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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A miseria da miseria da "oposicao" de araque no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Desculpem a redundância do título, e o qualificativo aplicado à "oposição" (aspas triplas), mas ambos se justificam amplamente, e eu até diria que são modestas as críticas, em face da patética, lamentável, tristonha situação em que se movem as forças oposicionistas no Brasil atualmente (e desde muito tempo).
O artigo que vai abaixo, reproduzido de uma revista publicada em meados de 2011, se pretendia uma crítica à oposição, e a uma espécie de chamamento à reação. Passados quase três anos, constato que a situação ainda se deteriorou para pior, se me permitem esta outra impropriedade.
A máfia que nos governa continua usando e abusando dos recursos do poder, e a oposição demonstra sua total incapacidade de reagir.
Não pretendo, absolutamente, ser porta-voz de qualquer oposição. Sou apenas um observador do panorama político e econômico do Brasil, e um comentarista engajado sobre nossos cenários de possível evolução moral, que continuam se degradando a olhos vistos. A máfia não tem sequer vergonha de ser máfia, de mentir e de continuar abusando dos recursos do Estado para consolidar seu monopólio do poder.
A mim, como um quilombola de resistência intelectual, só me cabe explicitar o que vejo, e colocar minha opinião, sem qualquer censura mental, como cabe a qualquer cidadão consciente.
Paulo Roberto de Almeida

A Miséria da “Oposição” no Brasil

(Paulo Roberto de Almeida)

Revista Interesse Nacional Nº 13 – Abril a Junho de 2011
A Miséria da “Oposição” no Brasil Da Falta de um Projeto de Poder à Irrelevância Política?

O cenário político brasileiro: A deterioração democrática

Um observador medianamente informado sobre a cena política brasileira da última década seria capaz de reconhecer a conjuntura histórica de transformação que ocorre nas forças dominantes no sistema político. Trata-se de uma evolução gradual, que um analista que trabalhe com as categorias “gramscianas” provavelmente consideraria tratar-se da emergência de um novo “bloco dominante”, tendente à hegemonia política e social. Essas novas forças estão identificadas com o PT e os partidos e movimentos a ele associados, que passaram de uma longa trajetória (1980–2002) de oposição ao sistema de poder anteriormente dominante, e que mantém, desde 2003, sua bem-sucedida consolidação majoritária. Os recursos – políticos, financeiros, humanos – para essa ascensão vieram em primeiro lugar dos sindicatos e dos movimentos sociais vinculados ao partido hegemônico nesse bloco e, depois de 2003, do próprio Estado e de uma miríade de entidades dominadas ou influenciadas por ele (empresas estatais, fundos de pensão, empresários “amigos” e os próprios militantes encastelados numa infinidade de cargos públicos).

O mesmo observador tampouco deixaria de reconhecer a oposição atual como uma oposição “miserável”, ou seja, incapaz de assumir as responsabilidades de sua condição. Com efeito, ele não teria dificuldades em constatar a gradual diluição da “oposição”, das mesmas forças que ocuparam o poder entre meados dos anos 1990 e início da década seguinte, mas que foram batidas três vezes desde então (2002, 2006 e 2010) e que arriscam serem vencidas novamente em 2014. O que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da “oposição”, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder.

O termo “oposição” figura, na maior parte deste ensaio, entre aspas, pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. As aspas, justamente, não se devem às derrotas, esperadas ou previsíveis, da “oposição”, mas à sua incapacidade de ser aquilo a que o processo político a relegou temporariamente: uma oposição, na plena acepção da palavra. Se, e quando, ela assumir seu papel, será eximida da presença das aspas.

Se o mesmo observador, especulando por antecipação, fosse convidado a traçar um prognóstico sobre o futuro do sistema político brasileiro e se, no mesmo movimento, ele se dedicasse a divagar sobre a trajetória provável da “oposição” nos anos à frente, talvez não hesitasse muito em prever um destino melancólico, quando não trágico, para as forças que passam por oposição ao governo do PT. Estaria ela, de fato, condenada a desaparecer do cenário político, como força alternativa viável ao atual bloco hegemônico? Teriam os supremos estrategistas petistas – muitos mais por instinto do que por estratégias bem calculadas – conseguido realizar aquilo que Gramsci pregou no cárcere mussoliniano, sem que ele ou o partido que recuperou sua herança intelectual jamais tivesse conseguido materializar na prática? Estaríamos em face de um “bloco histórico” destinado a manter hegemonia sobre o sistema político pelo futuro previsível? Se isso ocorrer, seria o mais próximo que o Brasil já chegou daquilo que muitos representantes desse bloco chamam de “pensamento único”, embora eles mesmos apliquem o termo a uma inexistente ou rarefeita tribo de “neoliberais”.

Este texto não aspira responder a todas as questões relevantes para o futuro da democracia no Brasil. Não é nosso objetivo analisar todos os componentes de um sistema político relativamente complexo em suas diferentes vertentes organizacionais e forças atuantes, mas relativamente simples quanto às linhas principais de seu ordenamento. De um lado, temos o poder econômico incontrastável de quem detém o poder – e pode, assim, “comprar”, literalmente, os apoios de que necessita para se perpetuar no poder; de outro, forças dispersas e desorganizadas que sequer se entendem sobre um diagnóstico da situação, para planejar um contra-ataque que estaria na lógica de todos os sistemas políticos democráticos: a alternância no comando do Estado. Uma constatação de ordem geral não pode, contudo, deixar de ser feita inicialmente: o sistema democrático brasileiro, que já era de baixa qualidade antes de 2003, tornou-se ainda mais deplorável no plano de seu funcionamento e no de sua responsabilidade para com os eleitores, uma vez que o bloco petista se encarregou de deteriorar ainda mais a qualidade da democracia brasileira, realizando um amálgama de todas as forças políticas oportunistas, fisiológicas e rentistas que sempre se aproximaram do centro do poder, qualquer poder.

Mas o presente texto não pretende analisar o cenário político brasileiro como um todo; trata apenas da trajetória recente da atual¬ “oposição” ao governo do PT, supostamente empenhada, desde 2003, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. Estabelece primeiro um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular uma série de considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, visando convertê-la em oposição, simplesmente, credível e com chances de chegar ao poder. O texto conclui afirmando que o eventual sucesso de qualquer estratégia de ação da atual “oposição” depende, em grande medida, de lideranças esclarecidas, o que não parece ser o caso, atualmente, com o simulacro de oposição existente.

Outra constatação inicial, que o mesmo observador político referido ao início deste ensaio poderia fazer é que essa “oposição” presumida deixou ao relento, de fato órfão, metade do eleitorado brasileiro, a julgar pelas evidências da mais recente campanha presidencial, ao faltar com suas responsabilidades de verdadeira oposição e ao não oferecer respostas compatíveis com as demandas desses eleitores. Mas essa constatação é um desdobramento lógico da análise que agora passa ser feita.

O diagnóstico da situação política

É evidente que o atual bloco no poder – dominado majoritariamente pelo PT – conquistou legitimamente sua hegemonia política ao longo dos três últimos embates eleitorais. Ele o fez com base em hábil propaganda política, com extenso recurso à manipulação das comunicações, mas também com o apoio de uma boa organização partidária (e corporativa), ainda que recorrendo diligentemente à propaganda enganosa, eventualmente a fraudes processuais (quando não a crimes eleitorais, apenas parcialmente sancionados pela justiça do mesmo nome). Essencialmente, porém, a razão maior do sucesso foi, de forma muito explícita, o carisma político-eleitoral de sua principal liderança e figura de grande relevo no cenário político. É também evidente que essa mesma personalidade e o seu partido domesticado – mesmo se fracionado internamente – pretendem preservar a atual hegemonia pelo futuro previsível, com base nos mesmos elementos políticos, aplicando de maneira diligente as mesmas receitas que os habilitaram a dirigir o país nos últimos oito anos.

Ainda mais evidente, e visível, nesse perío¬do, foi o desaparecimento gradual e a vir¬tual inoperância daquilo que se poderia chamar, com extrema generosidade, de “oposição”; na verdade, um conglomerado de tênues lideranças políticas, fragmentado em projetos pessoais ou regionais, e totalmente incapaz de oferecer alternativas credíveis ao eleitorado que não comunga das mesmas concepções de política, de economia e de sociedade do bloco no poder. Nunca se percebeu, desde 2003, um discurso coerente da “oposição”, alternativo e em oposição ao do bloco no poder. Este tampouco tinha um discurso coerente, mas soube implementar medidas de clara receptividade popular, sobretudo nas áreas sociais, com um enorme reforço de propaganda nas supostas virtudes do governo e apoiado no evidente carisma do seu líder político. Com base em virtudes próprias e nesse grande empenho publicitário, o líder em questão praticamente deixou a condição de carisma para firmar-se como novo mito do cenário político brasileiro, provando, mais uma vez, que mentiras bem articuladas podem, sim, criar fatos políticos dotados de boa impregnação popular.

Caso a evolução dos próximos anos confirme esse mesmo cenário, pode-se ter o afastamento da “oposição” – ou o que passa por ela – do governo durante mais de duas décadas, frustrando possivelmente metade do eleitorado brasileiro – das regiões mais desenvolvidas e majoritariamente de estratos mais esclarecidos – que não se reconhece no, e até recusa o, projeto de poder do bloco petista atualmente hegemônico. A percepção que emerge da atual situação brasileira é a de que a maior parte da população – embora não suas correntes mais esclarecidas – partilha das concepções econômicas, políticas e culturais do atual bloco no poder, que demonstrou ter praticado um “gramscismo” adaptado às condições de educação política do Brasil, configurando um cenário político que apresenta desafios para a consolidação de um sistema democrático no país, na medida em que as práticas políticas mobilizadas por esse bloco representam de fato um atraso relativo do ponto de vista da ética cidadã.

Não é surpreendente que o governo mantenha a capacidade de iniciativa e a ofensiva política – por todos os meios ao seu alcance – ou que até procure dominar – igualmente por todos os meios disponíveis, inclusive alguns pouco recomendáveis – o poder legislativo, colocado como nunca antes – salvo nos períodos ditatoriais – em situação de subordinação e de dependência em relação às verbas e diretivas do Executivo. Não se pode, tampouco, esquecer os movimentos ditos “sociais” (a maioria na folha de pagamentos do Executivo) e suas correias de transmissão nos mais diversos setores, com destaque para o sindical (não só de trabalhadores, mas igualmente patronais), que desempenham um papel importante na estratégia “gramsciana” de ocupação de espaços. A rigor, trata-se de uma “ditadura do Executivo”, no sentido de que este passa a determinar o voto dos parlamentares e as ações do que passa por uma “sociedade civil organizada” – manipulada, seria o termo mais exato – na direção que mais interessa ao primeiro, embora à custa de nacos do orçamento e de farta distribuição de cargos e comissões nas mais diversas prebendas estatais (na verdade, em todos os entes dominados ou influenciados pela vontade daquele poder).

O que é surpreendente é a “oposição” colocar-se totalmente a reboque da agenda governamental, deixar-se pautar pela propaganda oficial e descurar completamente da construção de uma pauta própria de críticas e reivindicações independentes, em nome da sociedade e dos eleitores de oposição que ela deveria supostamente representar. O que surpreende, de fato, é essa renúncia a ser oposição, ou a forma confusa, errática e até patética com que a “oposição” se desempenhou nesses anos de “travessia do deserto”. O parlamento é, evidentemente, o ponto fulcral das articulações políticas. Mas se a oposição revelou-se totalmente ineficiente, e até irrelevante, na suposta “casa das leis”, ela era inexistente, literalmente, na esfera da própria sociedade, cujos espaços de manifestações e de expressão de opiniões – inclusive nos meios acadêmicos e da imprensa – estavam totalmente ocupados por adesistas, por militantes da causa ou por serviçais do bloco no poder.

As tarefas da oposição num sistema político democrático

Em situações democráticas “normais” – isto é, com possibilidades reais de alternância no poder entre duas, ou mais, correntes majoritárias – o grupo que perdeu as eleições em um dado país se recompõe politicamente – eventualmente mudando seus líderes – e se dedica a uma séria preparação para os novos embates eleitorais mais à frente. Nas democracias modernas, o poder costuma ser alternativamente investido por três grandes grupos políticos – geralmente um de tendência social-democrata, ou socialista, outro bloco centrista ou reformista moderado, e, não raro, também, um setor conservador – que vão sendo guindados ao comando do Estado ou dele afastados em função da conjuntura econômica e dos benefícios sociais que eles possam trazer à maioria da população: desemprego, inflação, segurança (imigração, por exemplo), ou até questões morais (corrupção, mentiras e fraudes políticas, etc.).

A primeira tarefa, quando um grupo ou partido é “empurrado” para a oposição, é a de elaborar um diagnóstico – se possível consensual – sobre as razões da derrota: os líderes se dedicam, então, a analisar os fatores principais do insucesso para daí retirar as lições que se impõem, no que pode ser um simples episódio eleitoral momentâneo. Se a derrota é, porém, recorrente, ao longo de dois ou mais embates eleitorais, ou mesmo “estrondosa”, o diagnóstico teria de ser amplo, alcançando inclusive as bases programáticas do partido (sua “carta” aos eleitores). Nos casos menos graves se deveria atuar sobre os fatores de oportunidade, de mensagem política e de apresentação de propostas ao público eleitor. Feito o diagnóstico, retiradas as lições, deve-se preparar o terreno para as novas etapas que se apresentarão inevitavelmente à oposição. Nos regimes presidencialistas, as eleições sempre têm datas marcadas; nos parlamentaristas, elas podem se apresentar a intervalos variados.

Normalmente, uma oposição organizada tem, entre seus membros mais relevantes e também no staff partidário, especialistas nas diversas políticas macroeconômicas e setoriais que devem compor a mensagem do partido para o seu eleitorado, tradicional e flutuante (pois a intenção é sempre a de conquistar maior apoio entre os eleitores). Esses especialistas devem fazer o seguimento das políticas correspondentes do bloco no poder, discutir suas implicações para o país e tentar oferecer suas propostas alternativas de políticas, que contemplem as expectativas de seu eleitorado e de franjas mais amplas da população.

Normalmente, esse trabalho é conduzido no parlamento, mas o partido também pode ter apoios extensivos na sociedade, como são aqueles vinculados a movimentos sindicais e de interesses setoriais. Na tradição inglesa, tem-se a prática do shadow cabinet, ou seja, um “ministério” alternativo que faz o acompanhamento das políticas em curso, elabora a crítica das medidas implementadas e faz um oferecimento público de suas próprias alternativas de política. Não é preciso ser britânico, contudo, para exercer o saudável hábito do gabinete-espelho, ou melhor, de um governo paralelo; basta organizar seus especialistas e colaboradores voluntários para lançar o debate com a sociedade. Mais até do que oferecer soluções prontas e completas, a oposição tem de saber questionar os fundamentos de cada medida governamental, refazendo os cálculos de custo-benefício, alertando para os trade-offs e os side-effects – eles sempre existem – e antecipando consequências indesejadas e o custo-oportunidade da “receita” oficial. Este é, aliás, o principal dever da oposição: ela deve estar sempre pronta a oferecer soluções alternativas, ainda que parciais, ao quinto ou mesmo ao terço da população eleitoral não suficientemente identificada a uma das forças políticas nacionais dominantes (eventualmente no poder). É essa fração do eleitorado inconstante em suas escolhas – e volúvel, portanto – que pode fazer pender a balança para um lado ou para o outro, em função de considerações de curto prazo ou ligadas à conjuntura econômica do momento.

Na prática, as coisas são mais complicadas, pois, mesmo nos partidos mais modernos e institucionalizados, muito depende dos líderes do momento, do carisma e da atração que estes possam exercer sobre o eleitorado, e também das disputas entre as lideranças desse partido; estas últimas sempre podem eventualmente descambar para o regionalismo ou o caciquismo, em ambos os casos com consequências nefastas para a imagem da oposição. Mais grave ainda é quando essa oposição perde o contato com a realidade e com as expectativas de seu próprio eleitorado, para não dizer da maioria da nação. Surgem, nesse caso, dissidências que vão para outros partidos ou constituem os seus próprios. A experiência brasileira é extremamente pródiga nesses tipos de evento, sendo conhecida pela anarquia partidária, pela dança de partidos por parte de políticos profissionais e pela criação de partidos de aluguel ou de fachada.

Em qualquer hipótese, qualquer governo – de esquerda, de direita ou de centro – suporta o inevitável desgaste da governança, já que políticas “antipopulares” sempre precisam ser implementadas em algum momento, seja para corrigir exageros de tipo social-democrático (distributivismo fiscalmente irresponsável, déficits orçamentários, desalinhamentos cambiais, etc.), seja na vertente oposta (percepções de que os centristas ou conservadores se ocupam mais dos ricos do que dos pobres), ou por razões diversas (problemas de segurança, desemprego, etc.). A própria dinâmica econômica e conjunturas ¬adversas impõem limites a quem exerce o poder.

Assim, quando o eleitorado decidir tentar outros caminhos, outras soluções, a oposição, qualquer que seja ela, precisa estar pronta para oferecer suas receitas e propor seus remédios. A oposição precisa ter um programa de governo. Para isso ela precisa ter um projeto de poder, ou seja, ter consciência do que, exatamente, precisa ser feito, dizer como pretende fazer, e demonstrar credibilidade no empreendimento. O eleitorado brasileiro, pelo menos parte dele, tentou encontrar outra via, pelo menos em duas oportunidades: a “oposição” o abandonou miseravelmente. Ela não tinha soluções e sequer um discurso a apresentar. É o que discutiremos agora.

A “oposição” brasileira e suas principais deficiências

Não é preciso ser um analista político de qualquer envergadura para constatar que a “oposição” brasileira – que, apenas para relembrar, vinha de oito anos, ou mais, de exercício do poder – falhou miseravelmente em sua missão oposicionista. Dizer que ela foi inepta, ineficiente, incompetente, patética, seria até ser generoso com as principais forças que foram agrupadas nessa classificação de “oposição”. Basta dizer que, simplesmente, não existiu uma oposição de verdade durante todo o governo Lula: as forças que deveriam, até precisavam, ser oposição, simplesmente se autoanularam para um exercício que é uma das tarefas mais legítimas em todos os regimes democráticos.

Em sua defesa, pode-se dizer que os petistas, seu líder em especial, foram extremamente competentes – descontando-se, claro, as mistificações criadas para tal efeito – na construção de uma versão peculiar do processo político, da própria história recente do Brasil, o que deixou as forças potencialmente oposicionistas num estado psicologicamente defensivo, até de “vergonha assumida”, por supostos erros e injustiças cometidas ao longo do chamado neoliberalismo do “tucanato”. As campanhas eleitorais de 2002, de 2006 e de 2010 foram construídas com base em deformações grosseiras das políticas conduzidas sob os governos anteriores, desde as simplificações enganosas sobre as privatizações, até as patriotadas sobre a soberania retórica e a submissão ao FMI, passando pelo monopólio da “bondade social”, como se tudo tivesse tido início em 2003. Poucas vezes, no cenário político brasileiro, a versão deformada da história, em vários aspectos até mentirosa, conseguiu tal impregnação no imaginário popular, a ponto de anular discursos e ações daquelas mesmas forças que deram início à estabilização econômica e criaram as condições para a fase de crescimento com distribuição e prosperidade.

Muito se deve, obviamente, às qualidades de “ilusionista” político do presidente popular, suas mistificações propagandistas, mas também às boas condições da economia internacional, durante a maior parte de seus dois mandatos, e a uma gestão razoavelmente responsável na frente econômica. Mas deve-se reconhecer, também, que a “oposição” se autoanulou durante todo esse tempo, jamais tendo conseguido articular um discurso coerente, sequer esclarecedor, sobre o cenário de mentiras criado pelo bloco no poder. Quais as razões desse suicídio político?

Todo e qualquer ato político é encarnado por personagens políticos, príncipes e conselheiros do príncipe, que se conjugam na missão de conduzir homens e partidos ao pináculo do poder, ao comando do Estado. Devemos então concluir que à “oposição” brasileira faltaram as virtudes e as qualidades que, segundo Maquiavel, devem estar presentes nas pessoas que pretendem deter esse comando. Não que o presidente do bloco no poder fosse um estadista, mas certamente se tratava de um “animal político” extremamente competente. Pode-se dizer, nesse sentido, que à “oposição” – ou o que passa por ela – faltaram “animais políticos” de verdade, pessoas que tivessem as virtudes ou a fortuna – para permanecer nos termos do florentino – para representar uma pequena chance de alternância na disputa de poder.

Incapacidade de se organizar

Por certo que se trata de uma incapacidade de se organizar, com bases reais na sociedade, para, a partir daí, conceber e exibir um discurso coerente, compatível com as aspirações de largos estratos sociais, sobretudo nas classes médias. Mais grave ainda: pode-se dizer que à “oposição” brasileira faltaram, sobretudo, ideias claras sobre como apresentar e “vender” seu programa, se é presumível que, de fato, ela pudesse ter algo assimilável a um programa para oferecer à metade da população – na verdade estratos cambiantes – que não aceita e nunca aceitou a propaganda política que lhe foi servida sob disfarce de “política nacional” pelo bloco no poder. Sem conseguir ver claro no cenário político, dividida pelo caciquismo de seus líderes regionais, a “oposição” não soube sequer explorar as inconsistências e mazelas do bloco no poder, tão evidentes aos olhos de estratos médios de eleitores basicamente comprometidos com a ética e a moralidade no trato da coisa pública.

Pode-se aventar a hipótese de que a qualidade dos homens públicos que se colocam numa oposição de princípio ao bloco no poder – não por razões puramente instrumentais, de conquista do poder pelo poder, mas quer se acreditar que por razões de filosofia política – precisaria melhorar dramaticamente para que eles possam integrar algo suscetível de ser chamado de oposição. Talvez sejam necessárias, inclusive, novas lideranças políticas, que obviamente tenham “princípios” compatíveis com uma oposição digna desse nome. Tal “reinvenção” depende de vários fatores dentre os quais podem ser citados: a reeducação dos próprios integrantes do que é hoje uma oposição de araque; a reorganização de suas bases partidárias; a revisão do seu modo de “funcionamento” no Congresso; mudanças nos parâmetros mentais que orientam o discurso político e que comandam suas ações no plano prático; transparência aos olhos dos eleitores e, sobretudo, distinção clara com “tudo isso que está aí”, atualmente, e que visivelmente não agrada ao eleitorado instruído. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir. Vejamos como.

Da travessia do deserto a... mais deserto?

A oposição a ser construída – a verdadeira, não o simulacro que hoje existe – já parte de uma formidável base real e potencial. Os dados eleitorais estão disponíveis no site do TSE, mas se podem extrair algumas conclusões adicionais a partir deles. A base total do eleitorado brasileiro situava-se, em 2010, em quase 136 milhões de pessoas, provavelmente atingindo 145 milhões em 2014. A abstenção em 2010 foi excepcional, alcançando quase trinta milhões de eleitores, aos quais se juntaram 4,6 milhões que anularam seus votos e 2,5 milhões que se abstiveram de qualquer escolha. Os “excluídos” representaram, portanto, um quarto do eleitorado; pode-se, em toda a legitimidade, imaginar que eles possam ser reduzidos à metade, em condições normais de disputa política, o que, infelizmente, não ocorreu em 2010.

Imaginamos, também, que os votos dados à “oposição”, em torno de 43 milhões, sejam realmente de oposição ao presente estado de coisas, especificamente ao “Estado do PT”. Pode-se razoavelmente conceber que uma oposição – qualquer oposição – no Brasil possa reunir metade do eleitorado, admitindo-se, inclusive, que a educação política, de um lado, e o desgaste do poder petista, do outro, contribuam para uma pequena maioria potencial, numa situação em que o mito carismático ainda estará ativo e trabalhando para consolidar o poder petista.

Num regime parlamentarista, é possível compor um governo com apenas 40% de apoio popular. Regimes presidencialistas do tipo brasileiro, ou americano, contudo, convivem com maiorias diferenciadas para a representação parlamentar e para a chefia do executivo, cargo este que exige a maioria absoluta do eleitorado. Na prática, não existe, a rigor e numa abordagem prosaicamente matemática, nenhuma garantia antecipada de vitória, ou certeza de derrota, para qualquer um dos lados, na medida em que, à diferença dos sistemas parlamentaristas, contendas eleitorais em sistemas fortemente marcados por disputas pessoais apresentam-se quase como uma loteria. Um dos fatores é que os eleitores “flutuantes”, os “indiferentes” e os “desalentados” são em número suficiente para alterar a balança para qualquer um dos lados.

Porém, números são um componente talvez objetivo, mas insuficiente para determinar resultados eleitorais. Mais importante é a predisposição do eleitorado para “acolher” uma definição clara quanto aos problemas mais angustiantes da conjuntura. A situação econômica pode até ser decisiva numa escolha eleitoral; mas as percepções sobre quem conduz a política econômica e sobre como ela é conduzida pelos responsáveis também são relevantes. Questões como emprego, segurança pessoal, disponibilidade de serviços públicos – saneamento, saúde e educação, etc. – e temas pontuais, de interesse setorial ou regional podem fazer pender a balança eleitoral. Em outros termos, não existe uma determinação prévia quanto aos embates eleitorais no modelo brasileiro – como em qualquer outro, aliás – e isso significa que as chances estão abertas às forças políticas que pretendam se apresentar como oposição.

Não importam quais sejam as alternativas de políticas oferecidas ao público eleitor por uma oposição efetiva e confiável. É preciso que esta seja precisamente isso: confiável. Ora, não é surpresa para nenhum eleitor medianamente bem informado que a classe política, de maneira geral, fez tudo o que era possível para se desqualificar moralmente, para se rebaixar no plano da ética, para deteriorar completamente a instituição parlamentar e outro tanto no plano dos executivos locais, estaduais e até o federal. Qualquer que seja a qualidade da nova mensagem política de oposição, se ela um dia existir, sua credibilidade, intrínseca e extrínseca, depende essencialmente da regeneração moral de suas lideranças, que deveriam operar aquilo que os italianos – escaldados por anos e anos de corrupção política – chamam de rientro morale, ou seja, uma profunda recomposição da ética na vida política do país.

A julgar por exemplos recentes – os aumentos para os próprios parlamentares e a questão das aposentadorias escandalosas de ex-governadores são dois casos eloquentes do completo descompasso entre as expectativas da população e a atitude das “oposições” – o Brasil não está sequer próximo de uma recomposição da classe política para fora da atual degradação das instituições de representação; nisso, a suposta “oposição” não se diferencia em nada das perversões morais alimentadas pelo próprio bloco no poder. Aparentemente, a “oposição” atual ainda não está pronta a empreender essa passagem; ela não quer enfrentar sua própria regeneração moral (talvez não possa, ou não tem coragem, provavelmente não quer).

Uma vez aceita e internalizada essa decisão pela “moralização” da oposição – que se situa no centro de toda e qualquer regeneração oposicionista, cabe lembrar – começa, então, a tarefa de organizá-la em função do objetivo da reconquista do poder. Tal tarefa implica, em primeiro lugar, uma definição clara de um programa político de escopo nacional e setorial, ou seja, uma plataforma explícita que toque em todos e em cada um dos principais problemas nacionais, sobretudo na esfera institucional, no terreno econômico e nas diversas áreas de maior impacto no plano das políticas públicas (social, cultural, regional, etc.).

Não é simples montar um programa e uma plataforma de ação com tal amplitude, o que certamente exigirá seminários e grupos de trabalho em cada uma dessas vertentes abertas à ação partidária. Mas um partido, ou uma oposição, que pretenda aspirar a ser uma real alternativa de poder não pode ser econômico nem em definições programáticas, nem em propostas político-econômicas relativamente detalhadas. Basta arregaçar as mangas e colocar o cérebro para pensar.

O que fazer? Tudo depende de lideranças esclarecidas

Vendo o panorama da planície, isto é, do ponto de vista dos cidadãos eleitores, não parece haver dúvidas de que o Brasil não conta com uma classe política à altura de suas novas responsabilidades enquanto potência emergente, desejosa de assumir um papel relevante na cena internacional. O parlamento, em especial, mas também os partidos políticos e as forças que gravitam em torno deles parecem viver num mundo à parte, feito de partilha de despojos estatais, conquista de pedaços do orçamento e disputa por pequenas prebendas em todos os poros do imenso ogro estatal.

A discussão sobre temas internacionais no parlamento, e dentro dos partidos, é rara, superficial e geralmente equivocada. Quando ela ocorre, tende a focar falsos problemas que estariam, supostamente, na origem das dificuldades enfrentadas pelo Brasil: guerra cambial de alguns, concorrência desleal de outros, capitais especulativos de um lado, arrogância imperial do outro, ameaças imaginárias sobre a soberania brasileira, em alguma parte de seu imenso território, e sobre seus fabulosos recursos naturais. Poucos desses representantes políticos, contudo, comparam o Brasil a seus equivalentes em outras partes do mundo; poucos deles se dão conta de como o Brasil avança devagar, de como ele está de fato atrasado em relação às mudanças mais dinâmicas que estão ocorrendo um pouco em todas as partes.

De fato, nenhum dos problemas atuais enfrentados pelo Brasil tem a ver com impactos negativos do ambiente externo: o mundo tem sido muito “generoso” com o Brasil, oferecendo mercados e provendo investimentos de todos os tipos para sustentar seu crescimento do período recente. Todos os problemas brasileiros, sem exceção, são made in Brazil, têm raízes puramente internas e devem receber aqui sua solução; seu equacionamento passa por um conjunto de reformas que deveria estar no centro de qualquer programa credível de proposta política geral de um movimento oposicionista que aspire legitimamente conquistar o poder para implementar, a partir daí, essas reformas.

A oposição não conseguirá chegar a ocupar esse espaço alternativo de candidata ao poder se não trabalhar intensamente no diagnóstico dos problemas brasileiros, no oferecimento de respostas sólidas aos mesmos problemas, e na sua própria organização interna, colocando-se numa posição de governo “virtual”, ou potencial, com base em propostas aceitáveis para uma maioria de brasileiros, sem ceder a populismos ou à demagogia habitual nesses meios. Ou seja, a oposição precisa estar pronta para oferecer outro futuro a todos os brasileiros que não acham que a esperteza política aliada ao oportunismo propagandístico representa o horizonte real de possibilidades para o país. Existe um imenso contingente de brasileiros que não se reconhece no estado de coisas vendido atualmente como a condição normal e possível para o Brasil. Como diriam alguns sonhadores, “outro Brasil é possível”; mas para isso outra oposição é necessária, uma que se apresente como alternativa credível.

Uma das condições essenciais para que essa oposição seja construída parece ser a existência de lideranças dotadas de credibilidade intrínseca e de capacidade política para, em primeiro lugar, reformar profundamente a “oposição” atual; num segundo momento, presidir à elaboração temática e organizacional de um “governo” alternativo ao atual bloco no poder. Não existe nenhum obstáculo “técnico”, nenhuma força externa à própria “oposição”, nenhum impedimento estrutural, ou nacional, de caráter político, para que essas tarefas sejam empreendidas.

Tudo depende da disposição de figuras políticas que pretendam aspirar ao papel de alternativa ao poder atual: a “fortuna” do quadro político pode ser favorável a uma oposição renovada, como observado nas eleições de 2010. Mas o fator mais importante ainda é – ele sempre é – constituído pelas “virtudes” dos condutores de cidadãos.

• É diplomata de carreira e professor universitário, com diversos livros sobre a política externa e as relações internacionais do Brasil

FONTE: Revista Interesse Nacional Nº 13 – Abril a Junho de 2011

Ainda sobre o discurso de Davos - Alexandre Schwartsman

O discurso do rei
Alexandre Schwartsman
A Mão Visível, 29/01/2014

Visto em certos círculos como capitulação, a presidente discursou em Davos numa tentativa de recuperar a confiança perdida pelo país junto a investidores internacionais. Intenção louvável (ainda que tardia) à parte, o resultado não foi dos melhores. O discurso está permeado dos mesmos vícios que criaram o problema, a saber, autossuficiência no limite da arrogância, assim como uma inacreditável incapacidade de entender as críticas ao desempenho medíocre do país.

Um olhar mais detalhado revela que a fala trouxe obviedades, inverdades e promessas. Nenhuma colabora particularmente para a construção da confiança.

É muito bom saber, por exemplo, que parcela considerável da população brasileira ascendeu social e economicamente na última década, ou que as reservas internacionais do Brasil são da ordem de US$ 375 bilhões. O problema é que estas informações só ajudariam a melhorar a imagem do país caso fossem desconhecidas da audiência e reveladas naquele momento feliz em que a presidente ofereceu ao mundo uma visão inédita sobre a realidade brasileira, o que, convenhamos, está longe de ser o caso.

Pelo contrário, a audiência já conhece a história e mesmo assim permanece reticente quanto ao país, não, obviamente, porque desgosta de reservas elevadas e melhora social, mas porque tem visto outros desenvolvimentos nada positivos, como inflação alta, crescimento baixo e contas fiscais sob crescente suspeita. Neste aspecto esperava-se algo de concreto acerca de como lidar com estes temas. O que se viu, contudo, foi a negação da sua existência.

Assim, a presidente reitera que o país busca, “com determinação, o centro da meta inflacionária”. Caso fosse verdade, a diretoria do BC já estaria na rua. Não se atinge a meta (não existe “centro da meta”; só a meta) de inflação desde 2009, e, de acordo com as previsões do BC, isto não ocorrerá pelo menos até 2015. Se isto é “determinação”, não quero nem imaginar o que teria ocorrido caso tivessem feito “corpo mole”.

Na mesma toada afirma que “as despesas correntes do governo federal estão sob controle e houve uma melhora qualitativa (!) das contas públicas nos últimos anos”. Uma breve inspeção dos números oficiais do Tesouro, porém, revela que as despesas correntes saltaram de 16,5% do PIB em 2010 para 17,7% do PIB nos 12 meses terminados em novembro do ano passado, para ficar apenas no período mais recente (em 2003, por exemplo, eram 14,5% do PIB). De novo, se isto significa controle, me arrepia pensar o que poderia ser uma situação de descontrole.

Afirmações como as acima podem funcionar para uma audiência despreparada, mas dificilmente no que se refere a investidores familiarizados com os números e as ações de política econômica no Brasil. O resultado no caso é o oposto: a percepção que o governo não reconhece seus próprios problemas apenas reforça a desconfiança na gestão do país.

Contra este pano de fundo, sobram as promessas, mas, vamos falar a verdade, estas só funcionam se houver confiança, o que nos traz de volta à estaca zero.


Em momento algum houve reconhecimento dos erros (e não foram poucos!) de política, os diagnósticos equivocados, a execução malfeita de projetos. Houvesse autocrítica, certamente seria possível construir uma base para a credibilidade acerca de rumos futuros que incorporassem a correção dos enganos anteriores.

Assim, se tivesse que resumir o discurso, seria algo na linha: “estamos fazendo tudo certo, mas vocês não reconhecem; tratem de admitir que somos fantásticos e invistam”.


O governo prefere acreditar que a questão se resume a dificuldades de comunicação e que um exercício algo despudorado de autolouvação há de corrigi-las, apesar da evidência em contrário. Se quisessem mesmo resolver o assunto poderiam começar ensinando à presidente o que aprendi com minha avó: “elogio em boca própria é vitupério”.


(Publicado 29/Jan/2014)

Harold James: um historiador reflete a memoria das guerras

Artigo

A História e a Europa

Para o historiador Harold James, no centenário da eclosão da Primeira Guerra, outros conflitos, como o da Síria, poderiam ser estopim para um novo conflito

Harold James
Project Syndicate, February 4, 2014
Soldados alemães usam máscaras de gás enquanto operam uma arma especializada em abater aviões na I Guerra Mundial
Soldados alemães usam máscaras de gás enquanto operam uma arma especializada em abater aviões na I Guerra Mundial (General Photographic/Getty Images)
A História influi, mas de diferentes maneiras. Em alguns lugares e para algumas pessoas, a História significa eternos confrontos que são moldados por forças geopolíticas profundas: o que ocorreu há quatro séculos pode representar o mesmo que ontem. Em outros lugares e para outras pessoas, a História sugere uma necessidade de encontrar maneiras de escapar de situações antigas e complexas e preconceitos ultrapassados. É essa diferença que define a batalha intelectual que ocorre atualmente ao redor da Europa.
Com o centenário da eclosão da Primeira Guerra Mundial, este ano, dezenas de novas análises da "guerra para terminar todas as guerras" surgiram na imprensa. E é tentador ver paralelos contemporâneos na complacência imperial da Europa, particularmente na firme convicção de que o mundo seria tão interligado e próspero que qualquer inversão fosse impensável. Hoje, apesar dos supostos efeitos civilizadores de cadeias globais de abastecimento, as tensões na Síria ou no mar da China Meridional poderiam explodir o mundo – assim como ocorreu no conflito na Bósnia, em 1914.
Refletir sobre o legado da Grande Guerra é também uma ocasião de reviver a mentalidade da época. No Reino Unido, o secretário da Educação, Michael Gove, recentemente levantou um forte debate político, posicionando-se contra os historiadores que enfatizam a futilidade da guerra, chamando-a de uma "guerra justa" contra o "implacável darwinismo social das elites alemãs." Isto parece ser uma alusão velada às lutas de poder da Europa contemporânea.
Mas o ano de 1914 não é o único, nem o mais atraente ponto de comparação para interpretar o passado da Grã-Bretanha. O ano de 2015 será o bicentenário da Batalha de Waterloo e da derrota final de Napoleão. O político de direita britânico Enoch Powell costumava afirmar que o mercado comum europeu é a vingança que os alemães e os franceses impuseram à Grã-Bretanha pelas derrotas que o bloco de países lhes infligiu.
As celebrações e comemorações estarão cheias de simbolismo relacionado aos conflitos contemporâneos. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, já teve de deslocar uma reunião de cúpula com o presidente francês François Hollande do Palácio de Blenheim, local proposto inicialmente, porque diplomatas franceses perceberam que o edifício havia sido construído para homenagear John Churchill, o Duque de Marlborough, que esmagou as forças de Luís XIV em 1704, perto da pequena cidade da Baviera que deu o nome ao palácio.
O ano de 1704 é repleto de significado. A vitória sobre a França estabeleceu as bases para o Tratado de União de 1707 entre Inglaterra e Escócia. Essa união é objeto de um referendo importante que será realizado este ano em território escocês.
Datas históricas alusivas estão sendo usadas ostensivamente, de forma semelhante, em outro extremo do continente europeu, para invocar imagens de inimigos que repercutem em debates políticos contemporâneos.
Há alguns anos, um filme russo, simplesmente intitulado “1612”, evocou a era das trevas na Rússia, quando a enfraquecida liderança levou o país a ser invadido e subvertido por astuciosos empresários e aristocratas poloneses.
O diretor do filme, Vladimir Khotinenko, disse que foi importante que seu público "não tenha considerado o filme como algo que aconteceu na História Antiga, mas como um evento recente, que tenha sentido a ligação entre o ocorrido há 400 anos e hoje."
Enquanto a Rússia luta para trazer a Ucrânia de volta à sua órbita, outra data antiga se agiganta: 1709, quando o Tsar Pedro I, o Grande, esmagou os exércitos sueco e cossaco na Batalha de Poltava. As margens da Europa ocidental e oriental são obcecadas por datas que lembram suas lutas: 1914, 1815, 1709, 1707, 1704 e 1612, entre outras. Por outro lado, o núcleo do continente europeu é obcecado por transcender a História, operando os mecanismos institucionais para superar os conflitos que marcaram a Europa na primeira metade do século XX. O projeto de integração europeu é uma espécie de libertação das pressões e restrições do passado.
Após a Segunda Guerra Mundial, Charles de Gaulle desenvolveu uma metafísica complicada para explicar o relacionamento do seu país com seu passado problemático. Todos os países europeus foram traídos. "A França sofreu mais que os outros porque foi traída mais que os outros. É por isso que a França que deve perdoar... Somente eu posso conciliar a França e a Alemanha, porque somente eu posso tirar a Alemanha da sua decadência”.
Winston Churchill (um descendente direto do Duque de Marlborough), no pós-guerra, tinha uma visão similar para superar as divisões e contendas nacionalistas. "Este continente nobre (...) é a fonte da fé cristã e a ética cristã", afirmou. "Se a Europa se unisse na partilha do seu patrimônio comum, não haveria limite à felicidade, à prosperidade e à glória dos seus trezentos ou quatrocentos milhões de habitantes.”
Hoje, o Centro Europeu é muito ingênuo ou muito idealista? É mesmo possível escapar da História? Ou, ao contrário, há algo estranho na maneira como as margens europeias obsessivamente recorrem aos marcos históricos? Na Grã-Bretanha e na Rússia essa obsessão parece não ser apenas uma maneira de defender os interesses nacionais, mas também um mecanismo para apelar a uma população desencantada com a realidade contemporânea do declínio do passado imperial.
De Gaulle e Churchill sabiam muito sobre a guerra, e queriam transcender o legado sangrento de Poltava, Blenheim e Waterloo. Viam a História como garantia de lições concretas sobre a necessidade de escapar do passado. Hoje, as margens da Europa, por outro lado, parecem determinadas a escapar para o passado. (Tradução: Roseli Honório)
Harold James é professor de História na Universidade de Princeton e pesquisador sênior do Centro para Inovação em Governança Internacional
@Project Syndicate, 2014

Republicas escravocratas dos companheiros alinhados - Coisasinternacionais (Mario Machado)

Meu amigo e colega blogueiro Mario Machado tece considerações pertinentes sobre uma das grandes vergonhas brasileiras da era dos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida 
Coisas Internacionais: 05 Feb 2014 06:39 AM PST
cubanarefugiada
Hoje a grande imprensa reverbera a primeira deserção do programa Mais Médicos, a Dra. Ramona Rodriguez. Era questão de tempo que houvesse uma deserção e um pedido de asilo, quase uma profecia auto-realizável, tanto é assim que os contratos dos médicos cubanos contêm clausulas que não permitem o pedido de asilo e nesses casos a deportação seria automática para a ilha prisão caribenha.
Esse contrato empurrou Ramona a tomar a única atitude racional que ela poderia ter que é buscar apoio político – e, também segurança na repercussão midiática – na oposição ao governo petista. E nesse particular o DEM agiu como se espera de um opositor quando tem a chance de ter a superioridade moral.
A médica cubana está asilada na sala da liderança do DEM, portanto, protegida da Polícia Federal que segundo consta quer apreendê-la o mais rápido possível, como no caso dos boxeadores durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro.
Os motivos para o pedido de asilo são explicitados nessa reportagem da Folha de São Paulo:
Clínica-geral, ela chegou ao país em outubro e atuava em Pacajá, no Pará. Ela diz que deixou a cidade no sábado e seguiu para Brasília após descobrir que o valor de R$ 10 mil pago pelo governo brasileiro a outros médicos estrangeiros era muito superior ao que ela recebia pelos serviços prestados.
A cubana alega ainda ter sido enganada sobre a possibilidade de trazer seus familiares ao país.
Ramona foi apresentada nesta terça no plenário da Câmara por líderes do DEM. Em entrevista, ela contou que recebia por mês US$ 400 para viver no Brasil e outros US$ 600 seriam depositados em uma conta em Cuba, que só poderiam ser movimentados no retorno para a ilha.
Esse brutal desconto que o governo de cuba faz sobre os salários dos médicos aqui enviados motivou as comparações com o trabalho análogo à escravidão, e de algum modo os militantes do partido do governo conseguiram transformar a oposição a condição de escravidão dos médicos cubanos em racismo, olhando só o discurso, foi até genial conseguir fazer “colar” essa contradição.
Essa primeira deserção confirma o que já havia escrito sobre o Mais Médicos: “Tenho muita simpatia pelos médicos cubanos que aqui chegam, não por causa do discurso que vêm pra nos salvar, mas sim pelo fato de estarem dispostos a sacrificar tanto para dar uma vida melhor a seus familiares, uma prova cabal que o paraíso socialista não é tão paradisíaco”.
E a tal “Sociedade Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Cubanos” merece uma análise mais de perto, talvez de alguém que conheça os meandros da máquina da OPAS. E não estou otimista, acho que cedo o tarde o pedido de asilo será negado, não se estenderá a ela a mesma simpatia que coube ao Cesare Battisti.
Essa senhora não sabe o que lhe aguarda no Brasil, em breve, a máquina petista e a esquerdista em geral começará o festival de ofensas, calúnias e todo tipo de expediente que negue a realidade da condição aviltante que ela se encontra no Brasil e fato que o Mais Médicos se configura como um instrumento de financiamento brasileiro a ditadura homicida de Cuba. As flores da chegada, tenho a impressão, serão uma memória confusa e até certo ponto irônica.

O crepusculo da democracia na AL: homenageando um regime totalitario

Crepúsculo é pouco. A democracia simplesmente desapareceu na reunião da Celac em Havana. E com ela, a vergonha, ou um mínimo sentido de pudor, da parte de TODOS os dirigentes ali presentes.
Transcrevo do blog de Orlando Tambosi. 
Paulo Roberto de Almeida 
2014, um ano sombrio para a democracia na América Latina.
O infamante encontro de dirigentes latino-americanos em Cuba - Dilma na linha de frente, inaugurando obra com dinheiro do contribuinte brasileiro - mostra o pouco apreço que têm pela democracia e pelo Estado de Direito e as liberdades em geral. A propósito, um bom artigo de Yesenia Álvarez, presidente do Instituto Político para a Liberdade (Peru):
Los inicios del 2014 son sombríos para la democracia en la región. Que Cuba, la dictadura más longeva del continente, sea la anfitriona de los 33 países de la Comunidad de Estados Latinoamericanos y Caribeños (Celac), nos alerta del poco o nulo compromiso que nuestros gobiernos tienen con los principios democráticos, el Estado de derecho y las libertades.
La hipocresía internacional viene desde enero del 2013, cuando Raúl Castro fue aplaudido e investido como presidente de la Celac por gobernantes que se jactan de ser demócratas. ¿Cómo es posible que Cuba sea elegida, siendo una dictadura, para presidir una organización que supuestamente ha sido creada para defender y proteger el orden democrático y los derechos humanos? ¿Cómo Cuba puede ser anfitriona de una cita que evaluará el seguimiento a declaraciones inspiradas en construir sociedades justas, democráticas y libres?
Cuba viola constantemente todos los principios democráticos. Los Castro se han perpetuado en el poder por más de cincuenta años con un sistema de partido y pensamiento único, sin elecciones libres, sin libertad de expresión y con un férreo aparato represivo de persecución política a los opositores. Sin embargo, desde la constitución de la Celac ningún gobierno latinoamericano ha protestado por la incorporación y permanencia de la dictadura cubana en el organismo.
Y el cinismo de la Celac no tiene límites: en su “Declaración especial sobre la defensa de la democracia” se acordó una cláusula que obliga a sus miembros a adoptar acciones concretas cuando exista una amenaza de alteración del orden democrático. Allí mismo expresa que se buscará el pronunciamiento de la comunidad latinoamericana y caribeña, y que contribuirán a la restitución del proceso político institucional democrático y del Estado de derecho a la brevedad posible.
Es una burla perversa de este esperpento de organismo continental, pues pone a una dictadura a custodiar que no se altere el orden democrático de la región. De ser Celac una organización seria y consecuente, el primer país en el que debe tomar medidas concretas para restituir el proceso político institucional democrático a la brevedad posible debe ser en Cuba. Según su “Declaración especial sobre la defensa de la democracia”, los 33 gobernantes deberían estar buscando el pronunciamiento de la comunidad latinoamericana y caribeña para sancionar al gobierno de Cuba y pedir que haya una restitución del orden democrático.
Por el contrario, la infamia de este organismo continúa. Cuando se reunieron sus miembros en La Habana a fines de enero, nadie pareció exigir que Cuba se sujete a los compromisos democráticos. Además, resultó desconcertante la asistencia de los secretarios generales de la ONU y de la OEA, situación desalentadora si tan destacados representantes internacionales ni siquiera se reunieron con la disidencia, que viene siendo amordazada, amenazada y arrestada por organizar pacíficamente un foro democrático paralelo a la cumbre de la Celac.
Vergonzosamente, los gobiernos latinoamericanos empiezan el 2014 reverenciando a una dictadura y dándole la espalda a la democracia, vaciándola de contenido, haciendo de ella cualquier cosa, transgrediendo la dignidad de un pueblo víctima de unos tiranos. Es hoy, sin duda, uno de esos momentos en que es impostergable la expresión de solidaridad de los ciudadanos demócratas de la región frente a la venia y complicidad de nuestros gobernantes con una tiranía. (El Cato).

A crise argentina e seus efeitos sobre o Brasil (1 de 3) - PauloRoberto de Almeida


A crise argentina e seus efeitos sobre o Brasil- Parte 1 de 3

Instituto Millenium
1. Comércio e divergências macroeconômicas no Mercosul
A Argentina sempre foi, historicamente, um grande parceiro econômico do Brasil, mais pelo lado do comércio do que por outros fluxos econômicos, embora, desde a criação do Mercosul e a partir da intensificação de diferentes acordos setoriais, as relações recíprocas tenham conhecido, nos anos 1990, expansão notável também pelo lado dos investimentos e dos demais fluxos ligados a serviços, cooperação científica e tecnológica, bem como alguns projetos conjuntos em áreas selecionadas.
Até os anos 1980, a Argentina sempre esteve entre os dez primeiros parceiros comerciais do Brasil, mesmo não alcançando os primeiros lugares. Com a aproximação pós-ditaduras militares em ambos os países, teve início o processo de integração, primeiro pelo Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), de 1986, baseado em protocolos setoriais e comércio administrado, depois pelo Tratado de Integração de 1988, reduzindo tarifas e criando uma zona de livre comércio gradual até chegar a um mercado comum em dez anos, e finalmente, pela Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, que estabeleceu o livre comércio e a união aduaneira num prazo de quatro anos e prometia um mercado comum, no formato intergovernamental a partir de 1º de janeiro de 1995. A Argentina despontou, então, entre os primeiros cinco parceiros.
O Mercado Comum do Sul (Mercosul), de 1991, nada mais é senão o mesmo acordo de mercado comum de 1990, estendido a dois novos parceiros, Paraguai e Uruguai, tornando quadrilateral, portanto, o que era apenas bilateral. Os fluxos de comércio intra-Mercosul cresceram significativamente nos primeiros nove anos de existência, não sem alterações de direção nos saldos bilaterais (de maneira algo errática em função das políticas cambiais), mas, a partir de 1999, o bloco veio a enfrentar crises de várias naturezas, das quais não parece ter se recuperado, mesmo com a retomada do crescimento de seus membros individualmente.
Com base nos instrumentos originais, – Tratado de Assunção de 1991, Protocolo de Ouro Preto de 1994, muitas resoluções do Conselho e normas do Grupo Mercado Comum e Comissão de Comércio – o comércio se expandiu de maneira exponencial entre os quatro parceiros entre 1991 e 1999, criando na Argentina aquilo que veio a ser conhecido como “Brasil dependência”, tendo o Brasil se tornado seu primeiro parceiro em ambos os fluxos de comércio. No caso do Brasil, o Mercosul, no qual o comércio com a Argentina ocupa a maior parte dos fluxos, passou de porção menor do comércio exterior total brasileiro (apenas 4% em 1991) até alcançar fração respeitável, cerca de 15% no seu momento de maior relevância, no final dos anos 1990; a Argentina oscilou, então, entre a segunda ou a terceira posição mais relevante nos mercados exportadores brasileiros – logo depois dos Estados Unidos e à frente de vários parceiros tradicionais europeus. Ocorreu muita oscilação no comércio bilateral e na repartição dos saldos, pois ambos os países passaram por crises cambiais recorrentes, sobressaltos financeiros ou descompassos monetários em momentos diversos, sendo o ano de 1999 um divisor importante, não apenas economicamente, mas também politicamente. Pode-se dizer que a partir daí o Mercosul, mesmo continuando a ser importante comercialmente para o Brasil (e certamente para a Argentina), perdeu espaço nos fluxos globais do Brasil (reduzindo-se a menos de 10% do comércio exterior global depois disso).
As razões da perda de importância relativa são muitas, mas elas têm a ver, basicamente, com divergências nas políticas econômicas dos dois países, que nunca foram muito alinhadas, mas cujas diferenças eram minimizadas por ações mais ou menos convergentes das lideranças políticas nos dois países no decorrer da primeira década. Na verdade, a divergência macroeconômica entre Brasil e Argentina existe desde a origem do Mercosul, uma vez que, quando do seu nascimento, em 1991, a Argentina já tinha adotado o regime cambial da paridade absoluta entre o peso e o dólar, o que estabilizou temporariamente sua economia, depois das crises de hiperinflação do final dos anos 1980 e início dos 1990. Ainda assim, o novo regime foi valorizando paulatinamente o peso e, já em meados da década, a Argentina começou a enfrentar problemas de competitividade nas suas exportações, contornados por artifícios protecionistas e recurso a empréstimos externos, para compensar saldos deficitários nas transações correntes. O único país com o qual a Argentina mantinha saldo favorável, na segunda metade da década, era justamente o Brasil, por força de comércio administrado (automóveis, trigo, petróleo) e da valorização do real na primeira fase do Plano Real.
Na verdade, a divergência macroeconômica entre Brasil e Argentina existe desde a origem do Mercosul, uma vez que, quando do seu nascimento, em 1991
Quando da crise cambial no Brasil, em setembro de 1998, e da desvalorização e adoção do regime de câmbio flutuante, a partir de fevereiro-março de 1999, a Argentina perdeu seu último grande provedor de divisas, e o regime de conversibilidade entrou em crise terminal (também agravada pelos déficits orçamentários, excessos de emissão de moeda e de endividamento externo). Entre 2001 e 2002, a Argentina experimentou uma das mais importantes crises de sua história recorrente e repetida de crises econômicas, o que afetou gravemente o comércio bilateral e no âmbito do Mercosul. Chegou-se inclusive a falar de dolarização completa, mas, em função da maxidesvalorização então adotada e da decretação de moratória total sobre a dívida externa, chegou-se a um regime de câmbio administrado. O comércio bilateral e intrarregional declinou 50% e, mesmo recuperando-se paulatinamente na década seguinte, não mais voltou a exibir a importância relativa que ele teve durante a primeira década do bloco.
Não obstante, existiu ali, ainda que de maneira involuntária, uma primeira oportunidade para a adoção de mecanismos monetários e cambiais que poderiam ter permitido realizar um dos requisitos do Mercosul para a consecução do seu mercado comum, que é a convergência macroeconômica a partir de políticas harmonizadas nessas áreas. Esse não foi, entretanto, o caminho seguido pelos dois países, muito em função da adoção, pela Argentina, de políticas de corte heterodoxo e de claro sentido protecionista. Desde então, aprofundou-se a divergência entre os dois países, mesmo com a recuperação – nunca completa ou acabada – dos fluxos nominais de comércio.
A bem da verdade, tanto o Brasil quanto a Argentina, tornaram-se mais protecionistas, ao longo da primeira década do novo milênio, mas foi a Argentina quem recorreu a mecanismos claramente em contradição com as normas e procedimentos formalmente em vigor no âmbito do Mercosul, em face da complacência do governo brasileiro, alegadamente em “solidariedade” com a recuperação econômica e o processo de “reindustrialização” do principal parceiro regional. A “paciência estratégica” do Brasil com respeito aos descumprimentos argentinos dos requerimentos do Mercosul serviu apenas para que o país aprofundasse suas medidas discriminatórias contra as exportações brasileiras, em total oposição não apenas às regras do bloco regional, mas também com respeito às normas do sistema multilateral de comércio. O governo brasileiro nunca utilizou-se do recurso aos mecanismos de solução de controvérsias do Mercosul ou do sistema arbitral do Gatt-OMC, apenas solicitando a mesma paciência por parte de suas empresas exportadoras em relação aos descumprimentos argentinos.




SOBRE PAULO ROBERTO DE ALMEIDA


Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, mestre em planejamento econômico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade de Estado de Antuérpia, doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas. Trabalhou como assessor especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. É autor dos livros: “O Mercosul no contexto regional e internacional” (Aduaneiras, 1993), “ O Brasil e o multilateralismo econômico” (Livraria do Advogado, 1999), “ Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (UFRGS, 1998)” e “O moderno príncipe – Maquiavel revisitado” (2007)