O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Forcas Armadas perdem especialistas para empresas privadas: custo de formacao fica com o Estado

O Estado brasileiro funciona (?) mal, isso já sabemos. O que por vezes pouco se sabe é o custo disso para o país, como evidenciado na matéria abaixo, que aliás deixa de avaliar o custo da formação de um engenheiro militar, plenamente operacional, e perdido para o setor privado por salários melhores.
Não, não creio que a solução esteja em obrigá-los a trabalhar para o Estado por certo número de anos. A solução é outra, a adequada, mas ela não virá: o Estado está muito ocupado em pagar bem, demasiadamente bem, a seus juízes e políticos.
O Brasil carece de engenheiros: são eles que produzem patentes.
Os advogados, sociólogos e burocratas em geral só produzem déficit público...
Paulo Roberto de Almeida 

FORÇAS ARMADAS: Mais 250 oficiais pediram demissão em 2013 ─ e é preocupante a saída de engenheiros


Felix Meyer
Usina de Letras, 24/01/2014

O Instituto Militar de Engenharia, um dos grandes centros de excelência das Forças Armadas: só no Exército 46 oficiais engenheiros deixaram a carreira em 2013

Se em 2012 foram 249 os oficiais das Forças Armadas que pediram demissão, abandonaram a carreira e passaram a trabalhar na área civil, o número quase se repetiu em 2013: 250 oficiais pediram demissão, sendo 121 do Exército, 70 da Marinha, e 59 na Força Aérea.
O que impressiona desfavoravelmente é o grande desfalque representado pela saída de nada menos do que 94 engenheiros — formados em centros de excelência como o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), ou o Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de Janeiro. 
O Exército foi especialmente prejudicado, perdendo nada menos do que 46 engenheiros militares, que preferiram fazer carreira na vida civil. Na FAB, saíram 34 engenheiros aeronáuticos, e, na Marinha, 14 oficiais engenheiros. 
O Exército também foi a única força que perdeu oficiais superiores — de tenente-coronel a general, sendo cinco, no caso, além de 46 capitães e 70 tenentes.
Deixaram a Marinha 32 Capitães-tenentes e 38 Tenentes, e cessaram de vestir a farda da Força Aérea 5 capitães-aviadores e 54 tenentes-aviadores.
A questão salarial não é a única a preocupar os militares de qualquer especialidade. 
O assunto vem sendo debatido pelo blog há algum tempo.

Consultem, por gentileza, os links abaixo: 

Brasil-EUA: retaliacoes comerciais no caso do algodao; seria um tiro nope'?

Minha opinião sobre a matéria, abaixo:
O governo prepara essas retaliações comerciais, patentárias ou financeiras, contra firmas, produtos ou serviços dos EUA, devidamente autorizado pela OMC.
Mas vejamos um pouco, se realmente é factível o caminho adotado, e se interessa ao Brasil e aos brasileiros as formas e áreas cogitadas para essas medidas.
Elevação de tarifas sobre produtos: mas quem paga a tarifa? Obviamente o importador, e em última instância, o consumidor, ou seja, o produto fica mais caro no mercado brasileiro, mas o exportador americano vai continuar a receber exatamente o mesmo valor pelo produto fornecido, seja a tarifa de 10, 20, ou 100%, o que é uma decisão de cada governo, independente de retaliações, desde que esse aumento seja possível (e nesse caso, pode ser). Se o produto ficar mais caro do que concorrentes ou substitutos, ele não terá compradores, e portanto não haverá importação ou renda tarifária ampliada. Se não houver substituto, a demanda diminuirá, e a renda tarifária também.
Quebra de patentes: como existe um Código patentário, terá de haver uma novo ato legal discriminando produtos ou serviços protegidos, de residentes americanos, a serem objeto de licenciamento compulsório. Mas o que significa isso? O governo precisaria desenvolver ele mesmo os objetos protegidos pela patente ou copyright e pagar royalties a si mesmo, ou então ter empresas privadas (nacionais ou estrangeiras) que o façam, ficando com todo o lucro, sem pagar royalties, portanto. Ou ainda: desviar royalties atualmente pagos a firmas americanas para o Tesouro brasileiro. Duvidoso que seja factível, possível ou legalmente sustentável. Haveria processos na Justiça brasileira e pendências internacionais, o que prometeria um imbroglio enorme, de consequências imprevisíveis. Dificilmente se recolheria um valor significativo, e o custo, burocrático, administrativo, legal, seria enorme. Duvido que seja realmente operacional, e na verdade seria uma enorme dor de cabeça.
Bloqueio de remessas de pagamentos devidos: como no caso anterior, se teria de modificar a legislação para efetivar esse sequestro discriminatório e seletivo de pagamentos devidos. Haveria processos contra as medidas, pois as vítimas não têm nada a ver com os subsídios ao algodão do governo americano a exportadores americanos. Espectadores de filmes americanos teriam um bilhete de ingresso três ou quatro vezes mais caros do que um filme europeu ou brasileiro? Ridículo e dificilmente operacional, ou justificado legalmente.
O que sobra então?: apenas projetos governamentais, como compra de aviões militares por exemplo. Mas isso o governo brasileiro já faz. Observe que isso tira um negócio de uma empresas privada americana, e pode privar o Brasil de um produto melhor e mais barato do que terceiros concorrentes, e a fatura sai mais cara por um produto inferior em qualidade. Interessante para o Brasil? Dificilmente.
Portanto, pense três vezes antes de aplicar retaliações.
Paulo Roberto de Almeida 


Brasil prepara retaliação inédita de US$ 829 milhões aos EUA
Contra subsídios ao algodão, país pode agir em propriedade intelectual
ELIANE OLIVEIRA
CRISTIANE BONFANTI
O Globo, 26/01/2014

BRASÍLIA— Irritado com a pouca disposição dos Estados Unidos para chegar a um acordo que compense os subsídios ilegais concedidos aos exportadores americanos de algodão, o Brasil já se prepara para retaliar comercialmente os EUA em US$ 829 milhões. O primeiro passo será dado em meados do próximo mês. A Câmara de Comércio Exterior (Camex) elevará, em até 100%, o Imposto de Importação de uma lista de pouco mais de cem itens oriundos daquele país. Entre esses artigos, destacam-se paracetamol — utilizado na indústria farmacêutica —, produtos de beleza, leitores de código de barras, fones de ouvido, óculos de sol, automóveis, cerejas e até batatas.
O segundo passo, que ainda se encontra em análise na área do governo, será em relação à propriedade intelectual. Está prevista a quebra de patentes de uma série de medicamentos, sementes, defensivos agrícolas e até mesmo obras literárias, musicais e audiovisuais, como os filmes produzidos em Hollywood. Nesse caso, o governo deverá optar pela simples taxação ou o bloqueio temporário de remessas de dividendos e royalties.
Pagamento suspenso
Na próxima sexta-feira, termina o prazo de consultas dado pelo governo ao setor produtivo brasileiro sobre que medidas poderão ser adotadas pelo Brasil, que poderá se tornar o primeiro país a impor uma retaliação comercial aos EUA. O valor da compensação foi autorizado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2010, após a entidade condenar os subsídios ao algodão dados pelo Tesouro americano.
— Os EUA não parecem preocupados em chegar a um entendimento — disse uma fonte.
O motivo da retaliação é que os EUA não cumpriram um acordo, firmado assim que saiu a autorização da OMC, que prevê, entre outras coisas, repasses mensais de US$ 147,3 milhões aos produtores de algodão do Brasil. O pagamento não é feito desde o fim do ano passado.
Está praticamente certa a retaliação comercial, a não ser que surja, como fato novo, uma contraproposta americana. Porém, na área de direitos autorais, o governo ainda está dividido. Há uma corrente, que inclui o Ministério da Agricultura, que defende uma posição dura e taxativa com os EUA. O órgão conta com o apoio dos produtores de algodão e da bancada ruralista no Congresso Nacional.

Bolivia: em busca do poder nuclear - Mac Margolis

O sonho atômico da Bolívia
Mac Margolis
O Estado de S.Paulo, 26 de janeiro de 2014

Será o ar rarefeito dos Andes? Ou, quem sabe, o feitiço da Pachamama, a deusa da natureza cultuada por Evo Morales? Seja que for seu inebriante, o líder boliviano arfa sonhos grandiosos. Na semana passada, o presidente do Estado Plurinacional se superou. Em seu discurso anual para o Legislativo, que também marcou o 11.º ano de seu governo, Evo descortinou seu último projeto: um reator nuclear. A energia atômica é uma prioridade estratégica, "para fins pacíficos", salientou. "Bolívia não pode ficar à margem desse conhecimento, que é patrimônio da humanidade."
Não foi sua primeira ogiva política. Ano passado, em Moscou, o boliviano deixou no ar a ideia de conceder asilo ao delator americano Edward Snowden. Não concedeu, mas a suspeita de que fosse contrabandear o fugitivo gringo a bordo da aeronave presidencial provocou um pequeno escândalo diplomático. Em 2006, Evo mandou soldados para ocupar as refinarias da Petrobrás, um tapa de Lilliput na cara do gigante vizinho Gulliver.
A ousadia atômica, no entanto, surpreendeu até os "moralistas" mais acalorados. O sonho não é novo. Em 2010, seu governo firmou com o Irã um acordo de cooperação nuclear. Ano passado, renovou um tratado de assistência técnica com Argentina, selado nos anos 70. Seguiu para França, onde teria arrancado promessas de ajuda de François Hollande e, dias atrás, voltou animado de outra visita a Teerã. "Não estamos longe de ter energia nuclear. Temos a matéria-prima e o direito de usá-la", afirmou ao seu congresso.
Ainda é cedo para abrir o champanhe. Pequena, ilhada e pobre, a Bolívia não é candidata nata ao clube nuclear. Apenas três países latinos contam com reatores - Argentina, Brasil e México - e, apesar, de ostentarem economias bem mais avantajadas, todos enfrentaram dificuldades graúdas para erguer suas usinas. Faltou a Evo esclarecer o que a Bolívia espera ganhar da associação com os aiatolás, fora a redobrada patrulha atômica internacional.
Bom senso econômico, não é. Afinal, a Bolívia possui a segunda maior reserva de gás natural do continente e ainda se gaba de ser a "Arábia Saudita do lítio", matéria-prima de microbaterias. Mesmo assim, o país tropeça em seu próprio ufanismo. Nada a ver com a Pachamama. A culpa é da política. Nacionalista abrasado, Evo passou a última década colhendo poder e podando capital privado. Comemora o "novo modelo" econômico, que dilatou o naco estatal para 34% do mercado, contra 20% em 2005.
Peitar o capitalismo forasteiro rende aplausos mas espanta investimento. Resultado: em meio à demanda crescente por seu gás natural, as reservas devem despencar na próxima década. Que dizer da ambição nuclear se nem o botijão à boliviana está garantido? A explicação talvez esteja na usina política de Evo. Em outubro, os bolivianos irão as urnas. O presidente desponta como franco favorito, surfando no forte crescimento econômico movido a commodities, masenfrenta turbulências. Seu projeto de cortar com uma estrada uma vasta reserva indígena desagradou parte importante da sua base. Os investimentos sociais melhoraram a vida dos mais pobres mais não aumentaram a distância dos mais ricos. A Bolívia acaba de tirar do Brasil o título de sociedade mais desigual do continente.
Aí que se encaixa o plugue nuclear. Como o ouro e os canhões do passado imperial, a usina nuclear é hoje o emblema preferido do poder e da soberania. Quem domina o ciclo do urânio impõe respeito. A opção atrai os países bolivarianos - que, órfãos de Hugo Chávez, não se espelham mais na Venezuela, que mal consegue manter acesas as luzes e muito menos a revolução. Hoje, Evo e companhia buscam inspiração alternativa. Haja átomos.

*Mac Margolis é colunista do 'Estado', correspondente do site The Daily Beast e edita o site www.brazilinfocus.com


Liberais, liberalismos, diversos e contraditorios - Mario Vargas Llosa

Liberais e liberais
Mario Vargas Llosa* 
O Estado de S.Paulo, 26 de janeiro de 2014

Assim como os seres humanos, as palavras mudam de conteúdo dependendo do tempo e do lugar. Acompanhar suas transformações é instrutivo, embora, às vezes, como ocorre com o vocábulo "liberal", semelhante averiguação possa fazer com que nos extraviemos num labirinto de dúvidas.
No Quixote e na literatura de sua época, a palavra aparece várias vezes. O que significa em tal contexto? Homem de espírito aberto, bem educado, tolerante, comunicativo; em suma, uma pessoa com a qual se pode simpatizar. Nela não há conotações políticas nem religiosas, apenas éticas e cívicas no sentido mais amplo de ambos os termos.
No fim do século 18, esse vocábulo muda de natureza e adquire matizes que têm a ver com as ideias sobre a liberdade e o mercado, dos pensadores britânicos e franceses do Iluminismo (Stuart Mill, Locke, Hume, Adam Smith, Voltaire). Os liberais combatem a escravidão e o intervencionismo do Estado, defendem a propriedade privada, o livre comércio, a concorrência, o individualismo, e declaram-se inimigos dos dogmas e do absolutismo.
No século 19, um liberal é acima de tudo um livre pensador: ele defende o Estado laico, quer separar a Igreja do Estado, emancipar a sociedade do obscurantismo religioso. Suas divergências com os conservadores e os regimes autoritários geram, às vezes, guerras civis e revoluções. O liberal de então é o que hoje chamaríamos um progressista, defensor dos direitos humanos (conhecidos desde a Revolução Francesa como Direitos do Homem) e da democracia.
Com o aparecimento do marxismo e a difusão das ideias socialistas, o liberalismo passa da vanguarda para a retaguarda, por defender um sistema econômico e político - o capitalismo - que o socialismo e o comunismo querem abolir em nome de uma justiça social que identificam com o coletivismo e o estatismo (essa transformação do termo liberal não ocorre em todas as partes). Nos Estados Unidos, um liberal é ainda um liberal, um social-democrata ou pura e simplesmente um socialista. A conversão da vertente comunista do socialismo para o autoritarismo impele o socialismo democrático para o centro político e o aproxima - sem juntá-lo - ao liberalismo.
Nos nossos dias, liberal e liberalismo significam, dependendo das culturas e dos países, coisas distintas e às vezes contraditórias. O partido do tiranete nicaraguense Anastacio Somoza dizia-se liberal, e assim se denomina, na Austrália, um partido neofascista. A confusão é tão extrema que regimes ditatoriais como os de Pinochet no Chile e o de Fujimori no Peru são chamados às vezes "liberais" ou "neoliberais" porque privatizaram algumas empresas e abriram mercados. Desta degeneração da doutrina liberal não são totalmente inocentes alguns liberais convencidos de que o liberalismo é uma doutrinaessencialmente econômica, que gira em torno do mercado como uma panaceia mágica para a solução de todos os problemas sociais. Estes logaritmos viventes chegam a formas extremas de dogmatismo, e se dispõem a fazer tais concessões no campo político à extrema direita e ao neofascismo que contribuem para desprestigiar as ideias liberais e para que sejam vistas como uma máscara da reação e da exploração.
Dito isso, é verdade que alguns governos conservadores, como os de Ronald Reagan nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, realizaram reformas econômicas e sociais de inequívoca raiz liberal, impulsionando a cultura da liberdade de maneira extraordinária, embora em outros campos a fizessem retroceder. Poderíamos dizer o mesmo de alguns governos socialistas, como o de Felipe González na Espanha ou o de José Mujicano Uruguai, que, na esfera dos direitos humanos, promoveram o progresso em seus países reduzindo injustiças inveteradas e criando oportunidades para os cidadãos de renda inferior.
Nos nossos dias, uma das características do liberalismo é que pode ser encontrado nos lugares mais impensados e, às vezes, brilha pela ausência onde certos ingênuos acreditam vê-lo. Pessoas e partidos devem ser julgados não pelo que dizem e pregam, mas pelo que fazem. No debate que se desenrola nos dias de hoje no Peru sobre a concentração dos veículos de comunicação, alguns defensores da aquisição pelo grupo El Comercio da maioria das ações deEpensa, o que lhe confere quase 80% do mercado da imprensa, são jornalistas que silenciaram ou aplaudiram quando a ditadura de Fujimori e Montesinos cometia seus crimes mais hediondos e manipulava toda a informação, comprando ou intimidando donos e redatores de jornais. Como poderíamos levar a sério esses novíssimos catecúmenos da liberdade?
Um filósofo e economista liberal da chamada escola austríaca, Ludwig vonMises, opunha-se à existência de partidos liberais, porque, na sua opinião, o liberalismo devia ser uma cultura que irrigasse um leque muito amplo de formações e movimentos que, embora tivessem importantes discrepâncias, compartilhavam de um denominador comum sobre certos princípios liberais básicos.
Algo disso ocorre há bastante tempo nas democracias mais avançadas, onde, com diferenças mais de matiz do que de essência, entre democratas-cristãos esocial-democratas e socialistas, liberais e conservadores, republicanos e democratas, há alguns consensos que dão estabilidade às instituições e continuidade às políticas sociais e econômicas, um sistema que só se considera ameaçado por seus extremos, o neofascismo da Frente Nacional na França, por exemplo, ou a Liga Lombarda na Itália, e grupos e grupelhos ultra comunistas e anarquistas.
Na América Latina, esse processo se dá de maneira mais pausada e com maior risco de retrocesso do que em outras partes do mundo, em razão da debilidade em que se encontra ainda a cultura democrática, que tem uma tradição somente em países como Chile, Uruguai e Costa Rica, enquanto nos demais é muito maisprecária. Mas começou a acontecer, e a maior prova disso é que as ditaduras militares praticamente se extinguiram e que, dos movimentos armados revolucionários, sobrevive a duras penas o das Farc colombianas, com um apoio popular decrescente. É verdade que há governos populistas e demagógicos, deixando de lado o anacronismo que é Cuba, mas a Venezuela, por exemplo, que aspirava a ser o grande fermento do socialismo revolucionário latino-americano, vive uma crise econômica, política e social tão profunda, com a grande desvalorização de sua moeda, a carestia demencial - falta tudo, comida, água, até papel higiênico - e as iniquidades da delinquência, que dificilmente poderia agora ser o modelo continental no qual queria transformá-la o comandante Chávez.
Há certas ideias básicas que definem um liberal. Por exemplo, a liberdade, valor supremo, é una e indivisível, e deve atuar em todos os campos para garantir o verdadeiro progresso. A liberdade política, econômica, social cultural, é uma só e todas elas permitem o avanço da justiça, da riqueza, dos direitos humanos, das oportunidades e da coexistência pacífica em uma sociedade. Se a liberdade se eclipsa em apenas um desses campos, ela se encontra armazenada em todos os outros. Os liberais acreditam que o Estado pequeno é mais eficiente do que o que cresce demasiado e, quando isso ocorre, não só a economia se ressente, como também o conjunto das liberdades públicas. Eles acreditam que a função do Estado não é produzir riqueza, e essa função é melhor desempenhada pela sociedade civil, num regime de livre mercado, no qual são proibidos os privilégios e a propriedade privada é respeitada. Indubitavelmente, a segurança, a ordem pública, a legalidade, a educação e a saúde competem ao Estado, mas não de maneira monopólica, e sim em estreita colaboração com a sociedade civil.
Estas e outras convicções gerais de um liberal têm, na hora de serem aplicadas, fórmulas e matizes muito diferentes relacionados ao grau de desenvolvimento de uma sociedade, de sua cultura e de suas tradições. Não há fórmulas rígidas e receitas únicas para que as ponhamos em prática. Forçar reformas liberais de maneira abrupta, sem consenso, pode provocar frustração, desordens e crises políticas que põem em risco o sistema democrático. Este é tão essencial ao pensamento liberal como o da liberdade econômica e o do respeito pelos direitos humanos. Por isso, a difícil tolerância - para quem, como nós, espanhóis e latino-americanos, tem uma tradição dogmática e intransigente tão forte - deveria ser a virtude mais apreciada entre os liberais. Tolerância significa simplesmente aceitar a possibilidade do erro nas próprias convicções e de verdade nas alheias.
Por isso, é natural que haja entre os liberais discrepâncias, e às vezes muito sérias, sobre temas como o aborto, os casamentos gays, a legalização das drogas e outros. Sobre nenhum desses temas existem verdades reveladas. A verdade, como estabeleceu Karl Popper, é sempre provisória, válida apenas enquanto não surgir outra que a qualifique ou a refute. Os congressos e encontros liberais costumam ser frequentemente parecidos com os dos trotskistas (quando existia o trotskismo): batalhas intelectuais em defesa de ideias contrapostas. Alguns veem nisso um traço de inoperância e irrealismo. Acredito que essas controvérsias entre o que Isaias Berlin chamava de "as verdades contraditórias"fizeram com que o liberalismo continue sendo a doutrina que mais contribuiu para melhorar a coexistência social, promovendo o avanço da liberdade humana.
*Mario Vargas Llosa é Prêmio Nobel de Literatura.
E-mai: llosa@estado.com.br / Site: www.llosa.com.br

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA 

A USP, agora uma velha senhora, com algumas ideias emboloradas...

Provavelmente não pela parte propriamente científica, sempre vibrante, mas no que concerne as humanidades, acho que a Fefelech anda precisando de algum xarope que elimine todas aquelas coisas inuteis, praticamente podres, que andam dificultando a sua respiração.
Tendo sido aluno da dita cuja, posso confirmar que os ares por lá são dificilmente respiráveis, tanto da parte de alguns professores aloprados, quanto de alunos que já são dinossauros sem o saber.
Paulo Roberto de Almeida 

Os 80 anos da USP

25 de janeiro de 2014 | 2h 07
Editorial O Estado de S.Paulo
Ao completar 80 anos, hoje, a Universidade de São Paulo (USP) precisa voltar às origens para compreender melhor seu papel no futuro. Não se trata de saudosismo e, sim, de reafirmar os princípios que nortearam a fundação dessa instituição que tão bem simboliza o potencial intelectual e científico brasileiro.
Para manter-se na vanguarda da produção nacional de conhecimento e ampliar sua internacionalização, a USP precisa resistir, a todo custo, ao apelo populista que visa a afrouxar suas exigências técnicas para facilitar o ingresso de estudantes. A inclusão social é decerto uma das missões da universidade, mas está longe de ser a única, tampouco a principal. Não é pelo número de alunos que se mede o sucesso de uma universidade e sua capacidade de influenciar os rumos do País e, sim, pelo seu grau de compromisso com os mais altos padrões científicos. Era essa excelência que os fundadores da USP tinham em mente em 25 de janeiro de 1934.
Até aqui, diga-se, a expansão da USP tem se dado em razão da ampliação de seus departamentos e da multiplicação de sua atuação. Mesmo assim, já há alguns anos se registra um desconfortável aumento da quantidade de alunos em relação ao número de professores. Há 20 anos, essa proporção era de 10 estudantes por professor; em 2012, chegou a quase 15. Ou seja: enquanto abria as portas para receber mais e mais alunos, a USP foi lenta em recompor seu quadro docente e de funcionários para atender a essa demanda, com prejuízo para o desempenho acadêmico.
O resultado é que os professores fazem longas jornadas - muitas vezes às voltas não com as exigências de sala de aula e, sim, com tarefas burocráticas que deveriam ser desempenhadas por funcionários - e mal conseguem realizar pesquisas ou atender seus alunos. A evasão da graduação, em torno de 25%, ilustra o problema.
Enquanto a graduação sofre com diversos entraves, no entanto, há empenho em produzir pesquisas de ponta, importantes o bastante para serem reconhecidas no exterior, em razão do estímulo das agências de fomento. Consolida-se assim um desequilíbrio entre os objetivos dos fundadores da USP - enquanto a produção de conhecimento novo se sofistica, prejudicam-se a formação de profissionais qualificados e a relação com a iniciativa privada.
Essa situação leva ao problema da identidade da USP. Há 80 anos, a universidade participou diretamente das mudanças econômicas de São Paulo, com reflexos nacionais, e sua estrutura cresceu proporcionalmente à sua importância. No entanto, permaneceu por muito tempo - e ainda hoje é assim - com uma administração excessivamente centralizada na Reitoria, algo que não condiz com o espraiamento das diversas atividades da universidade.
O debate sobre a descentralização na USP é antigo. Como se sabe, a universidade teve como eixo fundador a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, responsável por formar o corpo docente cuja tarefa era dar o salto cultural desejado por seus idealizadores, Julio de Mesquita Filho e Armando de Sales Oliveira. Sem experiência acadêmica para tal empreitada, os fundadores trouxeram professores estrangeiros, todos expoentes em suas áreas de atuação, que fizeram da Faculdade de Ciências e Letras o centro histórico do desenvolvimento da USP. No entanto, com o passar do tempo, as necessidades se diversificaram, com o surgimento de novos campos de pesquisa, tornando urgente a concessão de autonomia às instituições neles envolvidas.
Essa autonomia foi conquistada, ao longo de décadas, não sem ranger de dentes, mas o resultado é uma universidade mais dinâmica, com capacidade para enfrentar os desafios atuais do País. Falta ainda - conforme se espera do novo reitor, Marco Antonio Zago, que toma posse hoje - que a administração desse complexo acadêmico seja conduzida de modo a aliviar a brutal carga burocrática de seus processos decisórios.
Tudo isso deve ser feito, acrescente-se, sem transigir com modismos ou apelos demagógicos, tendo em vista que o objetivo da universidade é selecionar os alunos, professores e pesquisadores mais capazes e estimulá-los a cumprir a missão inscrita em sua história.

sábado, 25 de janeiro de 2014

A memoria das coisas passadas - Paulo Roberto de Almeida, La Lettre, magazine litteraire

A memória das coisas passadas

Paulo Roberto de Almeida

            Recebi o aviso sobre o conteúdo do número mais recente de La Lettre, magazine-litteraire, que começa com uma evocação de Marguerite Duras, assim apresentada:

Du Roi de Serendip aux mille marquis:
Dans Ah ! Ernesto, son unique oeuvre pour la jeunesse - et qui vient d'être réédité -, Marguerite Duras fait dire à un petit garçon : « Je ne retournerai plus à l'école, parce qu'à l'école on m'apprend des choses que je ne sais pas. »

Isso me lembra inteiramente minha primeira infância, antes ainda de começar o curso primário, onde se ingressava aos sete anos, para aprender a ler.
Ora, eu já frequentava desde vários anos uma biblioteca infantil, onde, mesmo sem saber ler, eu consultava revistas e livros, fazia jogos (damas, etc.) e assistia filmes, aquelas comédias da Atlântida, com Oscarito e Grande Otelo, e filmes de Zorro, Tarzan, Três Patetas e coisas do gênero. Ou seja, já tinha um grande respeito pelos livros, mesmo sem poder lê-los.
Pois quando minha mãe me anunciou que iria me levar para o Grupo Escolar Aristides de Castro, onde eu deveria começar o primeiro ano do primário, já com sete anos completos, eu me recusei a ir. Duas, três vezes ela insistia para sairmos de casa e caminhar até a escola e eu me recusava, teimosamente.
Até que veio a pergunta, inevitável:
“Mas você não quer ir para a escola por que ?”
E eu, de maneira nitidamente envergonhada, confessei:
“Eu não posso ir para a escola, eu não sei ler...”

Alívio geral, fui arrastado para a escola, aprendi a ler rapidamente, e nunca mais parei, ao que parece...

«Les hommes éveillés n'ont qu'un monde, mais les hommes endormis ont chacun leur monde.»
Héraclite


Éditorial
Dans Ah ! Ernesto, son unique oeuvre pour la jeunesse - et qui vient d'être réédité -, Marguerite
Duras fait dire à un petit garçon : « Je ne retournerai plus à l'école, parce qu'à l'école on m'apprend
des choses que je ne sais pas. »





 Paulo Roberto de Almeida 
Hartford, 25 de janeiro de 2014.

Du roi de Serendip aux mille marquis
Éditorial - 23/01/2014 par Laurent Nunez dans Mensuel n°540 à la page 3 (719 mots)
Dans Ah ! Ernesto, son unique oeuvre pour la jeunesse - et qui vient d'être réédité -, Marguerite Duras fait dire à un petit garçon : « Je ne retournerai plus à l'école, parce qu'à l'école on m'apprend des choses que je ne sais pas. »
Cette évidence peut faire sourire ; elle n'a pourtant rien d'évident. Il est toujours étrange de découvrir ce dont on ne soupçonnait pas même l'existence. C'est ce qu'on appelle la sérendipité, qu'un essai concis et ambitieux permet aujourd'hui de mieux cerner. Le mot est fameux depuis Internet et ses liens hypertextes, mais Sylvie Catellin, dans Sérendipité, Du conte au concept, nous en révèle la genèse et le bel historique. C'est en 1754 qu'un écrivain anglais, Horace Walpole, inventa le mot - serendipity - pour désigner la faculté de « découvrir, par hasard et sagacité, des choses que l'on ne cherchait pas ». Lui-même n'avait pas inventé, à proprement parler, ce concept : l'idée lui en était venue grâce à la traduction libre d'un recueil de vieux contes orientaux - mais publiés à Venise en 1557 : La Pérégrination des trois jeunes fils du roi de Serendip. C'est de ce conte, où trois frères décrivent un animal sans l'avoir jamais vu, qu'est né ce mot magique - ce « mot-mana », aurait dit Barthes - qui à lui seul explique le succès de Google et de Wikipedia. Trouver ce qu'on ne cherchait pas ! Apprendre ce qu'on n'était pas même désireux de savoir ! Mais Sylvie Catellin est comme Ernesto : elle se méfie des facilités de la connaissance. Son essai dégonfle le mot comme une baudruche, en même temps qu'il le redore. Relisant Voltaire, Balzac, ou Freud, s'interrogeant sur les découvertes de Poincaré ou de Fleming - qui semble découvrir par hasard la pénicilline -, elle déconstruit le fantasme d'une découverte qui s'offre à l'homme sans que ce dernier ait rien demandé. Non, on ne trouve jamais ce qu'on ne cherche pas - et les scientifiques comme les rats de bibliothèque vous le diront. Internet considéré comme un vaste trésor des Lumières, et accessible à tous, demeure une utopie des marchands d'Internet. Parce qu'on n'y trouve que ce qu'on est apte à trouver ; et cette aptitude « sherlock-holmésienne » s'acquiert, à l'école et par les livres. Souvenez-vous de Pascal : « Tu ne me chercherais pas, si tu ne m'avais trouvé. »
Que cherche-t-on, d'ailleurs, quand on lit le marquis de Sade ? Le frisson d'un interdit ? La philosophie d'un libertin ? Voilà que paraît en poche un vaste choix de ses lettres, qui se lisent comme un roman quoiqu'on se croie au théâtre. Sade y apparaît sous mille facettes. (On s'étonne ensuite de n'avoir aucun portrait de lui !) Le voici repenti devant son oncle : « Je me levais tous les matins pour chercher le plaisir ; cette idée me faisait tout oublier. Je me croyais heureux dès que je croyais l'avoir trouvé, mais ce prétendu bonheur s'évanouissait aussitôt que mes désirs, ne me laissait que des regrets. » Le voilà menaçant devant sa maîtresse : « La petite histoire de la c[haudepisse] doit t'engager un peu à me ménager. Je t'avoue que je ne la cacherais pas à mon rival, et ce ne serait pas la dernière confidence que je lui ferais. » Le voici philosophe pour sa femme : « Ma façon de penser, dites-vous, ne peut être approuvée. Et que m'importe ? Bien fou est celui qui adopte une façon de penser pour les autres. » Le voilà ordurier devant son valet : « Visage de chiendent barbouillé de jus de mûre, échalas de la vigne de Noé, arête du dos de la baleine de Jonas, vieille allumette de briquet de bordel, chandelle rance de vingt-quatre à la livre [...]. » Mais Sade ne jure pas comme un charretier - plutôt comme un homme qui se croit toujours sur scène. Le théâtre - la théâtralité - fut sa véritable obsession. À l'asile de Charenton, il avait créé une petite troupe composée de malades mentaux. Le Tout-Paris se pressait à ce qui lui semblait un grotesque festival. Oh Sade, qui donc étais-tu pour vouloir jouer tous les rôles, et pour avouer à ton avocat : « [...] moi qui duperais le bon Dieu si je l'entreprenais » ? Non, non, la question ne nous intéresse plus - puisque tes masques infiniment variés révèlent un même plaisir de lecture. lnunez@magazine-litteraire.com