O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Abra sua Igreja, ou seu partido: duas maneiras de ganhar dinheiro facil e viver bem... - Paulo Roberto de Almeida

Um texto antigo, mas que ainda guarda validade (e como...):

O partido inorgânico da classe ociosa
Paulo Roberto de Almeida 

            Quem não gostaria de ganhar dinheiro sem fazer força? De preferência com o dinheiro vindo até você. Melhor ainda quando ele pinga sem impostos. Pois não que é existem essas vacas leiteiras, com poucos riscos e sem grandes investimentos iniciais? Basta ter saliva, um microfone e uma boa disposição para aprender a Bíblia. Refiro-me ao grande negócio das empresas religiosas, ou melhor, das igrejas comprometidas com a salvação de sua alma, contra modestos 10% da sua renda. Estou esperando o novo Lutero que vai despejar a sua fúria contra a venda de indulgências. Podia ser um procurador da República desconfiado com tanta devoção, mas a fé do povo brasileiro não deve permitir ataques contra obras de embromação religiosa. Enquanto esse Lutero não aparece, fico imaginando uma dissertação de mestrado sobre o espírito empresarial desses homens da fé, responsáveis, talvez, por algo como 5% do PIB brasileiro (minha estimação do volume de negócios é de cunho monetário-religioso).
            Olhando as belas construções arquitetônicas que brotam nas cidades brasileiras, suplantando as modestas edificações da igreja romana, pergunto-me se o governo não podia fazer PPPs, isto é, parcerias público-privadas, com alguns desses empresários da fé, dando-lhes, por exemplo, a administração da Febem, de presídios ou até mesmo de algumas universidades públicas, que parecem ter entrado em decadência irremediável. Estou certo de que, em pouco tempo, eles conseguiriam transformar esses poços sem fundo em lucrativos negócios.
            Mas existe um outro negócio quase tão bom, ou quiçá melhor, do que esse da exploração da fé e da ingenuidade do bom povo do Brasil. Refiro-me à criação de um partido político orgânico, dedicado à organização do povo em prol da transformação fundamental do país e comprometido com a redistribuição da renda, a começar pela dos particulares e a do próprio Estado. Aliás, o Estado não tem renda própria, ele só redistribui o que recolhe nos bolsos dos contribuintes compulsórios, que somos todos nós, e nos caixas oficiais das empresas que ainda sobrevivem no Brasil.
Estou certo de que você já ouviu falar do gigantesco empreendimento comercial que é esse do partido que nos governa, com muito charme e dedicação. Não é que ele conseguiu montar um esquema imbatível, inesgotável, de arrecadação (obrigatória e voluntária) de recursos financeiros? Renda garantida: anualidades para os simples sócios, mensalidades para os felizes detentores de cargos públicos, taxas para os nomeados não por mérito próprio mas por deterem carteirinha de membros, contribuições compulsórias para outros militantes da causa, enfim, um sistema complexo, eficaz e implacável de extração de recursos que faria corar de inveja qualquer empresário religioso ou capitalista digno desse nome. Até um negócio modesto, que antes de chamava “lojinha”, agora virou “grife” e traz artigos de uma marca que já deve estar registrada no INPI (se ainda não o fizeram, cuidado com a pirataria, pois algum mega-empresário americano poderia ser tentado a se apropriar da idéia, da simbologia e das cores).
O que eu não sei é se os militantes podem invocar o sagrado princípio capitalista da “satisfação garantida ou seu dinheiro de volta”, para reduzir o nível da extração (ou seria de extorsão?), pois nos últimos tempos tenho ouvido muita reclamação contra a continuidade das políticas da igreja, perdão, partido anterior, sem ao menos aquela compensação de eucaristia política, que resultava na transubstanciação do pão e do vinho, o que permitia um pouco de elevação espiritual. A salvação já não parece mais estar ao alcance da mão e os últimos crentes são orientados a ter um pouco mais de esperança na capacidade redentora dos velhos sacerdotes do culto, hoje um pouco mais gordos e menos messiânicos do que apareciam num passado ainda recente, de santas cruzadas contra o malvado dragão do capitalismo internacional.
Mas o fato é que, apenas por pertencer a essa agremiação quase religiosa, muita gente já está garantindo bons rendimentos, sem demonstrar perícias particulares. Tem até o caso daquele ex-sindicalista, amigo do presidente, que acumula duas vezes o salário do próprio, apenas para dirigir um centro de aconselhamento espiritual de empresas. Um sociólogo dissidente chamou-os de “nova classe”, ao que eu agregaria, seguindo Veblen, “ociosa”, pois que até agora o desempenho demonstrado não justificou os salários pagos. Mais um pouco e o partido deixa de ser “orgânico”, como queria Gramsci, para ser apenas uma máquina inorgânica de produzir dinheiro.

Mas, a pior situação deve ser a daquele militante, detentor de mandato ou cargo público e que, além disso, ainda é adepto de uma dessas igrejas empresariais: do dízimo obrigatório aos vinte ou trinta por cento do salário político (também obrigatório), o infeliz crente pode deixar quase a metade da sua renda para as arcas das duas confrarias. Amém!

Resolucoes de Ano Novo presidenciais, que nao serao cumpridas: ainda aguardando, desde 2003

No finalzinho de 2003, como é meu hábito todo final de ano, eu elaborei minhas "previsões imprevidentes" para 2004, neste caso adaptadas como resoluções presidenciais para o ano que se iniciava.
Como de hábito, também, eu não acreditava que elas fossem cumpridas e achava que a maioria permaneceria totalmente intocada.
Com exceção da questão dos transgênicos -- terreno no qual o agronegócio conseguiu reverter a posição absurda dos conselheiros ecochatos da presidência -- creio que todas as demais recomendações permanecem válidas, por serem pertinentes e por estarem ainda totalmente intocadas. No que se refere ao imposto único, a despeito de seus efeitos deletérios sobre a economia -- pelos efeitos cumulativos, em cascata -- ele poderia ser uma solução de transição, desde que fosse substituir todos os impostos federais e vários estaduais, como o absurdo do ICMS, mas creio que no computo global não seria uma solução. Proponho agora uma redução linear, escalonada e gradual, de TODOS os impostos, como preparação a uma discussão sobre a reforma fiscal. Tampouco creio que vai vir.
Não custa lembrar: o Brasil perdeu mais de dez anos nas NÃO reformas.
Quem sabe algum estadista resolve assumir as tarefas?
Neste início de 2014, dez anos depois de minhas recomendações, continuo NÃO acreditando que elas venham a ser cumpridas, sequer tocadas, any time soon...
Paulo Roberto de Almeida

Resoluções de Ano Novo
Sete tarefas presidenciais que não serão feitas
19 de dezembro de 2003

            Fim de ano: revisamos nossos erros e adotamos resoluções para o novo ano, com a ajuda do anjo da guarda. Presidentes também têm anjo da guarda, aliás vários: cortesãos, mordomos, seguranças e até mesmo algum conselheiro bem intencionado.
            O nosso presidente também deve estar pensando em sua lista de obras a cumprir neste ano do espetáculo do crescimento. Para ajudá-lo, resolvi imaginar sete resoluções que ele poderia cumprir nos próximos doze meses, com um único senão: tenho absoluta certeza de que nenhuma delas será cumprida e várias sequer tocadas.

1) Fazer um ministério manejável
            Esqueça: o que vai sair será um arremedo de reforma ministerial, com promoção dos incompetentes a algum outro cargo e uma abertura para o partido “saco de gatos”. O ideal seria uma super reforma, com redução à metade do número de ministérios, cartão vermelho para os titulares incapazes e incorporação de alguns técnicos competentes que hoje estão no banco de reservas.

2) Reforma tributária que diminua a carga fiscal
            Seria pedir muito? Afinal a reforma começou com grandes promessas de fim da guerra fiscal, desoneração do setor produtivo e racionalização do caos impositivo. Virou tragédia no final de 2003 e promete ser a comédia de 2004. Já que não há entendimento sobre uma estrutura ideal, porque não pensar naquele imposto único sobre transações?

3) Aprofundar a reforma previdenciária
            Podem reclamar os servidores públicos, mas ainda não se terminou de cortar privilégios. Uma nova reforma previdenciária é absolutamente indispensável para fazer o Brasil crescer em bases sustentáveis. O setor continua produzindo deficits que serão pagos por nossos filhos e netos. É essa a herança que o presidente pretende deixar?

4) Reforma laboral de flexibilização
            Quase a metade da força-de-trabalho está na informalidade, à margem de qualquer proteção ou regime previdenciário. Pequenas e médias empresas que poderiam contratar muito mais não o fazem por causa de uma legislação trabalhista decrépita e com alto viés de proteção formal e nenhuma garantia de empregabilidade. Presidente: enfrente os sindicatos e promova uma limpeza geral na legislação e deixe patrões e trabalhadores resolverem suas relações em bases contratuais. Estou sonhando mais uma vez?

5) Autonomia do Banco Central com Conselho Monetário ampliado
            Esses conselheiros que dizem que a independência do BC será o fim da soberania monetária devem entender tanto de câmbio e juros quanto eu de física nuclear. Promova a autonomia e pare de ouvir reclamações do vice-presidente, dos empresários da FIESP e dos economistas de oposição. Aí poderá dizer: “o assunto não é mais comigo, juros são resolvidos por um Conselho Monetário de dez membros, escolhidos de comum acordo com o Congresso dentre economistas acadêmicos e burocratas do governo, com mandato fixo mas revogável pelo Senado”.

6) Lei de biossegurança não esquizofrênica
            Sinceramente, que papelão esse projeto do governo sobre transgênicos. Paralisou todo o sistema de pesquisa em biotecnologia e pode fazer metade da agricultura deslizar para a ilegalidade. Liberte-se desse bando de ecochatos e coloque-se do lado da ciência e da tecnologia, como convém a um presidente moderno e esclarecido.

7) Aprofundar o superávit primário para rebaixar os juros
            O superávit de 4,25% está estrangulando os gastos sociais? Essa economia, na verdade, representa apenas uma parte do déficit real, que continua sendo criado, pelo fato de o governo gastar mais do que deveria ou porque acumulou dívidas que cabe remunerar ou amortizar. Um superávit menor significa que o governo renuncia a controlar os seus gastos, continuará sendo irresponsável e vai deixar um grande buraco para a sociedade. O correto seria aumentar o superávit (o governo precisa começar a produzir superávits nominais, para diminuir a pressão da dívida), única garantia de que os juros baixarão para níveis civilizados. Os que negam é porque vivem de juros ou recomendam um calote nos banqueiros. Crie coragem e diga ao Palocci para aumentar o superávit para perto de 5%. Pense que o Estado tem de deixar de ser um peso para empresários produtivos e uma mãe para os banqueiros e especuladores.


            Aí estão: sete pequenas resoluções que representam sete grandes revoluções na forma de fazer política e de praticar economia no novo Brasil inaugurado em 2003 (mas que ainda não deu a partida de verdade, segundo o presidente). Sei que é duro ter de descontentar políticos, banqueiros, funcionários públicos, juízes, políticos, ecologistas e economistas utópicos da universidade. Por isso mesmo já disse ao início que as sete tarefas não serão cumpridas, por mais que elas sejam benéficas para o povo e podem fazer a felicidade geral da nação. Em todo caso, não custa nada fazer nossa própria resolução de ano novo e esperar que o presidente a cumpra. A minha lista está aí. A conferir no final de 2004.

Brasília, 19 de dezembro de 2003
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Continuamos esperando...
PRA

Ordoliberalismo: selecao de leituras por Bruno Garschagen

Grato Bruno. 
Paulo Roberto de Almeida 

Ordoliberalismo: sugestões de leituras acadêmicas

Walter Eucken, um dos maiores teóricos do ordoliberalismo

Para os interessados em estudar o ordoliberalismo, recomendo alguns (dentre vários) textos acadêmicos:

The Freiburg School: Walter Eucken and Ordoliberalism, do professor Viktor J. Vanberg.

Ordoliberalism and the Crisis of Neoliberal Political Economy: On the Social Market, the Free Economy, and the Strong State, do professor Werner Bonefeld.

The Ordoliberal Variety of Neoliberalism, dos professores Gerhard Schnyder e Mathias M. Siems.

Von Hayek and Ordoliberalism on Justice, do professor Manuel Wörsdörfer.

Global Ordo-Liberalism, Private Power and the Transfiguration of Diplomatic Law, do professor Noe Cornago.


An Ordoliberal Interpretation of Adam Smith, dos professores Rainer Klump e Manuel Wörsdörfer.

On the Economic Ethics of Walter Eucken, do professor Manuel Wörsdörfer

On the Affiliation of Phenomenology and Ordoliberalism: Links between Edmund Husserl, Rudolf and Walter Eucken, dos professores Rainer Klump e Manuel Wörsdörfer.

Ecos da Primeira Guerra: Margaret MacMillan

Ecos da Primeira Guerra

Como as lições de um século atrás podem construir uma ordem internacional estável

MARGARET MACMILLIAN

O Estado de S.Paulo, 4/01/2014


Soldados caminham na região de Somme, na França, durante a Primeira Guerra Mundial, que deixou dez milhões de combatentes mostor e muitos feridos AFP

OXFORD - A Primeira Guerra Mundial ainda nos assombra, em parte pela escala da carnificina — dez milhões de combatentes mortos e muitos mais feridos. Incontáveis civis também perderam suas vidas, seja por meio da ação militar, seja pela fome ou pela doença. Impérios inteiros foram destruídos e sociedades, brutalizadas.

Mas há uma outra razão: até hoje não chegamos a um consenso sobre por que ela aconteceu. Teria sido causada pelas ambições desmedidas de alguns dos homens no poder? O kaiser Wilhelm II e seus ministros, por exemplo, queriam uma Alemanha maior, com um alcance global, capaz de desafiar a supremacia naval britânica. Ou a explicação está nas ideologias conflitantes? Nas rivalidades nacionais? Ou no absoluto e, aparentemente, irreversível, momentum do militarismo? Ou será que o conflito jamais teria acontecido se um evento aleatório em paragens austro-hungaras não tivesse acendido o pavio? Essa é a mais desalentadora de todas as explicações: que a guerra foi simplesmente um erro estúpido que poderia ter sido evitado.

A busca por explicações começou praticamente junto com os primeiros tiros, no verão de 1914, e nunca parou. A proximidade do centenário do início da guerra (em junho deste ano) deve nos fazer refletir mais uma vez sobre a vulnerabilidade humana a erros, catástrofes repentinas e acidentes fatais. A História, numa frase atribuída a Mark Twain, nunca se repete, mas rima. Temos um bom motivo para voltar nosso olhar para trás, mesmo mirando adiante. Se não conseguimos determinar como um dos mais importantes conflitos aconteceu, como poderemos evitar uma catástrofe semelhante no futuro?

Período menos distante do que parece

Embora o período que antecedeu a Primeira Guerra — com sua iluminação a gás e suas carruagens puxadas a cavalos — pareça muito distante, ele é similar ao nosso de muitas maneiras. A globalização — que tendemos a pensar como um fenômeno moderno, criado pela difusão dos negócios e investimentos internacionais, o crescimento da internet e a migração generalizada — também era uma característica daqueles tempos. Mesmo as mais remotas partes do mundo estavam sendo interligadas pelos novos meios de transporte — de estradas de ferro a modernos navios — e pela comunicação, incluindo aí o telefone, o telégrafo e as comunicações sem fio.

As décadas anteriores a 1914 foram, como agora, um período de dramáticas mudanças e conflitos. Novos campos para o comércio e as manufaturas estavam sendo criados, como a rápida expansão da indústria química e elétrica. Einstein desenvolvia a sua teoria geral da relatividade; novas ideias radicais, como a da psicanálise, encontravam seguidores; e as raízes de ideologias predatórias, como o fascismo e o comunismo soviético, ganhavam terreno.

A globalização torna possível a disseminação de ideologias radicais com muito mais rapidez e o agrupamento de fanáticos em busca de uma sociedade perfeita. No período anterior à Primeira Guerra, anarquistas e revolucionários socialistas por toda a Europa e América do Norte liam os mesmo trabalhos e tinham o mesmo objetivo: derrubar a ordem social vigente. Os jovens sérvios que assassinaram o arquiduque Franz Ferdinand, da Áustria, em Sarajevo, foram inspirados por Nietzsche e Bakunin, da mesma forma que seus pares russos e franceses.

De Calcutá a Buffalo, terroristas imitavam uns aos outros nos métodos de jogar bombas nas Bolsas de Valores, explodir linhas de trem e atirar nos que vissem como opressores, fossem eles a imperatriz Elisabeth, do Império Austro-Húngaro, ou o presidente dos EUA, William McKinley. Hoje, as mídias sociais oferecem novos pontos de encontro para fanáticos, permitindo que disseminem suas mensagens para audiências cada vez maiores.

Com a nossa “Guerra ao terror”, corremos o mesmo risco de superestimar o poder de uma rede fraca, de poucos extremistas. Mais perigoso ainda podem ser nossos erros de interpretação sobre as mudanças na guerra. Há cem anos, a maior parte dos planejadores militares e dos governos civis entendeu a natureza do conflito que estava por começar de forma catastroficamente errada.

Os grandes avanços em ciência e tecnologia na Europa e a crescente abertura de fábricas durante o período de paz fizeram com que a entrada na guerra fosse muito mais custosa, em termos de baixas, do que se imaginava. Os rifles e armasatiravam com muito mais rapidez e eficácia, a artilharia tinha explosivos muito mais devastadores.

Um erro comparável em nosso tempo é presumir que, por causa de nossa tecnologia avançada, somos capazes de ações militares rápidas, focadas e de grande poder destrutivo — golpes cirúrgicos, com drones e mísseis — resultando em conflitos que seriam curtos e de impacto limitado, e em vitórias decisivas. Cada vez mais, vemos guerras assimétricas, entre forças bem armadas e organizadas de um lado, e insurgentes de outro, que podem se espalhar não apenas por toda uma região, mas por um continente inteiro e até pelo planeta. Ainda assim, não conseguimos ver soluções claras, em parte porque não há só um inimigo, mas coalizões de senhores da guerra locais, guerreiros religiosos e outras partes interessadas.

Pense no Afeganistão ou na Síria, onde agentes locais e internacionais estão misturados, e onde definir exatamente o que constitui uma vitória é algo difícil. Nessas guerras, aqueles que ordenam ações militares devem considerar não apenas os combatentes em solo, mas também a esquiva, mas fundamental, opinião pública. Graças às mídias sociais, cada ataque aéreo, bomba e nuvem de gás venenoso que atinge uma população civil é filmado e tweetado por todo o mundo.

A globalização pode ampliar rivalidades e medos entre países que, de outra forma, poderiam ser amigos. Pouco antes da Primeira Gurra, o Reino Unido, a maior potência naval, e a Alemanha, a maior potência terrestre, eram grandes parceiros comerciais. Mas isso não se traduziu em amizade.

Com a Alemanha dividindo tradicionais mercados britânicos e competindo por colônias, o Reino Unido se sentiu ameaçado. Em 1896, um famoso panfleto britânico, “Feito na Alemanha”, já pintava um quadro nefasto: “Um gigante estado comercial está surgindo para ameaçar a nossa prosperidade e disputar conosco o comércio mundial.” Quando o Kaiser Wilhelm e seu ministro da Marinha, almirante Alfred von Tripitz, lançaram um submarino militar para desafiar a supremacia naval britânica, o desconforto no Reino Unido se transformou em algo muito próximo do pânico.

Guerra poderia ter sido evitada

Como os nossos predecessores de um século atrás, presumimos que uma guerra mundial é algo que não fazemos mais. O líder socialista francês Jean Jaures, um homem que tentou, sem sucesso, barrar a escalada do militarismo nos primeiros anos do século XX, entendeu isso muito bem. “A Europa já passou por tantas crises e por tantos anos”, ele disse, logo antes do início da guerra, “já foi perigosamente desafiada tantas vezes sem que guerra alguma acontecesse, que praticamente parou de acreditar nessa ameaça e assiste ao interminável conflito nos Bálcãs com pouca atenção e reduzida preocupação”.

Com diferentes líderes, a Primeira Guerra poderia ter sido evitada. A Europa de 1914 precisava de um Bismarck ou de um Churchill, com força o suficiente para suportar a pressão e capacidade de enxergar o quadro estratégico de forma mais ampla. Em vez disso, as potências-chave tinham líderes fracos, distraídos e divididos. Hoje, o presidente dos EUA encara uma série de políticos na China que, como aqueles da Alemanha há um século, querem muito que sua nação sejalevada a sério. No caso de Vladimir Putin, Obama lida com um nacionalista russo que é mais astuto e mais forte que o pobre czar Nicolau II.

Obama, como Woodrow Wilson, é um grande orador, capaz de apresentar uma visão de mundo e inspirar os americanos. Mas, como Wilson no final da guerra, lida com um Congresso pouco cooperativo. Talvez ainda mais preocupante seja o fato de que ele pode estar numa posição similar à do primeiro-ministro britânico em 1914, Herbert Asquith — que presidia um país tão dividido que não conseguia exercer uma liderança ativa ou construtiva no mundo.

Às vésperas de 2014, os EUA ainda são a maior potência mundial, mas não sãomais tão poderosos quanto já foram. O país sofreu derrotas militares no Iraque e no Afeganistão, e vem encontrando dificuldades de encontrar aliados que o apoiem, como mostra a crise na Síria. Desconfortavelmente cientes de que têm poucos amigos confiáveis e muitos inimigos em potencial, os americanos consideram agora o retorno a uma política isolacionista. Estariam os EUA no limite de seu poder de influência, como o Reino Unido já esteve no passado?

Pode ser necessário um momento de real perigo para forçar as grandes potências a se unirem em coalizões capazes e dispostas a agir. Em vez de ficar pulando de crise em crise, talvez seja a hora de repensar as terríveis lições de um século atrás — na esperança de que nossos líderes, com o nosso apoio, repensem como podem trabalhar juntos para construir uma ordem internacional estável.

Margaret MacMillan é autora do recém-lançado “The War that Ended Peace: The Road to 1914” (A guerra que acabou com a paz: o caminho para 1914, em tradução livre)


Vargas Llosa sobre o livro postumo de Cabrera Infante: retrato datristeza

Já tinha postado aqui mesmo, semanas atrás, o original em espanhol desta resenha-artigo de Vargas Llosa, quando de sua publicação no El País. Vale a releitura, pois capta o monento em que a revolução cubana deixa definitivamente seu caráter romântico para se converter no gigantesco processo stalinista grotesco em que se converteu.
Parece que os intelectuais brasileiros nunca perceberam a mudança: atrasados mentais.
Paulo Roberto de Almeida 

Um grande mapa da tristeza
Livro póstumo de Guillermo Cabrera Infante é testemunho atroz e kafkiano sobre a Revolução Cubana
04 de janeiro de 2014 | 2h 05
MARIO VARGAS LLOSA / EL PAÍS - O Estado de S.Paulo

O livro póstumo de Guillermo Cabrera Infante, publicado recentemente, intitula-se Mapa Dibujado por Un Espia, mas deveria chamar-se O Mapa da Tristeza, pelo sentimento de solidão, amargura, impotência e incerteza que o impregna do princípio ao fim. Ele conta os quatro meses e meio que passou em Havana, em 1965, ao regressar por causa da morte da mãe, procedente de Bruxelas, onde exercia a função de adido cultural de Cuba. Planejava retornar à Bélgica dentro de poucos dias, mas, quando estava a ponto de embarcar de volta ao seu posto diplomático, juntamente com suas duas filhas pequenas, Anita e Carola, recebeu no aeroporto de Rancho Boyeros um chamado oficial, dizendo que deveria suspender a viagem porque o ministro das Relações Exteriores,Raúl Roa, tinha urgência de falar com ele. Regressou a Havana imediatamente, surpreso e inquieto. O que teria ocorrido? Nunca chegaria a saber.
O livro narra, aos borbotões e às vezes com frenesi e de maneira atabalhoada, os quatro meses seguintes, nos quais Cabrera Infante voltou muitas vezes ao ministério, sem que o ministro ou algum dos chefes o recebesse, descobrindo desse modo ter caído em desgraça, mas sem inteirar-se jamais como nem por quê. Entretanto, no dia seguinte à sua chegada, Raúl Roa o cumprimentara por sua gestão de diplomata, e anunciara que provavelmente voltaria a Bruxelas promovido ao cargo de ministro conselheiro da embaixada. A que ou a quem ele deveria a intervenção para que seu destino mudasse da noite para o dia? Quanto ao resto, recebeu o seu salário e inclusive renovaram seu cartão que lhe permitia fazer compras nas lojas para diplomatas, mais bem supridas do que aquelas, cada vez mais míseras, frequentadas pelas pessoas comuns. Acaso o governo o considerava um inimigo da Revolução?
Conflito. A verdade é que ele ainda não era. Tivera um conflito com o regime em 1961, quando este fechou Lunes de Revolución, revista cultural que Cabrera Infante dirigira durante os dois anos e meio de sua prestigiosa existência, mas nos três anos de afastamento em razão de suas funções diplomática na Bélgica havia sido, segundo ele próprio confessara, um funcionário leal e eficiente da Revolução. Embora um tanto desencantado pelo rumo que as coisas acabaram tomando, dá a impressão de que, até seu regresso a Havana em 1965, Cabrera Infante achava ainda que Cuba corrigiria o rumo e retomaria o caráter aberto e tolerante do princípio.
Nestes quatro meses, essa esperança se dissipou e foi ali, enquanto, confuso e temeroso por sua kafkiana situação de incerteza total quanto ao seu futuro, perambulava pelas ruas habaneras que tanto amava, vendo a ruína apoderar-se de casas e edifícios, as enormes dificuldades que o empobrecimento generalizado impunha aos vizinhos, o isolamento quase absoluto no qual se confinara o poder, sua verticalidade e a severidade da repressão contra dissidentes reais ou falsos, e a insegurança e o medo em que vivia o punhado de amigos que ainda o frequentavam - escritores, pintores e músicos quase todos eles - que perdeu as últimas ilusões e decidiu que, se saísse da ilha, se exilaria para sempre.
Evidentemente, não contou nada a ninguém. Nem aos amigos mais íntimos, como Carlos Franqui ou Walterio Carbonell, revolucionários que também haviam sido afastados do poder e transformados em cidadãos fantasmas por razões que ignoravam, e que, como ele, viviam numa inutilidade angustiante e frustrante, sem saber o que acontecia ao seu redor. As páginas que descrevem o vazio cotidiano deste grupo, que procurava atenuar com fofocas e fantasias delirantes, entre tragos de rum, fazem estremecer. O livro não contém análises políticas nem críticas arrazoadas contra o governo revolucionário; ao contrário, cada vez que o tema político aflora nas reuniões de amigos, o protagonista emudece e procura alhear-se da conversação, convencido de que, no grupo, há algum espião ou de que, de uma maneira ou de outra, o que ali se disser chegará aos ouvidos do Ministério do Interior. Indubitavelmente, há uma certa paranoia neste estado de perpétua desconfiança, mas talvez ela seja a prova à qual o poder quer submetê-los para medir sua lealdade ou sua deslealdade à causa. Não é de estranhar que, nesses quatro meses, começasse para Cabrera Infante a via-crúcis psicológica que, ao longo do tempo, destroçaria sua vida e sua saúde apesar dos admiráveis esforços de Miriam Gómez, sua esposa, para infundir-lhe ânimo, coragem e para ajudá-lo a escrever até o fim.
A publicação deste livro é outra manifestação do heroísmo e da grandeza moral de Miriam Gómez. Porque nele Guillermo conta, com uma sinceridade crua e às vezes brutal, como combateu o desalento e a neurose daqueles meses seduzindo mulheres, dormindo uma noite aqui outra ali, e até apaixonando-se por uma dessas conquistas, Silvia, que passou a ser por um tempo publicamente sua companheira. Este e outros foram amores tristes, desesperados, como é a amizade, a literatura e tudo o que Cabrera Infante faz e diz neste período, porque em seu foro mais íntimo ele se entrega de fato à vontade de fugir, de cortar para sempre os laços com um país para o qual não vê esperança alguma num futuro próximo.
Não foi uma decisão fácil. Porque ele amava profundamente Cuba, e, em especial Havana e tudo o que havia nela, principalmente a noite, os bares e os cabarés e as bailarinas e seus cantores, e a música, o clima quente, as avenidas e os parques - e seus cinemas - pelos quais passeava incansavelmente, recordando os episódios e as pessoas associadas a esses lugares, como para gravá-los devidamente em sua memória em todos os seus detalhes, sabendo que não voltaria a vê-los, e para poder lembrar deles mais tarde com precisão em seus ensaios e ficções. E foi o que fez. Quando finalmente, após esses quatro meses, graças a Carlos Rafael Rodríguez, líder comunista com o qual o pai de Cabrera Infante trabalhara no partido durante muitos anos, Guillermo conseguiu sair de Cuba com as duas filhas, rumo à Espanha e ao exílio, levou consigo o seu país e foi fiel a ele em tudo o que escreveu. Mas nunca se resignou a viver longe de Cuba, nem sequer nos momentos em que obteve os maiores reconhecimentos literários, e a divulgação e o prestígio de sua obra o compensavam da feroz campanha de difamação e calúnias de que foi vítima durante tantos anos. Embora sempre negasse, acredito que nunca perdeu a esperança de que situação mudasse na ilha, e de que, algum dia, poderia voltar fisicamente a esta terra da qual nunca conseguiu desprender-se. Provavelmente seus males se agravaram quando, em dado momento, teve de reconhecer que não, que era definitivo, que nunca voltaria e morreria no exílio.
Este livro me impressionou muito, não apenas pelo grande afeto que sempre senti por Cabrera Infante, mas pelo que me revelou sobre ele, sobre Havana e sobre essa época da Revolução Cubana. Conheci Guillermo quando era ainda diplomata na Bélgica e evitava totalmente as críticas à Revolução, se é que naquela época ele as tinha. No período que ele descreve, estive em Cuba e não vi nem imaginei o que ele e os demais personagens deste livro viviam, embora me encontrasse com vários deles muitas vezes, conversando sobre a Revolução, convencido de que todos estavam contentes e entusiasmados com o rumo que ela tomara, sem suspeitar sequer que alguns, ou talvez todos, dissimulavam, representavam, e, por baixo do seu entusiasmo, havia simplesmente medo.Antoni Munné, que, assim como os dois livros póstumos anteriores, preparou esta edição com desvelo, incluiu no final um Guia de Nomes, que dá conta do que aconteceu mais tarde com os personagens com os quais Cabrera Infante compartilhou esses quatro meses. Trata-se de uma informação muito instrutiva para saber quais caíram efetivamente em desgraça e sofreram o isolamento e o cárcere, ou se reintegraram ao regime, ou se exilaram ou se suicidaram.
Bem fez Antoni Munné em deixar o texto tal como foi escrito, sem corrigir as falhas, algo que indubitavelmente Cabrera Infante se propusera fazer alguma vez e não teve tempo, ou, simplesmente, não teve ânimo suficiente para voltar a concentrar-se em semelhante pesadelo. Assim como está, um rascunho escrito com total espontaneidade, sem o menor enfeite, numa linguagem direta, jornalística, comove muito mais do que se tivesse sido revisado, embelezado, transformado em literatura. Não é nada disso. É um testemunho descarnado e atroz, do que significa também uma Revolução, quando a euforia e a alegria do triunfo cessam, e ela se transforma em poder supremo, esse Saturno que mais cedo ou mais tarde devora seus filhos, começando pelos que estão mais próximos, que costumam ser os melhores. TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA