No terço final de uma longa resenha do livro de Hannah Arendt, "Origens do Totalitarismo", Carlos Pozzobon oferece sua visão do totalitarismo brasileiro em construção.
Vale transcrever a partir desta postagem em seu blog de resenhas de livros:
http://carlosupozzobon.blogspot.com.br/2011/12/as-origens-do-totalitarismo.html
Totalitarismo brasileiro em construção
Carlos Pozzobon
19/9/2010
Tudo começou na ditadura militar moribunda de 1964,
onde um marxismo perseguido e multifacetado passa a trabalhar
socialmente como proselitismo de uma causa que precisa de vínculos com
organizações sociais. Encontra nos sindicatos obrigatórios uma dádiva
dos céus para aprofundar raízes.
O peleguismo tradicional precisa ser substituído com o método de se
dizer o contrário do que se vai fazer. Inicialmente, criticando a
obrigatoriedade do imposto sindical – atitude importante para provocar
simpatia na sociedade. A imprensa saúda o movimento como renovador da
velha tradição fascista. O prestígio começa a fluir para líderes que não
são mais do que apedeutas e marionetes. Em seguida, formados os
sindicatos mais importantes, uma nova lei sindical vai dar organicidade
às confederações, federações e entidades coligadas com, naturalmente,
imposto sindical obrigatório, o contrário do que se dizia. Nos
sindicatos, a fachada de modernidade se desmancha na prática do atraso.
Agora o que se pretendia combater foi invertido.
Na intimidade da mente totalitária, ocorrem as inversões praticadas por
Stalin: “sempre tomar o cuidado em dizer o contrário do que fez e fazer o
contrário do que disse”. É a sociopatia juntando má-fé e compulsão para
mentir, mas que rende extraordinários resultados eleitorais ao sistema.
No poder, o partido precisa construir a todo custo uma maioria
eleitoral para impedir a alternância. Essa maioria não virá de partidos
políticos, mas de organizações sociais. O partido passa a controlar
diretamente os sindicatos, impedindo por decreto a auditoria das contas
sindicais pelos órgãos do Estado (TCU). Nos comícios, o partido convoca
os sindicatos para uma demonstração de força, que assim demonstram sua
subserviência ao poder. Comandando a turba, juntamente com as
organizações sociais, estão os movimentos liderados por funcionários de
entidades e empresas estatais.
Organizações sociais, do tipo MST e Via Campesina, já demonstraram o
novo modelo de fascismo no campo: ao arbítrio de seus líderes,
propriedades invadidas são acobertadas pelos vínculos partidários nas
estatais, que fornecem a legalidade instrumental para declarar terras
improdutivas, independentemente de sua real situação, e a liberdade para
os saques.
Um exército de mercenários sustentado por verbas da reforma agrária se
mobiliza contra o trabalho agrícola de larga escala, retalhando a
propriedade invadida em casas de campo para seus dirigentes, ou
repassando a propriedade a terceiros, que, por sua vez, terminam gerando
quase nenhuma produtividade. Verbas generosas salvam o movimento que
aumenta seu contingente em todos os Estados da federação. Com pretexto
para mobilizações, repetem que querem a reforma agrária, mas não querem
coisa nenhuma.
Tudo isso é apenas fachadismo, um mito imaginário de justiça agrária
para boi dormir. Esperamos pela alternância do Poder para algum dia
virem à tona os cálculos do que se gastou com a reforma agrária desde a
época FHC, e do quanto se produz nas propriedades desapropriadas. Aí
então vamos calcular o quanto custou ao povo brasileiro o feijão da
reforma agrária, e vamos desmascarar o mito dividindo a produção pelo
dinheiro gasto historicamente. Vai ser uma comédia de erros ou mais uma
conta para o desperdício espetacular dos recursos públicos do nosso
sistema político.
Na genealogia do totalitarismo, uma crise econômica rompe a indiferença
dos indivíduos para com a gestão governamental. Ao mesmo tempo, a
delinquência política aumenta, os bodes expiatórios se sucedem,
reconhecidos picaretas assumem o comando de instituições públicas. Um
misto de besteirol com corrupção deslavada, de negociatas com agitação
trabalhista, de cinismo com estupidez acomete a Nação.
Aparecem soluções salvacionistas. A levedura fascista borbulha com o
esbravejar espumante de aventureiros, falidos, oportunistas,
matusquelas, celerados ideológicos e o diabo-a-quatro. Às vezes, parece
que a insanidade toma conta da Nação, e vai abrindo espaço para o rasgar
sucessivo de leis, de procedimentos e atos legais. Uma onda de calúnia
vai manchando reputações, denegrindo a inteligência, acuando a
intelectualidade do país. A chusma aplaude entusiástica aquilo que em
uma sociedade organizada é vigarice intelectual.
Em certo momento, vem o golpe: fecha-se o parlamento e surge o governo
por decreto. Aparelha-se a polícia para limpar a sociedade dos elementos
indesejáveis. O totalitarismo, assim como o nazismo, o stalinismo e
tampouco o getulismo, não se baseia no poder ditatorial do exército. O
governo ditatorial domina o aparato policial que, subordinado ao
mandatário, age estritamente sob suas ordens. A neutralização militar é
facilmente conquistada nas empresas e agências estatais, ou no lobby
privado – o getulismo subornou os militares entregando cargos públicos
aos tenentes.
Mesmo assim, o descontentamento entre os setores profissionais das
forças armadas torna-se visível em manifestos e circulares. A tensão
conspiratória aumenta. Algumas vozes aparecem pedindo intervenção
militar, argumentando um totalitarismo irreversível. Outras vozes clamam
mais alto pedindo prudência, temerosas de que a intervenção militar
possa gerar uma sucessão de eventos incontroláveis. O passado é
relembrado como um exemplo a ser evitado. Mas, a cada dia, o presente
demonstra que as coisas avançam na direção de tudo piorar, mais do que
no passado. No meio do relativismo, quem vai dar a palavra final é o
povo que espera ser convocado às ruas.
Enquanto isso, a crise avança. No estado policial aparecem as grandes
inversões. Mede-se o mérito pelas denúncias de cidadãos contra os
inimigos do povo ou da nova ordem. Oferecem-se recompensas pela captura
dos dissidentes. Slogans nacionalistas, refrões musicais, gingles do
governo e propagandas acintosas produzem a lavagem cerebral necessária à
legitimidade do regime.
A imprensa livre é atacada consecutivamente — jamais ao mesmo tempo.
Primeiro, um grupo jornalístico é atingido por uma lei criada contra uma
particularidade das empresas de comunicação. Depois, são forjadas
fraudes contra outros, intervenções garantem o silenciamento, enquanto
novos decretos dão legitimidade ao regime para garantir o avanço de
grupos empasteladores que exultam com os novos tempos.
Neste momento, é preciso fechar as vias de informação internacionais. A
Internet é constantemente manipulada para bloquear os sites que
criticam o novo regime. Para não provocar a reação de toda a sociedade, o
fechamento vai se sucedendo em intervalos, enquanto o governo vai
ampliando seu poder de penetração no financiamento de novos portais de
comunicação, de rádios e jornais, que passam a legitimar o avanço
fascista e aumentar o tom de apoio ao governo.
Prisões na calada da noite, espancamentos, confissões forjadas e
irradiadas para todo o país envergonham a serenidade do povo e avacalham
a sobriedade indispensável à ordem republicana. Quando uma pessoa é
invadida em sua intimidade, com propósitos de calúnias e dossiês, logo
um exército de mercenários ocupa o maior número possível de espaços de
discussão para destruir a respeitabilidade de inocentes. Baseando-se na
estratégia de culpar a vítima para jogar na mesma lama violadores
constitucionais e inocentes difamados, uma poderosa máquina de jornais e
revistas paga com dinheiro público põe-se em ação para enxovalhar
pessoas. Desavergonhados riem-se cinicamente do constrangimento de quem
tem uma reputação a defender.
O país vive uma constante mudança: currículos escolares, cursos de
patavina para valdevinos são prestigiados, concursos literários, poemas
exaltando o grande chefe ou o sacrifício dos espoliados pelo antigo
regime são consagrados como peças literárias imortais. Uma simbologia
estabelece o novo status social para a oligarquia emergente: o regime
começa a acumular vaidades.
Entretanto, as coisas começam a dar errado na ordem econômica. Por
razões óbvias, o regime não foi capaz de se manter dentro dos limites da
sanidade fiscal. E então o plano inclinado da ordem moral revela-se com
o mesmo declive na ordem econômica. Os bodes expiatórios começam a dar
explicação para o fracasso. Os delinquentes intelectuais voltam-se para o
passado, com o pretexto de aliviar a crise com motivações remotas. A
história é reescrita para glorificar os dirigentes, o presente e a
verdade universal da linha do partido. Mobilizações de massa, comícios
gigantescos colocam em ação o aparelho estatal e assumem o espetáculo
expiatório da própria decadência do regime em um tom pomposo e solene.
Para salvar as aparências, delegações de economistas saem à cata de
empréstimos externos. Uma engenharia financeira é colocada a serviço da
empulhação dos déficits e da desconfiança na moeda. A inflação começa a
devorar seus filhos mais fracos. Por algum tempo, o regime oscila entre a
estabilidade da ordem e o terror patológico da insurreição. Em ritmo
não de todo controlado, começam a aparecer os primeiros sinais de
descontentamento.
A ordem balança, e a estabilidade fica condicionada à sua capacidade de
dar resposta repressiva aos inimigos pontuais. Em todos os locais, a
despersonalização aumenta e a expressão espontânea do povo some como por
encanto. Todos fazem de conta que não se conhecem, que nunca se viram,
que não são uma sociedade interativa, a menos do espírito conspiratório e
da insurgência latente.
A sorte do regime está selada com as vagas incertas das circunstâncias
internacionais. Ninguém sabe ao certo até quando o festival de
arbitrariedades vai durar. Ninguém sabe ao certo se algum dia o país
será capaz de se curar da insensatez. Mas a verdade é que, no fundo, no
mais recôndito de todos os seres, a esperança não passa de uma vela
acesa ao relento.
De repente, uma oposição fragilizada é cooptada na rede da oligarquia
perene. O regime, sempre obsequioso em criar vínculos e benesses para
arregimentar novos seguidores, sabe que precisa de ‘reformas’ para se
revitalizar. E aquilo que era a oposição multifacetada passa a ser
situação integrada, maldizendo o passado, cortando gastos, atingindo
órgãos perdulários há muito tempo para serem extintos. Refaz-se a moeda,
cortam-se os zeros inflacionários para se manter tudo como está em nome
de uma constituição que, examinada a fundo, não passa de arranjos
vexaminosos.
É o suborno intelectual obtido com recompensas políticas. A perenidade
do regime está em sua capacidade de subornar. Subornam-se com viagens,
com horas-extras, com cargos de comissão, com um segundo emprego, com
vantagens, com retroações de benefícios no tempo, com toda uma
maquinaria inexistente no capitalismo, e que faz do regime de
iniquidades algo muito melhor do que qualquer coisa jamais descoberta na
face da terra para os que participam do reservado círculo do poder.
Cria-se uma linguagem para lastimar a pobreza que o regime solenemente
criou: nela, palavras-chave como elite, aristocracia, capitalismo,
forças ocultas, exploradores, imperialismo ou qualquer outra, formam o
glossário mais frequente no vocabulário político expiatório.
Na folha de pagamento dos governos estaduais, 30% do funcionalismo não
trabalha, dedica-se ao absenteísmo alternado. Os demais, ao
burocratismo feroz. O impedimento é sua marca mais nítida. Departamentos
inteiros dedicados a aplicar regras de proibições, discriminações,
exceções, de senões e mais senões com certidões, atestados e quetais.
Como casas da mãe-joana, as Assembleias Legislativas desfilam famílias
inteiras na folha de pagamento de assessores. Nas prefeituras, em
paralelo com os abnegados de sempre, o burocratismo e os maus tratos com
o patrimônio público chegam às raias de sabotagem de guerra não
declarada. Congresso e Senado são gerenciados por atos secretos. Nas
prefeituras e universidades, são comuns salários duplos, triplos,
quádruplos. Funcionários fantasmas se acumulam do Oiapoque ao Chuí.
A entropia produzida pela delinquência partidária chega a um ponto tal
que as poucas vozes discordantes ficam reduzidas a uma minoria
inexpressiva eleitoralmente — é a inteligência do país relegada a uns
gatos pingados, o fascismo perene, a sociedade do vale-tudo, o regime
que fornece recompensa àqueles a quem a astúcia está associada com as
piores qualidade morais.
O dinheiro dos impostos de quase 130 milhões de brasileiros e de
milhares de empresas é gasto com 5-10 milhões de funcionários públicos e
dependentes, dos quais 1 milhão de privilegiados, e dentre esses, uns
100 mil formam uma oligarquia intocável, inamovível e inimputável. Assim
é o regime fascista. Ele se baseia na lógica do consórcio: para se ter
uma oligarquia, é fundamental que um não se imiscua no butim do outro, e
que haja divisão entre todos. Assim, todos se absolvem e se protegem,
igualando-se na mesma promiscuidade libertina.
Doenças intelectuais invadem a consciência da Nação com o empreguismo,
o coitadismo, o concessionismo, o assistencialismo, o niilismo, e um
sistema político que não se renova, que não se extirpa, sustentado por
um judiciário que negocia sua tabela de preços aos cochichos, e que
avacalha o bem pensar e a própria lógica com certas absolvições.
A contradição entre a lei e a moral provoca o espírito de depredação
do patrimônio público. É o carimbo do brasileiro revoltado. A qualquer
momento, e sob qualquer pretexto, aquilo que foi conseguido a duras
penas para a população vem abaixo com o vandalismo explodindo pela
prática corriqueira da exclusão social e dos privilégios legais.
Comportamento anárquico forjado no dia-a-dia do ressentimento.
Estelionatários, fraudadores, peculatários, corruptos, todos se
apresentam para o coquetel licitatório de onde sairão os contratos
mercantis para a transferência de bens e serviços com descontos por
fora, com dinheiro na cueca, com contas offshore, com maletas de mão em
mão.
Parece que o princípio marxista de ‘a cada um segundo suas
necessidades’ toma conta dos propinistas. Todos cobram uma parte, a
corrupção se espalha como uma praga. As eleições são o sintoma evidente.
Cabos eleitorais se licenciam dos empregos no magistério com
remuneração garantida, migram para os gabinetes de assessorias e cargos
comissionados, e se apresentam como organizadores de comícios, de
panfletagens, de visitas de candidatos.
A máquina pública é posta em ação para a disputa. Vence o mais forte, o
Partido que acumulou mais dinheiro do butim, e mais infraestrutura no
aparelhamento estatal. O povo trabalhador contempla estupefato entre a
sandice dos discursos e a cara-de-pau dos pretendentes. Às vezes, parece
que certos candidatos não têm superego, pois, tomados pela
pusilanimidade e desfaçatez do momento, lhes falta o recato inerente à
vida social. Seus discursos são torpezas pronunciadas no maior
descaramento.
Quando afinal os desmandos atingem o ápice, a Nação está empobrecida,
décadas foram perdidas, a produtividade em baixa, os serviços públicos
aviltados, e parte do povo moralmente depravada. Nova liderança assume o
poder para acabar com os desmandos. E o que se consegue auditar do
vendaval de destruição do patrimônio da Nação é muito pouco, tímidas
reformas ficaram no meio do caminho.
Mesmo assim, uma nova época é celebrada, novas esperanças ressurgem,
um novo otimismo toma conta do espírito da Nação, que já traz embutido o
germe de sua destruição pela fraqueza intelectual de seus epígonos ou
pela manutenção do
ancien régime, sob as cinzas do novo tempo.
O espírito de conciliação faz o estrago previsto ao manter, sob o
manto da legalidade, a proteção dos estelionatários. Em nome da paz
social, estende-se uma anistia aos velhos prevaricadores, em geral, com
aposentadorias integrais — forma de suborno preferida no século XX.
Sob as mudanças introduzidas, tudo melhora desde que se conservem as
raízes do atraso, que brotam novamente com o mesmo romantismo da
igualdade, da moralidade, da virtude, agora com novos protagonistas, com
uma nova geração. Com a tomada do poder, termina o novo ciclo, tudo se
dissolve, e se chega à infeliz contabilidade de que o engodo é o mesmo,
só mudaram as moscas. Do ponto de vista moral, não cruzamos o século
XVIII.
Lampedusamente, tudo muda, tudo se transforma, mas não a ponto de se
derrubar a oligarquia perene e se descobrir o virtuoso caminho da grande
Nação que nos foi reservada pela natureza.
FIM — 19/9/2010