O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 20 de novembro de 2011

Grandes potencias: mini crash-course de Paulo Roberto de Almeida


O que segue abaixo, sob o conceito de "Potências", foi escrito em 28 de janeiro de 2004, para servir de roteiro-guia e de base a respostas minhas em entrevista filmada para o programa Conexão Mundo, do Instituto Legislativo Brasileiro, e deve ter sido veiculado na TV do Senado Federal. Segundo meus registros, a gravação estaria disponível no seguinte link (mas não tenho certeza): http://www.senado.gov.br/sf/senado/ilb/medias/Videos_Educacionais/Conexao_Mundo/conexao02c.wmv.
 Em todo caso, segue como apoio didático, sem que eu tenha tido tempo de revisá-lo, sobretudo para levar em conta a fulgurante ascensão da China no período decorrido desde sua redação. Aproveitem, mas se forem usar como base de algum trabalho, favor referir ao autor verdadeiro.
Paulo Roberto de Almeida 

Potências: Conceitos Fundamentais

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

Brasília, 28 de janeiro de 2004

1) O que são essas potências?
            Desde a constituição dos primeiros Estados organizados, ainda na Antiguidade, existem potências, isto é, Estados poderosos, capazes de dominar os demais pelo seu poderio militar, econômico, ou pela sua simples massa física, ou seja, populacional, desproporcional em relação a outros estados ou comunidadades não organizadas de modo sofisticado, ou de menores dimensões.
            Um Estado se torna potência precisamente por passar a dominar ou a influenciar outros de modo decisivo, sem que os outros Estados ou comunidades tenham a possibilidade de responder de maneira proporcional, ou escapar a essa influência.
            No passado, um empreendimento de conquista militar de um Estado sobre outros se dava pela busca de recursos econômicos, mais frequentemente escravos, metais preciosos ou para assegurar-se de terras mais férteis para sua própria população, geralmente em expansão. Em algumas ocasiões, os motivos foram religiosos, em outras a busca de segurança, de modo mais raro.
            O que de toda forma caracteriza essas potências é a disposição de meios militares, ou tecnológicos, mais avançados do que aqueles detidos pelos povos que então passavam a ser dominados. Essa supremacia militar é ela mesma o resultado de um poder econômico mais avançado, geralmente o resultado de inovação e produtividade, isto é, a capacidade de produzir mais e melhor a partir dos recursos disponíveis.
            Em outros termos, por detrás de canhões e barcos de guerra estão indústrias, e atrás destas, empresários inovadores, inventores, administradores eficientes, sobretudo no âmbito do poder estatal, que pode desviar recursos dos agentes econômicos privados para fins improdutivos – luxo e ócio da classe dominante – ou empregá-los para aumentar o poderio do país e do próprio Estado.
            Nenhum Estado, mesmo um império poderoso, é capaz de se impor apenas pela força militar, embora esta seja a base de todos os tipos de dominação primária. Um domínio regular, ou constante, requer outros princípios organizadores, geralmente no plano econômico e até mesmo no campo dos valores, entre os quais se situa a própria legitimidade dessa dominação, que pode adquirir características simbólicas, como no caso da influência cultural.
            Não é difícil reconhecer uma potência, na história passada ou atualmente, mas é mais difícil identificar quando uma determinada potência entra em decadência, pois os sinais precursores nem sempre são visíveis.

2) Como elas se formam?
            No passado, as potência se formavam a partir da conquista militar e seu crescimento contínuo resultava na constituição de um império. O exemplo clássico é obviamente o de Roma antiga, cujo poderio, de vários séculos, foi iniciado a partir de uma pequena cidade dotada de regime republicanao e que foi aperfeiçoando os meios de se defender, e depois de atacar seus concorrentes – neste caso, os fenícios, a grande potência comercial da época – mediante técnicas militares inovadoras: legiões de soldados extremamente disciplinados e bem treinados, organizados de maneira não muito diferente ao de uma moderna fábrica industrial: chefes, diretores de linha, capatazes.
            Foram essas técnicas militares extremamente eficientes que elevaram Roma à condição de império praticamente universal, naquele mundo antigo que foi o berço das sociedades ocidentais. Depois, por diversas razões, os romanos se deixaram entorpecer pelos louros das suas conquistas e sua classe dominante deixou de cultivar as virtudes guerreiras dos pais fundadores, refestalando-se, assim conta uma certa história, no ócio e nos prazeres da vida. Foram vencidos por outros povos guerreiros, embora os historiadores discordem sobre as razões exatas da decadência e desaparecimento do império romano, já na era cristã.
            No Extremo Oriente, em contrapartida, o império chinês, também formado ao longo de uma história de invasões, conquistas e fusões de povos diversos, chegou a ser, provavelmente, o mais longo poder contínuo da história da humanidade, com alguns milhares de anos de registros de dinastias sucessivas. Ainda no século 18, a China era a maior economia do planeta, pelo menos em termos brutos, pela sua população e produção agrícola. Ela também tinha estado na vanguarda da humanidade em termos de descobertas científicas, inovações práticas – como a bússola e o papel, fundamental na difusão do conhecimento – e também desenvolveram a pólvora. Infelizmente, não souberam utilizar todas as possibilidades desse poderoso fator de supremacia militar e acabaram, já no século 19, sob a dominação de potências estrangeiras, européias, e depois também do Japão, que até meados daquele século ainda era um país feudal.
            A formação dos Estados Unidos como grande potência se deu na sequência de sua ascensão como grande economia industrial, depois financeira, e na lacuna deixada pelos imperialismos europeus, que se destruiram em duas grandes guerras mundiais. Sua confirmação como superpotência foi provocada pelo surgimento de uma outra potência inimiga, a União Soviética, com quem dividiu a hegemonia sobre os negócios mundiais durante toda a era da Guerra Fria, os quarenta anos que se seguem à Segunda Guerra Mundial.
Finalmente, sua condição atual de hiperpotência se dá no vácuo deixado pelo desaparecimento da União Soviética e como resultado dos contínuos investimentos realizados pelos Estados Unidos em tecnologias militares, eles mesmos resultantes de um sistema econômico bastante inovador e altamente produtivo.
No passado, potências se formavam e podiam desaparecer, em espaços temporais variados. Nos últimos dois séculos, ou grosso modo desde o Congresso de Viena (1815), há uma certa estabilidade hegemônica, ainda que certas potências tenham desaparecido (o Império Austro-Húngaro, por exemplo), outras surgido e implodido (como a União Soviética) e outras emergido gradual mas triunfalmente, como os Estados Unidos. Todas elas constituíam grandes territórios e grandes populações, dotadas de um certo espírito guerreiro, com a possível exceção da Grã-Bretanha, cujas bases imperiais foram acentuadamente econômicas, com o necessário suporte militar, mais baseado em técnicas superiores de supremacia do que necessariamente no peso físico de grandes exércitos. Mesmo em seu auge, o Império Britânico não mobilizou grandes tropas de ocupação territorial, sendo mais fundado sobre o poder de suas canhoneiras e na astúcia de seus homens de negócios (servidos por uma moeda ainda mais poderosa).

3) O que representam para as relações internacionais?
            As grandes potências e, em menor escala, as potências médias, eventualmente coligadas, são as únicas capazes de moldar as relações internacionais, isto é, determinar o destino das relações econômicas globais, as normas que podem ou não ser aplicadas para o relacionamento entre Estados e também o modo de trabalho e as orientações que devem ser seguidas pelas organizações internacionais, a exemplo da Organização Mundial do Comércio, do Fundo Monetário Internacional e num certo sentido até da ONU, enquanto órgão encarregado da segurança internacional. Só os Estados Unidos, no entanto, têm condições de desafiar esse mesmo sistema internacional, dado o seu enorme poderio militar, econômico e financeiro, grosso modo equivalente a quase um quarto da riqueza mundial (para uma população que não chega a cinco por cento do total da humanidade).
            A história conheceu diversos poderes hegemônicos ao longo do tempo, alguns confinados a suas regiões respectivas, como o império chinês, outros de alcance praticamente universal, em suas respectivas épocas, como o império romano, na antiguidade, o espanhol, até o século 18, depois o britânico, na época da primeira revolução industrial, e hoje, obviamente, a hiperpotência americana, cuja eventual decadência não figura ainda no horizonte histórico.
            É muito provável, assim, que os Estados Unidos continuarão a moldar as relações internacionais contemporâneas pelo futuro previsível, a partir de suas empresas, de sua língua, de seus bens e serviços culturais, que exercem poderosa influência no resto do mundo. Seu poderio militar ainda é importante, mas as bases atuais de sua dominação são propriamente econômicas e culturais, não exclusivamente militares.

4) Como são tomadas as decisões entre elas?
            No passado, em geral, de modo pouco cooperativo, já que a competição por recursos escassos sempre colocou as potências existentes em situações de confronto, quando não de guerra direta. Roma humilhou Cartago, ao ponto da destruição física, mas invadiu e dominou muitas outras nações, inclusive mais avançadas culturalmente, como a Grécia e o Egito, mas fracas militarmente. A China também colocou sob sua vassalagem muitos outros reinos vizinhos, entre eles o da Coréia. A tomada de decisões, nesse caso, só pode ser de dominador a dominado, mas as relações também podem evoluir para a cooperação, ainda que de forma assimétrica.
            No período moderno, Espanha e Inglaterra se disputaram o predomínio nos mares, com a derrota da primeira, o que permitiu a este último reino avançar por sua vez na constituição do que foi, provavelmente, o maior império de toda a história da humanidade. No começo do século 20, o império britânico se estendia praticamente a todos os continentes, sem contestação no plano militar, ou pelo menos naval. As decisões eram então tomadas segundo um princípio simples: Britannia rules the waves, ou seja, a Grã-Bretanha domina os mares.
            Em outras épocas, houve o chamado equilíbrio de poderes, com um certo status quo militar entre as grandes potências. Na era da Guerra Fria, prevalecia o chamado equilíbrio do terror, entre as duas superpotências nucleares. As decisões não eram cooperativas, mas tomadas por acomodação, para evitar um confronto direto entre elas, mas ocorriam conflitos interpostos nos espaços periféricos ao seu poder militar direto.
            Atualmente, prevalece uma certa cooperação entre as grandes potências, inclusive devido ao fim dos grandes conflitos pela conquista de territórios – como tinha sido o caso ainda menos de cem anos atrás, no início do século 20 – e a consciência de que uma grande guerra seria catastrófica para todos os oponentes. Isso não impede a existencia de desacordos entre essas grandes potências, como ocorreu ainda na invasão do Iraque pelos Estados Unidos, com uma coligação pró-invasão constituída praticamente apenas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha – esta sendo a rigor dispensável, para todos os efeitos militares – e uma frente contrária formada por dois velhos aliados, a França e a Alemanha, aos quais se juntou a Rússia. A China preferiu manter-se fora de qualquer coligação e, ainda que ela seja por vezes apontada como um poder futuramente contestador da hegemonia americana, parece também claro seu desejo de usufruir de vantagens econômicas e tecnológicas nas suas relações com os Estados Unidos, daí sua atitude basicamente pragmática na fase atual.
O Brasil, uma potência média desprovida de grandes recursos militares, tem interesse num processo decisório, a nível mundial, que preserve as possibilidades de cooperação num ambiente desprovido de pressões hegemônicas e de imposição unilateral da vontade de qualquer potência sobre os interesses dos demais estados da comunidade internacional. Seu princípio guia nas relações internacionais é, compreensivelmente, a força do direito sobre o direito da força.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004

E por falar em koala (mais um texto sugestivo, esquecido nos arquivos...) - Paulo Roberto de Almeida


O koala e a coruja
Paulo Roberto de Almeida
( 23 de dezembro de 2005)
            Os chineses têm o curioso costume de batizar, segundo um ciclo que se repete após um determinado período, cada ano do calendário com o nome de um animal, existente na natureza ou pertencente à mitologia: ano do macaco, do cachorro, da cobra, da lebre, do dragão, e por aí vai.
            Não sei se existe algum ano do koala e outro da coruja, mas agora me deu vontade de batizar, não o ano que começa, mas o ano que acaba de passar, como o ano do koala e da coruja, assim mesmo, com dois animais ao mesmo tempo. Explico porque e dou logo as minhas razões, para ninguém pensar que eu fiquei louco ou que estou, de repente, adquirindo manias chinesas. Se isso virar um hábito, assim seja: no ano que vem, invento dois outros animais (ou mantenho esses mesmos).
            É que eu tenho a maior simpatia por esses dois animais, que deveriam ser erigidos à categoria de ícones da paciência e da sabedoria, respectivamente (ou vice-versa). Já tive a oportunidade de escrever sobre “minha vida de koala”, e não vou repetir o prazer que senti em me imaginar um koala, desses bem normais, comendo suas folhas de eucalipto e descendo vagarosamente de galho em galho para ir se acomodando a uma vida tranqüila e modorrenta (na verdade, eu estava imaginando usar dois terços do meu tempo útil para ler, não para dormir, como faz o koala, mas isso não vem ao caso agora). Também admiro as virtudes “hegelianas” da coruja que, segundo aquele filósofo dialético, sempre acompanhava Minerva – Palas Atena para os gregos –, a deusa da sabedoria.
Pois bem, o que me faz introduzir esse novo hábito estranho de pretender batizar, duplamente e retrospectivamente, o ano que se passou com o nome desses dois animais? Acho que este ano de 2005 foi particularmente rico para mim, em dois sentidos: primeiro adquiri uma tranqüilidade e uma satisfação com a vida que não tinha conhecido em muitos anos; depois porque adquiri mais alguns grãos de sabedoria, que acho que têm a ver mais com a sensibilidade do que propriamente com o conhecimento.
Por um lado, parei de ter aquele frenesi de sempre escrever e publicar (talvez um livro por ano), essa terrível mania de estar sempre sentado na minha mesa de trabalho, lendo algum livro ou escrevendo algum texto. Passei a contemplar mais a vida, a ver as coisas com outros olhos, a caminhar pensando no muito que já fiz e no muito que ainda tenho por fazer. Nem tudo é uma questão de produtividade: aliás, se formos aplicar esse conceito ao koala, ele entra no Guinness dos recordes da improdutividade, vagabundagem e preguiça. A sua produtividade deve ser marginal ou próxima do zero: ele é a própria “teoria da classe ociosa” – a famosa leisure class, copyright do Thorsten Veblen –, a imagem mesmo do dolce far niente, um monumento ao droit à la paresse, como diria o Paul Lafargue, uma completa oisiveté, ou como diria o douto Bertrand Russell, in praise of idleness. Agora, me dou ao luxo de não fazer nada, ou melhor, contemplar a natureza e as coisas belas da vida, de preferência algo que combine beleza interna e externa, forma e conteúdo, caráter e substância.
Por outro lado, adoro a coruja, pelo que ela tem de simbolicamente profundo, de sensível, de olhos inteligentes e argutos, sempre atentos e prontos para entrar em ação no melhor momento de fazê-lo. Ela é, ao mesmo tempo, contemplativa e ativa, silenciosa e altaneira, expansiva e retraída, triste e alegre, aberta e fechada, enfim, “filósofa” e “normal”, digamos assim. Ter uma coruja como companhia é uma garantia de reflexão ponderada, mas também de raciocínio rápido, impecável na lógica, mas dotado de rara sensibilidade, como se ela nos transmitisse, de uma só vez, certezas e dúvidas, segurança e inquietação. Acho que todas essas características contraditórias são próprias do pensamento curioso, animado de um ceticismo sadio, das almas sensíveis aos desígnios da criação inovadora, mas também da preservação da boa tradição. É a coruja quem fica por cima do ombro do filósofo, provavelmente assoprando-lhe ao ouvido o que ele poderia cogitar sobre uma dada situação na vida, ou sugerindo-lhe alguma solução genial a um problema inesperado.
Por tudo isso, e também pelo prazer que essas figuras mais do que simbólicas me deram ao introduzir um novo significado em minha vida neste ano de 2005, não hesito um só instante em batizar, retrospectivamente, este ano que se encerra como o ano do koala e da coruja. Espero que esses simpáticos animais venham me visitar novamente em 2006, e que esta situação possa durar até onde a vista alcança...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, Sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Minha vida de Koala (um texto PRA, jamais publicado)


Minha vida de koala
fábula fabulosa (à la manière de La Fontaine)

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

E se eu não fosse quem eu sou?
A pergunta faz sentido, sobretudo se colocada no contexto da herança deixada pelos “anos de chumbo”, nas décadas de 60 e 70, quando muitos opositores ao regime militar então em vigor tiveram de assumir outras identidades, de maneira a resguardar a segurança pessoal ou a dos familiares. Alguns aderiram à nova identidade e gostaram tanto da “personalidade alternativa” que preservaram a vida do alter ego mesmo depois de plenamente restabelecida a democracia no Brasil.
Não foi o meu caso, mas ainda assim a pergunta toca numa corda sensível, já que implica que eu poderia ter nascido sob outro nome, ter tido uma outra história de vida, ter sido uma pessoa completamente diferente daquela que se apresenta agora sob esta identidade de funcionário público e professor universitário, completamente desprovido desta aparência anódina de intelectual de gabinete. Eu bem que poderia ter sido, a despeito deste ar tranqüilo de “combatente da pluma”, um perigoso contraventor da lei e da ordem, um “subversivo” como então se dizia, um marxista enragé (e engagé) ou então um anarquista franco-atirador, tão ameaçador da saúde das instituições en place quanto o libertário radical que de fato eu sou atualmente. Tampouco foi o meu caso, mas caberia considerar seriamente a hipótese levantada acima, pelo menos teoricamente, e talvez até mesmo hipoteticamente, num terreno situado externamente à espécie humana.
Sim, vejamos: se eu não fosse este bípede leitor e escrevinhador, com este jeito de eternamente distraído e sempre absorto em alguma leitura atrasada, o que eu poderia ser? Ou melhor: o que eu gostaria de ser? Boa pergunta esta, mas a resposta já foi dada acima, assim que o resto da fábula não apresenta mais surpresas, apenas curiosidades.
Com efeito, considerando todas as possibilidades disponíveis no reino animal – não, eu não estava considerando nada nos reinos vegetal ou mineral – e as alternativas indicadas no caso de um cidadão pacato como este que vos fala e escreve, fiquei bastante tentado a, numa segunda (ou em qualquer outra) encarnação de vida, formular ao todo poderoso senhor criador de todas as coisas meu desejo de voltar ao mundo como koala. Pausa para explicar essa do “criador”, num texto de um “materialista vulgar”, ou pelo menos um “irreligioso” assumido. A justificativa é perfeitamente lógica: num exercício que se pretende de “reencarnação”, o mínimo que se poderia querer, como fiat inescapável, é a existência de um criador supremo, que fica brincando com a vida da gente, dando a um sapo a conformação de um príncipe, a uma barata a beleza de Nefertite ou a um fracote poderes de Napoleão (mas existem muitos concorrentes neste caso).
Pois bem, por que, exatamente, eu gostaria de ser esse estranho animal do tão distante continente australiano? Por algumas razões muito simples: aprendi que o koala passa 80% do seu tempo dormindo, 10% comendo e os 10% restantes apenas esperando a próxima refeição ou o próximo dodô (sitting-by, dizem os australianos). Para quem só passa 20% do seu tempo dormindo, essa perspectiva é verdadeiramente fabulosa, digna de algum La Fontaine do sono. Não sei se os koalas são todos funcionários públicos do Serviço Zoológico Nacional da Austrália, mas esse emploi du temps me parece bom para aposentados, preguiçosos ou hedonistas de maneira geral (o que eu ainda não sou, mas um dia chegarei lá). Trata-se de uma repartição de ocupações que melhor reflete um ideal de cultura zen, contemplativa, que não pode fazer nenhum tipo de mal à humanidade, à condição, obviamente, que se tenha de onde tirar o alimento.
Os ecologistas mais radicais por certo me apoiariam nessa reencarnação, pois eles estão sempre querendo nos fazer voltar ao equilíbrio da vida natural, distanciada da vida agitada da civilização e seus nefastos efeitos poluidores. Como isso não parece perto de ocorrer na minha vida terrena, vejamos como eu poderia organizar minha vida para me aproximar daquela distribuição fabulosa de tempo, desde que invertendo, está claro, a repartição de tarefas para melhor refletir minhas prioridades de vida.
Atualmente, passo 60% do tempo trabalhando (no meu emprego assalariado e em tarefas acadêmicas auto-assumidas), 20% dormindo e o quinto restante numa variedade de ocupações familiares, locomotoras, alimentícias e duchísticas (sem esquecer a lista do supermercado). Não está mau, mas poderia estar melhor se eu tivesse um modo koala de ser. Vejamos como isso seria possível.
Eu acordaria às 11 horas da manhã, não precisaria ler as últimas notícias daquele chatérrimo jornal conservador do qual sou assinante, não correria para consultar e-mails, não teria, sobretudo, de sair correndo de casa para o trabalho, tentando demonstrar a mim mesmo que as muitas horas empregadas durante a noite em leituras sonolentas e em navegações na internet são de fato “úteis” para aquele novo trabalho que pretendo terminar ainda nesta manhã (hélàs, ainda não foi desta vez). Não precisaria mais usar gravata nem paletó e poderia sair de casa sem lenço e sem documento.
Ou melhor: eu não sairia, eu ficaria. Eu simplesmente desceria lentamente do meu galho-cama para o galho-cozinha, me serviria de algumas folhas de eucalipto e, voilà, já teria ganhado metade do meu dia. A caminho (lentamente) do galho-biblioteca, eu daria um bom-dia à patroa e às crianças, não teria de me ocupar do horário da escola, do dever de casa, das compras de supermercado, da arrumação da mesa da sala, da retirada de jornais do dia anterior e, sobretudo, de lavar a louça das refeições. Em muito menos tempo do que se emprega para dizer saperlipopette, eu teria alisado os pêlos, lambido os beiços do resto de suco de eucalipto e estaria pronto para me dedicar ao esporte favorito de todo koala: dormir (não sei quando eles arrumam tempo para a reprodução da espécie).
Mas, alto lá: eu sou um koala diferente. Nasci e me criei no galho-biblioteca, para onde devo ter sido arrastado por alguma lufada dos bons ventos australianos. Desde então me acostumei a dormir no meio dos livros, a caminhar lendo livros, a sonhar com livros e a me imaginar vivendo uma vida só de leituras e de resenhas de livros. Ainda vou fazer isso e talvez nem precise de uma outra encarnação; esta mesma daria conta do recado. Só preciso de um orçamento do tamanho do da Library of Congress, de uma boa rede à sombra das palmeiras, de um estoque de água mineral com gás, de um laptop wireless dotado de dictavoice e de uma assinatura da The New York Review of Books. O resto é supérfluo, inclusive as palmeiras (na verdade detesto exibicionismos).
Ainda vou fazer isso, ainda que possa demorar mais um pouco: só me falta aprender a gostar de folhas de eucalipto (que devem ser horríveis…).

Moral da história: você não precisa deixar de ser quem você é, para fazer aquilo que mais lhe dá prazer na vida: basta um pouco de imaginação e paciência de koala…

Washington, 7 de setembro de 2003.
Brasília, 19 de novembro de 2004.

Woody Allen: tem os que gostam...e tem os que adoram...

Por acaso, antes de "cair" neste artigo do Washington Post deste domingo, sobre o prolífico cineasta, eu acabei de ver/rever, nesta madrugada, o horrível "Bananas", certamente um dos PIORES filmes de Woody Allen, com o desconto de que se tratava de um filme de começo de carreira do autor-cineasta-intelectual, num momento em que a revolução cubana ainda era levada seriamente ao norte e ao sul do hemisfério. Como sempre, comparecem os temas habituais do autor: a gozação com as ideologias políticas, os judeus (ah, os judeus), e sobretudo as dificuldades dos relacionamentos pessoais, sobretudo amorosos (ou no caso dele, sexuais).
Em todo caso, gostei muito do "Midnight in Paris", para onde estou indo por quatro meses em Fevereiro e onde espero encontrar personagens tão memoráveis quanto os que encontrou o personagem principal. Como muitos sabem, ou não sabem, o verdadeiro nome de Woody Allen é Allen Stewart Konigsberg.  Por acaso, também, estou indo para Koenigsberg, atual Kaliningrad, depois de deixar Paris at midnight...
Deleitai-vos, com o documentário, I mean...
Paulo Roberto de Almeida

PBS’s ‘Woody Allen’: The resilient, horn-rimmed genius opens up at last

By 

The Washington Post, November 18, 2011

What comes through most in “Woody Allen: A Documentary,” Robert Weide’s thoroughgoing two-part PBS profile of the nebbishy auteur, is that Allen, who has made such a career out of neuroses, phobias and other assorted worries, seems nearly unaffected by what anyone has ever said about him or his work.
That’s a shame, if only because so much has been said and written about Allen. Millions of words, thousands of column inches, entire film-theory dissertations, bestselling biographies; critical raves, pans and verbose analyses. Entire forests have fallen so that people could tell other people what they think of Woody Allen and what his movies have meant. (And still another forest fell in the tabloid chronicling of his scandalous breakup and custody battle with Mia Farrow in the 1990s.) None of it ever made much of a dent, according to the man himself.
“Woody Allen” does a nice job of surmounting all that has been said before and packaging it into a tidy, informative mini-epic. The film, part of the “American Masters” series, is helped immensely by the fact that Allen, who will turn 76 on Dec. 1, cooperated happily and at quite some length, granting Weide lots of access to his closest collaborators and his thought processes. He answers questions this time around about his work and life in ways that he’s been reluctant to do in the past. Even now, he is still far too humble. When he saw the finished print of his 1979 film “Manhattan,” one of his greatest, he recalls being so sickened that he offered United Artists an entirely new movie, free of charge, if they’d agree to shelve it.
At 195 minutes in length (split in two partsis exhaustive without being overwhelming., Sunday and Monday nights at 9 p.m. on most PBS stations), “Woody Allen” It’s not entirely clear why the time has come for what, in some moments, feels like a sunset homage — especially because Allen is still cranking out a film every year, is physically fit and had parents who lived to the ages of 96 and 100. His most recent film, “Midnight in Paris,” has become his biggest box-office hit. “My relationship with death remains the same,” Allen is seen telling a press conference at a film festival. “I am strongly against it.” There is no indication that he intends to slow down.
Nevertheless, the time has come to talk about methods, theories, inspiration, legacy. This includes opening the nightstand drawer in his master bedroom, where Allen keeps a disorganized pile of scraps of paper on which he has jotted stray ideas for movies. When it’s time to make another one (which is always), he returns to this drawer to scrounge around for a little more brilliance.
* * *
“Woody Allen” begins with his unremarkable if slightly odd Brooklyn boyhood (he was born Allen Stewart Konigsberg); his utter failure as a student (“I hated school with a passion. . . . To this day I think of it as a curse,” he says, walking past P.S. 99); his early love for films at the neighborhood Jewel theater (immortalized in 1985’s “The Purple Rose of Cairo”), and how his childhood memories have inspired scenes or themes in some of his movies. The documentary then works forward chronologically with Allen’s earliest attempts at writing and performing stand-up comedy in Manhattan nightclubs and Upstate resort towns.
As his shtick catches on, he becomes a go-to 1960s proto-nerd, making himself available to variety shows and talk shows to kvetch and crack one-liners about romance or life’s little annoyances (eons before Jerry Seinfeld) or partake in stunts such as getting in the boxing ring with a kangaroo on “Hippodrome” in 1966. (Or, on a different TV show appearance, sing “Little Sir Echo” with a howling pooch.)
We’ve become so accustomed to Allen looking like an old man these days that to see him as a striving young buck, full of exuberance (or, at least, the Woody Allen version of exuberance) may be something of a revelation to younger viewers.
Therefore, when Diane Keaton — who has been Allen’s muse, co-star and ex-lover — expounds on how she was irresistibly attracted to the man, it begins to make sense when you see him in action, circa 1970. Belatedly, perhaps, one awakens to the notion of the sex appeal behind the horn-rimmed glasses. That’s not news to those in whom Allen’s pre-“Annie Hall” zaniness inspired geek lust, but it might be news to viewers in 2011.
Funny equals sexy, and vice versa. “Woody Allen,” though intent on cracking the enigmatic emotional armor of its subject, makes great use of old interview footage where Allen was just tossing out riffs and jokes in his early years. In one clip, from the early ’70s, a British interviewer asks him: “Who was the first movie star you met, can you remember?”
“Uh, yes,” Allen deadpans. “I met Trigger, who was Roy Rogers’s horse, um, at a party.Actually, I picked him up at a party, and we had an ongoing relationship for two years after that. Which I’m very proud of.”
“Did you ever meet Roy Rogers at that time?” the interviewer asks, starting to giggle, while Allen remains completely stone-faced, chin in hand.
“No, I had no interest in meeting Roy Rogers. But I loved living with his horse.”
“But what about the smell?”
“[Trigger] didn’t mind that so much.”
* * *
Then come the movies, nearly four dozen of them and counting, depending on what you’re counting.
Pained by his debut work in the 1965 slapstick comedy “What’s New, Pussycat?”(which he wrote and performed in) and soothed not one bit by its box-office success, Allen embarked on a career in which his own autonomy and control over the final cut had to be guaranteed.
“Woody Allen” thus becomes a serious exploration of staying true to one’s sensibility and ignoring buzz at any cost. It builds its case for Allen’s genius by examining his films in order — a true treat for loyal fans and perhaps even ambivalent critics. The documentary is enriched greatly by candid interviews with all of Allen’s closest associates (producers, his casting director, cinematographers) and his muses, including Keaton; his second wife, Louise Lasser; “Manhattan” co-star Mariel Hemingway.
Part 1 concludes with the critical disappointment of 1980’s “Stardust Memories,” which was such a comedown for Allen’s devotees after the success of “Annie Hall” and “Manhattan.” Part 2 is about Allen’s continued evolution through the ’80s and ’90s toward the tragic, the comic and, most perfectly, the tragicomic.
It goes without saying that Mia Farrow doesn’t turn up to share her own special knowledge about the enigma that is Allen, given the couple’s explosive breakup after he began a relationship with Farrow’s then-21-year-old daughter, Soon-Yi Previn. (Allen and Previn married and have been together for 19 years now.) Allen speaks of Farrow so politely here, with respect for her talent and dedication to their many movies together. Everyone interviewed is kind and so careful to use past-tense verbs when speaking of her that it might come as a shock to some viewers to learn that Farrow is still alive.
But she is nonexistent in the particular, by-the-book routine world Allen has built for and around himself, including a rosy vision of New York that Allen himself is the first to admit is a fantasy, and only Martin Scorsese is willing to criticize as being too unreal. It’s a Manhattan nearly devoid of the poor or minorities. The only poor people he liked portraying were scraping by in the Great Depression or war era.
Though it doesn’t need to be longer, “Woody Allen” could stand to exchange some of its admiration for a more analytical look at how Allen frankly and subtly interpreted, mocked and celebrated the Jewish American experience in his material. It should also, at some point, have addressed the near-absence of black people in his films (“Deconstructing Harry” and “Melinda and Melinda” being two unnotable exceptions), even though Chris Rock is interviewed for the documentary and probably would have been glad you asked.
This is worth bringing up, because Allen will go down in history as one of America’s finest filmmakers, whose appeal was nevertheless limited, as if meant only for “sophisticated” moviegoing audiences. Is that limited appeal some kind of appealing limitation? Do the subliminal class cues — the nice apartments, the buoyant social gatherings at which the protagonist nevertheless experiences existential ennui — cast a disproportionate charm spell on the discerning filmgoer, especially now that Allen is applying the same idealized rinse to films set in London, Barcelona and Paris?
That’s probably material for someone’s else documentary. Fan of Allen’s oeuvre, meanwhile, will enjoy putting faces and voices to the names we’ve seen set in requisite, plain white Windsor font in the credits of his movies, and they offer invaluable insight into how Allen writes, directs and frets over his projects — and how swiftly he moves on to the next one. They are particularly helpful at recalling how he coped with the tabloid deluge that accompanied the Farrow split, especially in a montage in which, to a person, they talk about Allen’s ability to “compartmentalize” not only his emotions but how he deals with the world around him.
By being so thorough a review of his many works, “Woody Allen” will remind viewers of how many mediocre films we’ve sat through in dumpy art-house theaters, simply because his name was on them. The clunkers are as much a part of his story as “Annie Hall, “Hannah and Her Sisters” and “Crimes and Misdemeanors” (and later, “Bullets Over Broadway,” “Match Point” and “Vicky Cristina Barcelona”).
As his most faithful moviegoers know all too well — and as Allen talks about with a whiff of his studied despair — the brilliance doesn’t always come. But it does keep coming, like clockwork.
How? Why? “Woody Allen” is the closest we’ve ever come to learning the answers.

American Masters:
Woody Allen — A Documentary

(195 minutes, in two parts) airs Sunday and Monday at 9 p.m. on WETA and MPT.
© The Washington Post Company

Vargas Llosa: uma entrevista em Madrid (revista da TAM)


Confidências de um escrevinhador


Mario Vargas Llosa
Entrevista a Emilio Fraia
Revista TAM nas Nuvens, novembro 2011

Na Calle Flora, em Madri, no terceiro andar de um antigo prédio, vivem dezenas de hipopótamos. Nas estantes, mesas, e, emoldurando a imensa biblioteca, os bichos acompanham seu dono, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, de 74 anos, que os observa orgulhoso. “Eles são feios, dão impressão de brutalidade, mas na verdade são delicados”, diz. “Gosto deste paradoxo.” Quando Vargas Llosa estreou na Inglaterra sua peça Kathie e o Hipopótamo, nos anos 80, os atores o presentearam com algumas miniaturas e, desde então, os animais — de vidro, madeira, porcelana ou coloridos — habitam a sala onde Llosa concedeu esta entrevista semanas antes de ganhar o prêmio Nobel de Literatura de 2010.

Enquanto uma de suas netas brincava no chão da biblioteca, o autor de "Pantaleão e as Visitadoras", "Conversa na Catedral" e "Tia Julia e o Escrevinhador" falou de como Paris deixou de ser a capital cultural do mundo, exaltou sua experiência no sertão da Bahia em 1979 e contou como suas temporadas fora de seu país natal foram decisivas para que compreendesse a América Latina. “Conhecemos melhor nosso país quando viajamos.” No dia 14 de outubro, Llosa marca presença como conferencista convidado do evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre (www.fronteirasdopensamento.com.br).

Quando seu pai o colocou no Colegio Militar Leoncio Prado, em Lima, ele esperava que você deixasse de lado o gosto pela literatura. Mas aconteceu o contrário, não? Nunca li tanto quanto naquela época. A solidão do internato, sobretudo nos fins de semana, teria sido insuportável sem a leitura. Eu tinha 14 anos e ficar internado me causava imensa claustrofobia. A leitura era uma liberação, uma maneira de escapar. Dessa época, me lembro de ter lido Os Miseráveis, de Victor Hugo, o que foi uma experiência muito importante. A lembrança de Victor Hugo está intimamente ligada aos meus dois anos no colégio militar porque, sem dúvida, ele foi, com Alexandre Dumas, o melhor amigo que tive lá dentro.

Li toda a série de Dumas, Os Três Mosqueteiros, tudo. Li muitos romances de aventura e romances franceses. Meu pai me colocou naquele colégio para que os militares me curassem daquilo que ele chamava de “enfermidade literária”. Mas acabei lendo ainda mais, e ganhei a experiência que me permitiu escrever meu primeiro romance, A Cidade e os Cachorros. Também escrevi muito no colégio. Era um escritor profissional, escrevia cartas de amor e historinhas pornográficas para meus colegas. Trocava os textos por cigarro e, às vezes, por algum dinheiro.

Dois de seus primeiros livros, Os Filhotes e A Cidade e os Cachorros, tratam da passagem da infância para a vida adulta, e isso é marcado por certa violência. A transição para a vida adulta é sempre uma experiência traumática?Minha entrada no colégio militar foi mesmo traumática. Ali se vivia uma violência até então desconhecida por mim. Eu morava em um bairro protegido, Miraflores — os meninos dali não conheciam a violência brutal de outros setores do país. Na escola, chegavam meninos de todas as classes sociais, era um microcosmo da sociedade peruana. Lá, ricos, pobres e classe média viviam juntos; brancos, cholos, índios, negros, chineses. O clima era tenso. Havia também o machismo militar que estimulava um certo aspecto viril. Ao mesmo tempo, a experiência me fez conhecer melhor a realidade peruana.

No fim dos anos 50, quando você foi a Paris, a cidade era uma espécie de capital cultural do mundo. Ela continua sendo esta cidade? Não, isso mudou muito. Hoje, há outros centros culturais. Os jovens vão para Nova York, Barcelona, Madri, Berlim. Também é muito mais difícil se instalar na Europa, há uma espécie de paranoia em relação à imigração. Quando eu era jovem, Paris se apresentava como a capital da cultura, das artes. Em todo o mundo, jovens que tinham vocação literária ou artística sonhavam ir a Paris. Continua sendo uma cidade bela e importante do ponto de vista cultural, mas não é mais o centro magnético que costumava ser.

Quando chegou a Paris, em 1959, a primeira coisa que fez foi comprar um exemplar de Madame Bovary. Acredita que se tivesse comprado algum outro romance, sua história como escritor teria sido diferente? Certamente. Essa foi uma experiência fundamental para mim. Não só porque os romances de Flaubert me deslumbraram, mas porque me ajudaram a me tornar escritor. A correspondência de Flaubert talvez seja a melhor iniciação que se pode ter. Ele foi um escritor que trabalhou seu talento. Não tinha um talento natural. Ele se impôs um sistema de rigor, de exigência, de autocrítica e de imenso trabalho, e isso fez brotar talento onde não havia. Nesse sentido, Flaubert foi um mestre. Ele me mostrou o tipo de escritor que eu queria ser.

Você já morou em Lima, Paris, Londres, Barcelona. Há 15 anos, vive em Madri. O que costuma fazer? Eu tenho uma rotina disciplinada. Acordo perto das 6 da manhã, caminho por 1 hora e faço exercícios. Esse momento é quando preparo o trabalho do dia, crio o clima para começar. Depois, leio os jornais — sou um grande leitor deles, gosto de saber de tudo o que acontece. Então, começo a trabalhar. Trabalho até às 14 horas, sempre em casa.

À tarde, muitas vezes, vou a alguma biblioteca ou café. As horas mais criativas são sempre as da manhã. À noite não trabalho. Vou ao cinema, ao teatro, a concertos. De segunda a sábado, trabalho no livro que estiver escrevendo e, aos domingos, escrevo artigos. Viajo muito também, e quando viajo não interrompo esta rotina. Trabalho onde estiver. Há pouco estive de férias com a família em Mallorca, aqui na Espanha. Ficamos uma semana e trabalhei da mesma forma.

Embora você sempre passe alguns meses do ano em Lima, seu olhar sobre a América Latina se modificou, depois de anos na Europa? Qual a importância de reelaborar um país, uma cultura, em outro país? Para mim, isso sempre foi fundamental. Porque eu vivi mais tempo fora do Peru do que no Peru. Isso me deu uma visão mais objetiva. Conhecemos melhor nosso país quando viajamos ou saímos dele. Conseguimos, então, enxergar e julgar melhor as distorções que, muitas vezes, o patriotismo produz. Posso dizer que descobri a América Latina na Europa.

Eu não me sentia latino-americano enquanto vivia no Peru. Aqui, descobri que era um latino-americano, que participava de uma comunidade, que tinha uma série de denominadores comuns, tradições, problemas, uma missão cultural. Ao mesmo tempo, a experiência de viajar também foi imprescindível. Viajar me salvou de uma certa visão estreita, nacionalista e provinciana.

Você esteve no Brasil muitas vezes. Qual delas foi a mais marcante? Sem dúvida foi marcante conhecer os lugares onde se passa Os Sertões, de Euclides da Cunha, para depois escrever A Guerra do Fim do Mundo, sobre a Guerra de Canudos. Em 1979, estive nos 25 povoados do interior da Bahia e do Sergipe por onde Antonio Conselheiro teria passado, ouvindo os filhos e os netos daqueles que o haviam escutado.

Talvez uma das maiores emoções que tive na vida foi estar no lugar onde ficava Canudos. E guardo sempre a lembrança de grandes amigos brasileiros, como Jorge Amado, Rubem Fonseca, Nélida Piñon. E João Guimarães Rosa, um dos grandes autores latino-americanos, de quem sempre fui admirador. Grande Sertão: Veredas é uma obra-prima e, infelizmente, um livro muito mal traduzido para o espanhol.

Você já escreveu que “o mundo sem romances teria como traço principal o conformismo”. Por quê? Creio que o romance sempre foi um testemunho rebelde, de insubmissão. Em todas as épocas, os romances flagraram nossas carências, tudo aquilo que a realidade não nos pode dar e que, de alguma maneira, desejamos. Começamos a inventar porque o mundo não nos parece suficiente. O romance se situa justamente nessa compensação que o ser humano busca quando entende que a realidade não o satisfaz completamente.

Por esse motivo, ele sempre causou desconfiança nos governos, nas instituições que pretendem controlar a vida. As religiões e os regimes autoritários nunca foram simpáticos ao romance. E penso que têm razão: ele é mesmo um gênero perigoso, porque provoca a imaginação, os desejos, e nos faz sentir que a vida não é o bastante, que ela não consegue aplacar todos os nossos apetites e sonhos. O romance tem a ver com esse espírito rebelde. A invenção de outro mundo, de outra realidade, onde podemos nos refugiar e viver. Escapar por meio da fantasia. Acredito que essa é a origem de toda ficção.

Em novembro será lançado [na Espanha e na América hispânica, sem data ainda no Brasil] seu novo romance, El Sueño del Celta, baseado na vida de um diplomata irlandês, Roger Casement. O que chamou sua atenção nesse personagem?Descobri Casement ao ler uma biografia de Joseph Conrad. Casement esteve na África e também na Amazônia brasileira e peruana. Foi cônsul britânico no Congo belga e dedicou duas décadas da sua vida a denunciar as atrocidades do regime de Leopoldo II naquele país. Denunciou também as terríveis condições vividas pelos indígenas na Amazônia, o que influenciou de maneira decisiva a opinião pública da Europa e dos EUA. Foi também importante para a independência da Irlanda. Casement levou uma vida muito aventureira. Ele foi grande amigo do Conrad, acompanhando-o em sua jornada africana. Conrad escreveu Coração das Trevas em grande parte graças a ele.

Falando em África, gostei muito da sua coleção de hipopótamos. Tenho muito carinho por esse bicho. É um animal dócil, tem o paladar delicado e uma incrível propensão ao amor. Suas principais ocupações são tomar banho, chafurdar na lama e fazer amor — eles podem passar mais de 12 horas copulando. Gostaria de fazer amor como os hipopótamos. Conseguiram o que os hippies jamais conseguiram verdadeiramente: levar a cabo a máxima “paz e amor”.

Llosa pelo estômago

“A gastronomia peruana está na moda. A criatividade dos peruanos revelou-se de forma extraordinária na cozinha — os guisados, molhos, condimentos, ingredientes. Uma das razões, acho, é porque tivemos sempre uma tradição muito repressiva. A nossa imaginação se orientou para uma atividade em que não era perigoso ser imaginativo: a gastronomia. Gosto muito da comida do sul do Peru, da minha terra, Arequipa.

O chupe de camarão, por exemplo. É uma sopa espessa, muito picante. Em Madri, há um restaurante peruano muito bom, Astrid y Gastón (Paseo de la Castellana, 13). Cozinheiras nativas preparam os pratos e os ingredientes são trazidos de Lima. Também aprecio muito a culinária espanhola. Gosto da Casa Lucio (Calle Cava Baja, 35) — o ovo frito com batatas é sensacional, inimitável. Também vou ao Lhardy (Carrera de San Jeronimo, 8), um dos restaurantes mais antigos de Madri. Para quem gosta do cozido madrilenho, este é o lugar ideal."