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domingo, 30 de setembro de 2018

Juca Paranhos, biografia do Barao do Rio Branco, de L.C. Villafanne G. Santos, por Mariana Alvim (BBC)

Caça a mapas antigos e espionagem: as aventuras do Barão de Rio Branco pelas fronteiras do Brasil

"Estão aí os traços característicos do segundo Rio Branco: genuíno patriotismo, culto amoroso ao pai, organização conservadora (...) São impulsos de um mesmo motor, o amor ao país."
As palavras do diplomata Joaquim Nabuco descrevem o Barão do Rio Branco, ou José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912) - filho do Visconde do Rio Branco, primeiro-ministro do Brasil e deputado conservador. Os elogios são o testemunho do momento em que o barão saía do desconhecimento para a exaltação após vencer uma disputa territorial contra a Argentina, em 1895 - cumprindo tardiamente um projeto de ascensão social traçado desde o nascimento pelo pai.
A imagem de um diplomata que só abre mão da timidez para colocar a erudição à serviço da pátria é pintada aí, perdurando até hoje na personificação do barão, uma das figuras históricas mais reverenciadas do país.

Mas um novo livro que acaba de chegar às livrarias mostra que essa é uma entre as várias versões possíveis do Barão do Rio Branco. Há também o Paranhos Júnior boêmio, decepcionado com seus rumos profissionais ou ainda às voltas com o sustento financeiro da família.
"Havia uma expectativa imensa em cima dele. Ele nasceu durante o Antigo Regime: naquele momento, a ideia de sucesso era fazer com que as famílias transcendessem. O pai, o visconde, é um filho ilegítimo que consegue uma ascensão social muito grande mas que só poderia ser completa ao transformar os Paranhos em uma das grandes famílias do império. Ele não conseguiria fazer isso sozinho, precisava dos filhos. E era (o barão do) Rio Branco quem seria o próximo patriarca da família", explica Luís Cláudio Villafañe, autor da biografia Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco, da Companhia das Letras.
A história de Juca Paranhos se entrelaça com marcos de importantes mudanças no Brasil - da transição da monarquia para a República ao fim da escravidão. Mas é só depois dos 50 anos de idade, em sua atuação em disputas por fronteiras contra a Argentina, França e Bolívia, que o barão do Rio Branco consegue imprimir sua digital na história do país.

Deputado pelo Mato Grosso sem nunca ter pisado lá

A biografia escrita por Villafañe detalha como, desde pequeno, cada passo de Juca Paranhos foi planejado com esmero pelo visconde. Esta trajetória incluiu a formação em Direito e o patrocínio do pai à carreira parlamentar, em que o barão assumiu uma cadeira na Câmara dos Deputados pelo Mato Grosso sem sequer pisar naquela província - algo que só seria feito na véspera de um segundo mandato. O voto censitário se reduzia a algumas dezenas de pessoas: homens e com rendimentos acima de uma determinada faixa.
Membro do Partido Conservador, Juca carregaria consigo este posicionamento ideológico ao longo da vida. Era monarquista convicto também, tendo que se conformar e readaptar à chegada da República em 1889.
"Os Paranhos chegam no final da festa do Antigo Regime, e esta festa está acabando. Tudo o que eles não querem é que isso aconteça: eles partilham dos valores daquele regime e querem validá-los", explica Villafañe, que pesquisa a biografia do barão desde 2012. "O Barão do Rio Branco é uma grande janela deste mundo que está caindo e aquele que está surgindo."
'O Barão do Rio Branco é uma grande janela deste mundo que está caindo e aquele que está surgindo', aponta Luís Cláudio Villafañe
Nessa transição, o fim da escravidão expõe também a postura conservadora e aversa às rupturas de Juca. A promulgação da Lei do Ventre Livre levava a assinatura do pai, o visconde - correspondendo a uma vertente do Partido Conservador que via riscos de violência e imprevisibilidade na insistência à manutenção do trabalho escravo.
O filho teve atuação discreta neste processo e, posteriormente, defendeu uma transição gradual ao fim da escravidão - para ele, idealmente extinta somente com a morte do último cativo nascido antes da Lei do Ventre Livre. Nisso também foi vencido, já que a Lei Áurea é assinada em 1888.

Casamento tardio e a contragosto

Sem sorte no jogo da política, as coisas também não eram pacíficas no amor.
Se nos grandes planos do visconde para o filho estava a ascensão social, o casamento era um ponto crucial nesta trajetória. A realidade mostrou, porém, um cenário muito diferente da expectativa.
Juca Paranhos frequentava aquela que era uma das casas de espetáculos mais polêmicas do Rio de Janeiro, o Alcazar Lyrique du Père Arnaud, fundado na década de 1860 na atual rua Uruguaiana e uma afronta ao moralismo da época. Ali, Juca conheceu a jovem belga Marie Philomène Stevens, que foi tentar a vida no Rio se apresentando no palco do cabaré. Começou ali um relacionamento que nunca seria aprovado pelo visconde e se estendeu por mais de duas décadas, até a morte dela.
Eles tiveram cinco filhos, mas a belga nunca foi celebrada com uma parceira à altura por Juca. Por muitos anos, o barão era "oficialmente" solteiro e mantinha a família em outra casa. O casamento só veio 17 anos depois de relacionamento. No fim da vida, uma carta de Marie reproduzida na biografia escrita por Villafañe expõe as dores de um relacionamento conturbado - pelo qual, em outro documento, diz ter "pago muito caro por sua coroa de baronesa". 
"Eu já sofri tanto por ti que me é impossível responder com calma, já que tu só sabes me dizer coisas desagradáveis como quando me disse que todos seus filhos são desequilibrados porque eu sou a mãe deles e, além disso, não se discute com uma mulher que se crê louca", diz a carta.
A biografia mostra também que a vida privada e a fama de farrista pesou no círculo social e político no entorno de Juca - sendo quase um consenso que emperrou, por exemplo, sua nomeação como cônsul-geral do Brasil em Liverpool, posição que acabou por ocupar por quase duas décadas.

Visconde: morte com desgosto

É esta página da vida do filho a última que o Visconde do Rio Branco pôde ver. Há sinais de que ele morreu frustrado em suas expectativas de ascensão familiar, vendo o filho como um obscuro cônsul e longe de um "bom casamento".
"Tem até uma coisa até freudiana. O barão só vai brilhar depois que o pai morre", aponta Villafañe, atualmente diplomata do Brasil na Nicarágua.
Buscando uma recolocação na República e o contorno de dificuldades financeiras, o barão acaba conquistando de forma improvável a chefia da defesa do Brasil em uma arbitragem contra a Argentina, mediada pelos Estados Unidos, na disputa conhecida como a Questão de Palmas.
A Argentina reivindicava os territórios que hoje compõem parte do oeste do Paraná e Santa Catarina, argumentando que tratados do século 18 apontavam para uma divisão entre Portugal e Espanha definida pelos rios Jangada e Chapecó, e não pelo Pepiri-Guaçu e Santo Antônio - como seria favorável ao Brasil.
Com a assistência de auxiliares, o barão recuperou documentos e mapas em locais como o Arquivo Geral de Simancas, na Espanha, e o Depósito Geográfico do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França. Com cálculos matemáticos e interpretações historiográficas - como a de que a cartografia portuguesa era mais avançada que a espanhola no século 18 -, Juca conseguiu reunir evidências para a versão brasileira. 

Depois de se debruçar sobre montanhas de papéis em meio a noites mal dormidas, o barão tratou de conquistar também, nos Estados Unidos, autoridades e a opinião pública. Para isso, contratou um consultor jurídico nos EUA, John Bassett Moore, que abriria espaço para o acesso a membros da arbitragem americana.
"O lobby, como se comprova, é uma atividade com larga tradição nos Estados Unidos", diz a biografia de Villafañe.
Com o "trabalho inegavelmente brilhante", como classifica o autor, Paranhos Júnior foi vitorioso na disputa e finalmente consagrado por seu talento como geógrafo e historiador. Para um Brasil que se via às voltas com a violenta Revolução Federalista, a vitória contra a Argentina veio como uma redenção para o país e o presidente Floriano Peixoto. Juca foi recebido como herói nacional em meio ao carnaval de 1895, em que foi homenageado pelo Clube dos Fenianos, uma das grandes sociedades carnavalescas do Rio.
"Obviamente, ele era um grande erudito, mas ninguém sabia. Ele foi atrás (dessa conquista). E não é ilegítimo: ele foi se reconstruir como personagem. Isso é contrário às biografias em que ele aparece como um sujeito que nasceu pronto", aponta o escritor de Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco.

Frente a frente com o maior geógrafo do mundo

A fama com a Questão de Palmas o impulsionaria como principal representante brasileiro em outro imbróglio: a Questão do Amapá.
Tratava-se também de uma guerra de versões sobre rios acordados em tratados. Na prática, o Brasil poderia perder parte importante da região Norte, sobretudo na fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa. Em arbitragem mediada pela Suíça, Brasil e França foram à mesa. 
Rio Branco enfrentava um jogo mais desafiador do que o de Palmas: a proximidade histórica e cultural entre França e Suíça; além do verdadeiro exército de diplomatas, advogados e especialistas no outro lado da mesa, incluindo Vidal de la Blanche, o maior geógrafo da época.
O barão dedicava horas sem dormir desvendando documentos antigos 
Juca também empreendeu mais uma caça a mapas por arquivos na Inglaterra, Espanha e França; no caso do Amapá, adotou ainda uma nova estratégia. Infiltrou Emílio Goeldi, naturalista suíço estabelecido no Pará, para assessorar os conselheiros da Suíça em sua decisão - sanando dúvidas ou coletando impressões desfavoráveis.
"Por ora o que desejo é que v. sa. Trate de ir fazendo relações em Berna (...) é indispensável que v. sa. Não seja considerado um auxiliar meu, e sim como um cientista que apenas veio tratar de estudos ou trabalhos que nenhuma relação têm com a causa que vai ser julgada", diz um documento reproduzido na biografia, que classifica a atuação de Goeldi como um "espião sem licença para matar, mas eficaz".
"Rio Branco atuava como um exército de um só homem nas questões dos limites. Era ao mesmo tempo o pesquisador que escarafunchava arquivos em busca de velhos mapas e documentos empoeirados, o historiador que desvendava os manuscritos e criava uma narrativa consistente (...) e o advogado implacável, munido da jurisprudência e do conhecimento do direito para construir argumentos irrefutáveis", afirma o livro.
Na Suíça, a arbitragem foi favorável ao Brasil, mais uma vez fazendo do barão o centro de uma aclamação geral.
"Do Amazonas ao Prata há um nome que parece irradiar por todo o círculo do horizonte num infinito de cintilações: o do filho do emancipador dos escravos, duplicando a glória paterna com a de reintegrador do território nacional", diria Rui Barbosa sobre a conquista em 1900.

Disputa por fronteiras como chanceler

Dali para frente, Rio Branco imaginava um futuro em confortáveis postos europeus, mas teve que ceder à pressão do presidente Rodrigues Alves para assumir o Ministério das Relações Exteriores.
O Acre, região que o Brasil reconhecia como pertencente à Bolívia por três décadas, passou a atrair hordas de brasileiros pela extração da borracha. Os planos do país andino em arrendar aquele território a uma companhia com capital americano e britânico catalisou a pressão para que o Brasil reivindicasse-o. Para completar, parte daquela região era demandada também pelo Peru.
Diferentemente dos outros episódios em que foi consagrado, Paranhos apostou em um acordo direto, e não na arbitragem, para o caso. O Tratado de Petrópolis previa o pagamento, pelo Brasil, de indenização, favores e até cessão de partes do território à Bolívia. Este aceno, com perdas para o Brasil, colocou o barão sob forte escrutínio na imprensa e na opinião pública.
Rio Branco resolveu, então, escrever artigos para jornais sob um pseudônimo. "Kent", entre outros argumentos, defendia que a arbitragem seria demorada e teria um resultado incerto. Afinal, o Brasil havia reconhecido a soberania da Bolívia sobre aquele território de 1867 a 1902.
Após muitas quedas de braço, o Congresso aprovou o Tratado de Petrópolis - depois também de forte mobilização política empreendida por Rodrigues Alves e por Rio Branco.
"Sem dúvida alguma a negociação do Acre foi o desafio mais difícil enfrentado pelo chanceler; a solução alcançada, vista à distância de mais de um século, pode ser considerada um sucesso espetacular", diz Villafañe na biografia. 
O próprio Barão registraria em um dos seus escritos: "para mim vale mais esta obra (...) do que as duas outras, julgadas com tanta bondade pelos nossos cidadãos".

Um barão para a posteridade

A "bondade" a que se referiu Jucá de fato corresponde à imagem heroica que ficou de sua figura. Para Villafañe, isto é tributário de suas inegáveis qualidades, mas também é perpetuada por outras condições históricas do país.
"Uma ideia base da nacionalidade brasileira é a do território. O Rio Branco está muito associado a essa ideia. Nesse sentido, Rio Branco é um grande pai da pátria, deslocado um século (após a independência)", aponta o biógrafo.
Villafañe afirma também que, como Winston Churchill fez em relação ao conhecimento sobre a Segunda Guerra, o Barão de Rio Branco também pautou a historiografia à sua maneira - interpretação endossada com o fortalecimento do Itamaraty e a formação do Estado Novo.
Se empresta a sua figura ao país, Juca também se preocupou durante toda a vida com a imagem do país no exterior.
"Ele era elitista, mas seria injusto dizer que isso fosse pura vaidade. Nessa Era dos Impérios (expressão cunhada pelo historiador Eric Hobsbawm para resumir a dinâmica geopolítica do período entre 1875 e 1914), a visão que determinado país projetava no mundo dizia como esse país seria tratado. A África foi partilhada pelas potências europeias com a ideia de que ali não tinha nada de civilizado, então era terra de ninguém", aponta o diplomata.
"Para Rio Branco, era importante projetar para o Brasil uma ideia de estabilidade, modernidade, civilização - isso garantia uma tratamento melhor nesse mundo."

domingo, 5 de agosto de 2018

Brasil: municipios continuam dependentes de aportes externos - Mariana Alvim (BBC)

Matéria bem feita sobre a emancipação de uma cidade-bairro que tornou-se município recentemente e que, como muitos outros, provavelmente mais da metade, não dispõe de recursos próprios, dependendo de transferências federais.
Diferente da democracia de base nos EUA, onde cada unidade política precisa ser realmente autônoma, no Brasil, criar município novo significa ter cargos na burocracia pública para viver da riqueza criada por empresários e trabalhadores. Essa cultura do rentismo e do patrimonialismo precisa acabar.
Eis o que escrevi em meu trabalho de análise da Constituição de 1988 sobre essa questão:
"O Título III está dedicado à organização do Estado, sendo que o capítulo da organização político-administrativa admite, em seu Art. 18, a criação de novos estados e municípios através de plebiscito e de lei complementar federal. Ora, tendo ocorrido, logo depois de promulgada a Constituição, a criação de número excessivo de municípios sem qualquer viabilidade econômica, o assunto teve de ser regulado pela emenda constitucional n. 15 (1996), dada a absoluta dependência das novas unidades de transferências federais, em vista de sua total incapacidade em dispor de recursos próprios. Mesmo com essa limitação, estima-se que praticamente a metade das unidades primárias da federação não consegue fazer funcionar seus serviços essenciais (saúde e educação, por exemplo, mas crescentemente segurança e mesmo o quadro funcional) com base unicamente em seus próprios recursos, dependendo, por conseguinte, da redistribuição de verbas federais, o que sempre constitui foco de tensões políticas, de barganhas, quando não de chantagens recíprocas por ocasião de projetos importantes para o Executivo, que é quem controla a maior parte dos recursos públicos. 
Nota: Estima-se que, entre 1988 e 2000, tenham sido criados 1.400 novos municípios, até alcançar um total de 5.507; cf. “Iniciativa perdulária”, Editorial O Globo, 10/06/2013. O número total situa-se, em 2018, em 5.570, com todos os encargos e atributos criados para lotar prefeituras, câmaras de vereadores, secretarias municipais e outros órgãos públicos de funcionários próprios ou terceirizados, que passam a dividir o mesmo bolo federal de repartição de recursos, com as repetidas reclamações de novos fundos.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 5/08/2018

Cidade mais jovem do Brasil expõe dilemas sobre criação de municípios

Ônibus passa em frente a casa com placa que diz: "Pescaria Brava"Divulgação/Câmara Municipal de Pescaria Brava
Pescaria Brava, em Santa Catarina, foi um dos cinco municípios oficializados em 2013
Com apenas cinco anos de idade, a pequena Pescaria Brava, cidade com menos de 10 mil habitantes no litoral de Santa Catarina, já enfrenta problemas financeiros de "gente grande". 
Desde que foi criada, em 2013, já teve suas contas rejeitadas por três anos consecutivos pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina (TCE-SC). Descumpre, também, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): em 2016, mais de 71% dos gastos foram para o pagamento do funcionalismo público, acima do limite de 54% estipulado pela lei. A dificuldade vem da baixa capacidade de arrecadação própria e da forte dependência dos repasses estaduais e federais. 
Por outro lado, moradores e representantes da mobilização que levou à emancipação do município garantem ver os resultados dos clamores que justificaram sua separação do município de origem, Laguna (SC). Pescaria Brava, antes um distrito, foi criada sob a justificativa da falta de investimentos e representatividade política. Hoje, pessoas que veem a criação do município com bons olhos apontam para melhorias como pavimentação das ruas, acesso a bancos e lotéricas e expansão da rede escolar. 
É esse delicado equilíbrio, entre questões orçamentárias e as demandas da população, que ronda o debate sobre a criação de novos municípios - possibilidade congelada pela lei após décadas de expansão de novas cidades brasileiras. É esta balança também que costuma colocar em um prato especialistas em administração pública e, no outro, políticos. 
O tema voltou à pauta com a possibilidade de que a Câmara dos Deputados vote, nas próximas semanas, um projeto que pode facilitar o surgimento de novas cidades. A proposta, com origem no Senado, tramita em urgência na Câmara. Sua tramitação vem sendo acompanhada com grandes expectativas por movimentos emancipacionistas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, apoiados pela Frente Parlamentar Mista de Apoio à Revisão Territorial dos Municípios. 
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje há 5.570 municípios no país. Pescaria Brava faz parte da última leva a completar essa lista, no primeiro dia de 2013 (municípios novos são oficializados no primeiro dia do ano seguinte a uma eleição municipal). Foram cinco cidades nascidas nessa data, mas a cidade catarinense foi a criada mais tardiamente via lei estadual, em 25 de outubro de 2003 - fazendo dela o município mais jovem do país. 

Maioria dos municípios brasileiros apresenta dependência em recursos externos

"Pescaria Brava nasceu com complicações, como um descontrole na gestão dos recursos, déficits e gastos com o pessoal acima do legal. Agora, o município vem se reequilibrando, mas de forma ainda tímida", diagnostica o auditor Moisés Hoegenn, diretor de Controle dos Municípios TCE-SC, tribunal que deu parecer pela aprovação das contas de 2013 do município, e pela rejeição nos exercícios de 2014, 2015 e 2016 (o ano de 2017 ainda está sendo avaliado). 
Segundo dados da plataforma Meu Município, que mapeia informações orçamentárias de centenas de cidades brasileiras, apenas 8% do dinheiro em caixa da pequena cidade catarinense em 2016 veio de tributos próprios - impostos recolhidos por municípios, principalmente o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveise) e ISS (Imposto sobre Serviço). A maior parte da receita de Pescaria Brava veio de repasses estaduais e da União: nada menos do que 89% (cerca de R$ 16 milhões). 
Município no litoral catarinense, Pescaria Brava tem pouco menos de 10 mil habitantes
Essa é, na verdade, a realidade da maior parte dos municípios brasileiros: de acordo com o Ranking de Eficiência dos Municípios de 2016, do jornal Folha de São Paulo, aproximadamente 70% das cidades do país dependem em mais de 80% de fontes externas. 
Primeiro prefeito de Pescaria Brava e presidente da comissão de emancipação do município por cinco anos, Antonio Honorato (PSDB) avalia, no entanto, que o equilíbrio financeiro da cidade é só uma questão de tempo. 
"(Na prefeitura) Investimos na aquisição de tratores, armazenamento genético para a pecuária... Mas até ser feito o cadastro imobiliário, a planta de valores, entre outros, toma tempo", disse o ex-prefeito em entrevista à BBC News Brasil por telefone.
Procurada pela BBC News Brasil por meio de telefone, e-mail e Facebook, a atual gestão municipal de Pescaria Brava não respondeu a perguntas sobre o número e remuneração de funcionários públicos, secretários e prefeitos. Mas, em conteúdo disponibilizado na internet, informa-se que a cidade conta com pelo menos seis secretarias e nove vereadores. 

Mobilização por emancipação de Pescaria Brava remonta a 1995

Honorato explica que, entre as motivações para a emancipação de Pescaria Brava, estava a falta de investimentos ao então distrito quando o poder de decisão cabia a Laguna - aquela, com a matriz econômica baseada na agropecuária e na pesca, e esta, no turismo, segundo o ex-prefeito. 
Inclusive, aos cinco anos, Pescaria Brava tem identidade própria: além de uma Miss Pescaria Brava 2018, a pequena cidade já tem um hino que canta seus potenciais: "Na sua igreja a herança dos escravos/ Belos encantos do turismo natural/ Teus pescadores, pecuária e agricultores/ Completam tua economia potencial/ Teu comércio dedicado e competente/ De raça forte povo ordeiro se implantou/ O bravense altivo e consequente/ É semente forte que o vento não levou". 
Conta o site da prefeitura de Pescaria Brava que seu nome tem algumas origens possíveis, como a descrição de seus fortes e corajosos pescadores que lutavam contra águas revoltas ou das brigas na hora de dividir a colheita dos frutos do mar. 
Muito tempo depois e em terra firme, em um cartório, o escrivão Enaldo Cardozo de Souza se mobilizaria para realizar o "sonho de seu pai de ver Pescaria Brava emancipada", formando uma comissão emancipacionista em 1995. 
Mas o caminho teve contratempos: um plebiscito não avançou por falta de quórum, outro teve sucesso mas esbarrou no STF. Isto porque, em 1996, uma emenda constitucional congelou, na prática, a criação de novas cidades. Estudos sobre o tema apontam que, depois que a Constituição de 1988 elevou os municípios à categoria de ente federativo, houve uma intensa proliferação destes no país. De 1980 a 2000, o número de municípios brasileiros passou de 3.974 para 5.507. 
Com território destacado em vermelho, Pescaria Brava foi emancipada de Laguna
O impasse jurídico só acabou depois que uma outra emenda ratificou a criação de cidades nascidas até 2006. Em 2012, os moradores da futura Pescaria Brava elegeriam Honorato na primeira eleição municipal. 
"A emancipação foi algo ótimo. Quanto menor o quintal, melhor a roçada", diz o ex-prefeito. "Depois da emancipação, o número de postos de saúde passou de dois para quatro. Só tinha médico a cada 30 dias, depois passamos a ter cobertura de especialistas como pediatras e cardiologistas. As creches passaram de uma para sete, com um tempo mais amplo no horário integral". 
Os anos seguintes trouxeram para Honorato e a pequena cidade, porém, alguns episódios conturbados. Na eleição de 2016, o tucano foi derrotado nas urnas com a diferença de apenas um voto. O ex-prefeito acusou o pleito de fraude mas teve recurso negado no Tribunal Superior Eleitoral. Já em 2017, após a Câmara Municipal ratificar a rejeição das contas do ano de 2014, Honorato se tornou inelegível por oito anos. O ex-prefeito diz que o processo teve motivação política.
Apesar dos contratempos, Cristiano Medeiros, vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Pescaria Brava, acredita que a cidade está em uma trajetória de ascensão. 
"Nossa região é coberta pela lagoa de Imaruí, e a gente ficava do outro lado dela. Parecia que éramos uma parte de Laguna esquecida no tempo. Sabíamos que, enquanto bairro, não teríamos algumas coisas tão cedo", explicou Medeiros à BBC News Brasil por telefone. "As contas rejeitadas não tiveram muito impacto na população porque sabíamos que era tudo novo, estava tudo se criando. Agora, está chegando pavimentação, água encanada, o primeiro banco da região... Com a emancipação, o progresso foi acelerado".
Dono de uma farmácia na cidade, João Floriano também se diz otimista com o futuro da cidade. 
"Do meu ponto de vista, estamos evoluindo. Temos mais serviços, policiamento... A gestão também está criando um parque industrial e a previsão é gerar empregos, temos uma perspectiva melhor ainda", comemora o comerciante. 

Projeto similar foi vetado por Dilma Rousseff em 2014

Senador justifica projeto com casos de distritos no Pará a centenas de quilômetros de distância de suas sedes
O desenvolvimento local citado por moradores de Pescaria Brava também está no discurso do senador Flexa Ribeiro (PSDB) ao justificar o seu projeto sobre a criação de municípios que atualmente tramita no Congresso. Por e-mail enviado à reportagem, ele mencionou casos de distritos em seu Estado, o Pará, que estão a centenas de quilômetros de distância de sua sede. 
"No caso emblemático do distrito de Castelo dos Sonhos, com 15 mil habitantes, a distância da sede de Altamira é de 1.100 km. Esse distrito de Altamira se encontra engessado economicamente. Impedido de crescer, está fadado ao subdesenvolvimento", escreveu Ribeiro. 
O senador destaca que seu projeto prevê não só para a criação, mas também para a incorporação, fusão e desmembramento de cidades, a apresentação de estudos de viabilidade, plebiscitos e um volume populacional mínimo para o novo município (6 mil habitantes nas regiões Norte e Centro-Oeste; 12 mil no Nordeste; e 20 mil no Sul e no Sudeste).
O texto tem o mesmo conteúdo de um projeto aprovado na Câmara em 2014 e vetado pela então presidente Dilma Rousseff, que justificou que a medida "causaria desequilíbrio de recursos dentro do Estado e acarretaria dificuldades financeiras não gerenciáveis para os municípios já existentes". 
Um ponto essencial na discussão gira em torno do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), parte dos impostos de renda e IPI que a União repassa aos municípios. A distribuição é feita em diferentes faixas, determinadas pelo número de habitantes destas cidades. 
Mas um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2000, de autoria dos pesquisadores Gustavo Maia Gomes e Maria Cristina Mac Dowell, mostrou que, na prática, a multiplicação de municípios tirou receitas de grandes municípios para transferir aos pequenos. Isso, segundo os autores, "com o provável efeito de desestimular-se a atividade produtiva realizada nos grandes municípios (e no Sudeste), sem estimulá-la nos pequenos". 
Projeto do senador Flexa Ribeiro (PSDB) sobre criação de municípios tramita com urgência na Câmara
É comum também, entre os críticos à criação de municípios, a metáfora do bolo: ter mais cidades significa dividir o bolo por mais "bocas", sendo que a massa não necessariamente cresce. 
Em 2016, Pescaria Brava recebeu R$ 6,8 milhões via FPM. Segundo um levantamento feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) a pedido da BBC News Brasil, em 2017 somente o FPM representou 32% das receitas totais do município. 
"Isso acontece simplesmente porque eles (municípios pequenos) não têm base econômica, com raras exceções. Os impostos municipais, o IPTU, ISS e ITBI, têm uma arrecadação pequena nesses lugares. Além de uma base de arrecadação pequena, essas administrações costumam não explorar bem esses tributos, deixando de usar mecanismos como nota fiscal eletrônica e uma fiscalização eficiente", explicou por telefone à BBC News Brasil Sol Garson, especialista em finanças públicas. 
Já a CNM defende a ideia de que, nas últimas décadas, os municípios passaram a assumir mais responsabilidades "sem a correspondente transferência de recursos". 
Em material enviado para a BBC News Brasil, a confederação apresentou um exemplo na área da educação: a fixação do piso nacional do magistério que, segundo a entidade, "obriga boa parte dos municípios a gastar mais com folhas de pagamento" e acabaria comprometendo a maior parte dos recursos vindos do Fundeb - um fundo público destinado à educação básica. 
Segundo a CNM, em média, os municípios brasileiros gastam mais de 77% dessa verba na folha de pagamentos de professores e da equipe pedagógica (a lei exige um percentual mínimo de 60%), deixando o restante para demandas como a manutenção de quadras e bibliotecas, qualificação de professores, entre outros. Em Pescaria Brava, o gasto com o pessoal vem consumindo a maior parte do Fundeb que chega ao município, mas essa concentração vem diminuindo: chegou a 98% em 2015, passando para 81% em 2016 e 64% em 2017. 
O presidente da CNM, Glademir Aroldi, argumenta que a conjuntura também não tem ajudado os cofres dos municípios. 
"O desenvolvimento da economia local depende muito da economia como um todo", defende Aroldi. "A grande maioria dos municípios criados (desde 1988) melhorou na qualidade de vida. Percebemos isso quando estamos neles". 

Alternativas aos 'divórcios'

Dados de 2016 mostram que 71% das despesas da cidade vão para o custeio de pessoal
O geógrafo Fernando João da Silva, mestre em planejamento territorial, foi funcionário do governo estadual de Santa Catarina por 30 anos. Pareceres e mapas de novos municípios passavam por sua mão para serem avaliados. 
"Percebia que algumas assembleias faziam vista grossa para exigências como uma base populacional. Muitas vezes eu precisava adaptar muita coisa ou emitia um parecer contrário à emancipação, mas isso não era seguido", lembrou o geógrafo, falando à BBC News Brasil por telefone. "São necessários anos para conseguir construir a infraestrutura de um município. Imagino que existam casos de municípios que gostariam voltar ao de origem". 
Como alternativa à emancipação, Silva defende o fortalecimento da gestão de distritos - subdivisões vinculadas à administração municipal. 
A economista Sol Garson vai além.
"Seria importante fornecer meios de dar voz para populações menores, através de alguma reforma política. Criar um município para isso, com cinco ou seis secretários no mínimo, provavelmente não vai trazer mais eficiência".