos, Antonio Honorato (PSDB) avalia, no entanto, que o equilíbrio financeiro da cidade é só uma questão de tempo. 
"(Na prefeitura) Investimos na aquisição de tratores, armazenamento genético para a pecuária... Mas até ser feito o cadastro imobiliário, a planta de valores, entre outros, toma tempo", disse o ex-prefeito em entrevista à BBC News Brasil por telefone.
Procurada pela BBC News Brasil por meio de telefone, e-mail e Facebook, a atual gestão municipal de Pescaria Brava não respondeu a perguntas sobre o número e remuneração de funcionários públicos, secretários e prefeitos. Mas, em conteúdo disponibilizado na internet, informa-se que a cidade conta com pelo menos seis secretarias e nove vereadores. 

Mobilização por emancipação de Pescaria Brava remonta a 1995

Honorato explica que, entre as motivações para a emancipação de Pescaria Brava, estava a falta de investimentos ao então distrito quando o poder de decisão cabia a Laguna - aquela, com a matriz econômica baseada na agropecuária e na pesca, e esta, no turismo, segundo o ex-prefeito. 
Inclusive, aos cinco anos, Pescaria Brava tem identidade própria: além de uma Miss Pescaria Brava 2018, a pequena cidade já tem um hino que canta seus potenciais: "Na sua igreja a herança dos escravos/ Belos encantos do turismo natural/ Teus pescadores, pecuária e agricultores/ Completam tua economia potencial/ Teu comércio dedicado e competente/ De raça forte povo ordeiro se implantou/ O bravense altivo e consequente/ É semente forte que o vento não levou". 
Conta o site da prefeitura de Pescaria Brava que seu nome tem algumas origens possíveis, como a descrição de seus fortes e corajosos pescadores que lutavam contra águas revoltas ou das brigas na hora de dividir a colheita dos frutos do mar. 
Muito tempo depois e em terra firme, em um cartório, o escrivão Enaldo Cardozo de Souza se mobilizaria para realizar o "sonho de seu pai de ver Pescaria Brava emancipada", formando uma comissão emancipacionista em 1995. 
Mas o caminho teve contratempos: um plebiscito não avançou por falta de quórum, outro teve sucesso mas esbarrou no STF. Isto porque, em 1996, uma emenda constitucional congelou, na prática, a criação de novas cidades. Estudos sobre o tema apontam que, depois que a Constituição de 1988 elevou os municípios à categoria de ente federativo, houve uma intensa proliferação destes no país. De 1980 a 2000, o número de municípios brasileiros passou de 3.974 para 5.507. 
Com território destacado em vermelho, Pescaria Brava foi emancipada de Laguna
O impasse jurídico só acabou depois que uma outra emenda ratificou a criação de cidades nascidas até 2006. Em 2012, os moradores da futura Pescaria Brava elegeriam Honorato na primeira eleição municipal. 
"A emancipação foi algo ótimo. Quanto menor o quintal, melhor a roçada", diz o ex-prefeito. "Depois da emancipação, o número de postos de saúde passou de dois para quatro. Só tinha médico a cada 30 dias, depois passamos a ter cobertura de especialistas como pediatras e cardiologistas. As creches passaram de uma para sete, com um tempo mais amplo no horário integral". 
Os anos seguintes trouxeram para Honorato e a pequena cidade, porém, alguns episódios conturbados. Na eleição de 2016, o tucano foi derrotado nas urnas com a diferença de apenas um voto. O ex-prefeito acusou o pleito de fraude mas teve recurso negado no Tribunal Superior Eleitoral. Já em 2017, após a Câmara Municipal ratificar a rejeição das contas do ano de 2014, Honorato se tornou inelegível por oito anos. O ex-prefeito diz que o processo teve motivação política.
Apesar dos contratempos, Cristiano Medeiros, vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Pescaria Brava, acredita que a cidade está em uma trajetória de ascensão. 
"Nossa região é coberta pela lagoa de Imaruí, e a gente ficava do outro lado dela. Parecia que éramos uma parte de Laguna esquecida no tempo. Sabíamos que, enquanto bairro, não teríamos algumas coisas tão cedo", explicou Medeiros à BBC News Brasil por telefone. "As contas rejeitadas não tiveram muito impacto na população porque sabíamos que era tudo novo, estava tudo se criando. Agora, está chegando pavimentação, água encanada, o primeiro banco da região... Com a emancipação, o progresso foi acelerado".
Dono de uma farmácia na cidade, João Floriano também se diz otimista com o futuro da cidade. 
"Do meu ponto de vista, estamos evoluindo. Temos mais serviços, policiamento... A gestão também está criando um parque industrial e a previsão é gerar empregos, temos uma perspectiva melhor ainda", comemora o comerciante. 

Projeto similar foi vetado por Dilma Rousseff em 2014

Senador justifica projeto com casos de distritos no Pará a centenas de quilômetros de distância de suas sedes
O desenvolvimento local citado por moradores de Pescaria Brava também está no discurso do senador Flexa Ribeiro (PSDB) ao justificar o seu projeto sobre a criação de municípios que atualmente tramita no Congresso. Por e-mail enviado à reportagem, ele mencionou casos de distritos em seu Estado, o Pará, que estão a centenas de quilômetros de distância de sua sede. 
"No caso emblemático do distrito de Castelo dos Sonhos, com 15 mil habitantes, a distância da sede de Altamira é de 1.100 km. Esse distrito de Altamira se encontra engessado economicamente. Impedido de crescer, está fadado ao subdesenvolvimento", escreveu Ribeiro. 
O senador destaca que seu projeto prevê não só para a criação, mas também para a incorporação, fusão e desmembramento de cidades, a apresentação de estudos de viabilidade, plebiscitos e um volume populacional mínimo para o novo município (6 mil habitantes nas regiões Norte e Centro-Oeste; 12 mil no Nordeste; e 20 mil no Sul e no Sudeste).
O texto tem o mesmo conteúdo de um projeto aprovado na Câmara em 2014 e vetado pela então presidente Dilma Rousseff, que justificou que a medida "causaria desequilíbrio de recursos dentro do Estado e acarretaria dificuldades financeiras não gerenciáveis para os municípios já existentes". 
Um ponto essencial na discussão gira em torno do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), parte dos impostos de renda e IPI que a União repassa aos municípios. A distribuição é feita em diferentes faixas, determinadas pelo número de habitantes destas cidades. 
Mas um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2000, de autoria dos pesquisadores Gustavo Maia Gomes e Maria Cristina Mac Dowell, mostrou que, na prática, a multiplicação de municípios tirou receitas de grandes municípios para transferir aos pequenos. Isso, segundo os autores, "com o provável efeito de desestimular-se a atividade produtiva realizada nos grandes municípios (e no Sudeste), sem estimulá-la nos pequenos". 
Projeto do senador Flexa Ribeiro (PSDB) sobre criação de municípios tramita com urgência na Câmara
É comum também, entre os críticos à criação de municípios, a metáfora do bolo: ter mais cidades significa dividir o bolo por mais "bocas", sendo que a massa não necessariamente cresce. 
Em 2016, Pescaria Brava recebeu R$ 6,8 milhões via FPM. Segundo um levantamento feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) a pedido da BBC News Brasil, em 2017 somente o FPM representou 32% das receitas totais do município. 
"Isso acontece simplesmente porque eles (municípios pequenos) não têm base econômica, com raras exceções. Os impostos municipais, o IPTU, ISS e ITBI, têm uma arrecadação pequena nesses lugares. Além de uma base de arrecadação pequena, essas administrações costumam não explorar bem esses tributos, deixando de usar mecanismos como nota fiscal eletrônica e uma fiscalização eficiente", explicou por telefone à BBC News Brasil Sol Garson, especialista em finanças públicas. 
Já a CNM defende a ideia de que, nas últimas décadas, os municípios passaram a assumir mais responsabilidades "sem a correspondente transferência de recursos". 
Em material enviado para a BBC News Brasil, a confederação apresentou um exemplo na área da educação: a fixação do piso nacional do magistério que, segundo a entidade, "obriga boa parte dos municípios a gastar mais com folhas de pagamento" e acabaria comprometendo a maior parte dos recursos vindos do Fundeb - um fundo público destinado à educação básica. 
Segundo a CNM, em média, os municípios brasileiros gastam mais de 77% dessa verba na folha de pagamentos de professores e da equipe pedagógica (a lei exige um percentual mínimo de 60%), deixando o restante para demandas como a manutenção de quadras e bibliotecas, qualificação de professores, entre outros. Em Pescaria Brava, o gasto com o pessoal vem consumindo a maior parte do Fundeb que chega ao município, mas essa concentração vem diminuindo: chegou a 98% em 2015, passando para 81% em 2016 e 64% em 2017. 
O presidente da CNM, Glademir Aroldi, argumenta que a conjuntura também não tem ajudado os cofres dos municípios. 
"O desenvolvimento da economia local depende muito da economia como um todo", defende Aroldi. "A grande maioria dos municípios criados (desde 1988) melhorou na qualidade de vida. Percebemos isso quando estamos neles". 

Alternativas aos 'divórcios'

Dados de 2016 mostram que 71% das despesas da cidade vão para o custeio de pessoal
O geógrafo Fernando João da Silva, mestre em planejamento territorial, foi funcionário do governo estadual de Santa Catarina por 30 anos. Pareceres e mapas de novos municípios passavam por sua mão para serem avaliados. 
"Percebia que algumas assembleias faziam vista grossa para exigências como uma base populacional. Muitas vezes eu precisava adaptar muita coisa ou emitia um parecer contrário à emancipação, mas isso não era seguido", lembrou o geógrafo, falando à BBC News Brasil por telefone. "São necessários anos para conseguir construir a infraestrutura de um município. Imagino que existam casos de municípios que gostariam voltar ao de origem". 
Como alternativa à emancipação, Silva defende o fortalecimento da gestão de distritos - subdivisões vinculadas à administração municipal. 
A economista Sol Garson vai além.
"Seria importante fornecer meios de dar voz para populações menores, através de alguma reforma política. Criar um município para isso, com cinco ou seis secretários no mínimo, provavelmente não vai trazer mais eficiência".