O ex-presidente se pronuncia sobre a política externa do presidente Bolsonaro, como também já o tinha feito, alguns dias antes o embaixador Rubens Ricupero (link abaixo, para quem não o leu). Realmente, do ponto de vista deste modesto observador (há 40 anos) da política externa brasileira, pode-se dizer, como para o lulopetismo diplomático, que nunca antes na história tinham ocorrido certas coisas na diplomacia brasileira. Bem, sempre é tempo de novos experimentos.
Resta apenas saber, como no velho mote, se as coisas novas são boas, e se as boas (se existem) são novas...
Paulo Roberto de Almeida
A vez da
Venezuela
Insistirá
o governo do Brasil no descaminho de subordinar a política externa a uma
ideologia?
*Fernando Henrique Cardoso
O Estado de S.Paulo, 03 de março de 2019 | 03h00
O Brasil está sendo confrontado com sua História. Quem
leu o texto recente de Rubens Ricupero sobre a política externa do governoBolsonaro perceberá os descaminhos pelos quais poderemos enveredar. Diante dos
ensaios de ruptura com as tradições de nossa política externa, empalidecem as
diferenças de matiz político-ideológico observadas desde José Sarney até Michel
Temer. Basta ler o livro Um Diplomata a Serviço do Estado, do embaixador
Rubens Barbosa, para ver que se manteve certo consenso básico sobre o interesse
nacional e sobre o modo de adequá-lo a mudanças nos ventos do mundo.
Historicamente a condução da nossa política externa
obedeceu a linhas de continuidade, com raras exceções em períodos não
democráticos. É ao barão do Rio Branco que se atribui a noção de que deveríamos
manter boas relações com os Estados Unidos para fazer o que nos convém na área
que nos toca mais de perto, a América do Sul. Na guerra contra o nazismo até
bases estrangeiras foram autorizadas a se instalar no Brasil. Mas foi um
momento histórico excepcional a requerer que agíssemos assim. Em regra, nunca
houve adesões incondicionais: primaram nossos interesses soberanos. Mesmo na
guerra fria, quando o bloco capitalista se opunha ao bloco comunista, buscamos
manter certa autonomia.
Com a globalização muita coisa mudou no ambiente
político e, sobretudo, na interconexão econômica dos países. A diplomacia
brasileira, porém, não deixou de se orientar pelo interesse nacional. Em artigo
recente publicado neste espaço disse que o atual governo abusa da
inconsistência em certas áreas. Para onde nos pode levar esse “abuso da
inconsistência” na política externa?
Entende-se que haja incertezas na atualidade, advindas
da nova página que se está abrindo nas relações entre os Estados Unidos e a
China. A aceitação recíproca, obtida graças às reformas de Deng Xiaoping, às
teorias sobre o “socialismo harmonioso” e à ascensão pacífica da China, começa
a mudar. Os chineses queriam evitar a “armadilha de Tucídides”: a emergência de
nova potência levaria a guerras com o antigo hegemon. Assim, o país abriu
a sua economia para capitais internacionais o usarem como plataforma de
exportação e se tornou o principal financiador do déficit comercial dos Estados
Unidos, comprando títulos do Tesouro americano. Essa estratégia assegurou tempo
e gerou os recursos necessários para que a China ampliasse o mercado interno e
investisse na formação de empresas globais capazes de disputar a liderança
tecnológica com suas rivais americanas.
Estamos chegando a uma profunda revisão dessas
políticas, adotadas quando a coincidência de interesses prevaleceu sobre a
rivalidade, em ambas as partes. A luta tecnológica pelo predomínio no mundo
globalizado pode produzir surpresas desagradáveis. Por trás da retórica
arrogante e aparentemente desconexa de Trump existe uma luta real pelo
predomínio global. A chamada “guerra comercial” é um sintoma dessa disputa nas
tecnologias determinantes do poder futuro, na economia e no campo da segurança.
As tensões no Pacífico, do sul da costa chinesa ao litoral do Vietnã, são a
face mais visível da dimensão militar do conflito entre as duas potências. O
antagonismo ainda é mais agudo no ciberespaço, onde batalhas são travadas
diariamente.
Nesse quadro, que interesse poderia ter o Brasil em
assumir a priori um dos lados da disputa? Os que sustentam que
devemos alinhar-nos em tudo à Casa Branca desconhecem que a sociedade americana
é democrática e seu atual ocupante não expressa necessariamente um consenso
duradouro. Vamos transferir a embaixada em Israel de Tel-Aviv, contrariando
nossa histórica pregação em favor de dois Estados naquela região do Oriente
Médio?
E que sentido faz criticar a própria ONU como suspeita
de “globalismo”, do qual ela seria o instrumento? A única consequência prática
é macular a imagem do Brasil em áreas tão sensíveis e importantes quanto o são
os direitos humanos, o meio ambiente e a imigração. O dano à imagem do País,
uma vez cristalizado, terá consequências contra os nossos interesses, como já
se deram conta os setores mais lúcidos do empresariado brasileiro.
Insistirá o governo no descaminho de subordinar a
política externa a uma ideologia, e não às realidades? Em nenhum outro lugar as
consequências dessa reviravolta seriam mais nocivas que na nossa vizinhança. A
crise da Venezuela se aprofunda. O caso remete à “política do barão”, pois mexe
com nossos interesses mais imediatos, na América do Sul. É de louvar a
prudência dos militares, mas é de temer a vocalização de alguns líderes
políticos sobre nossa ação nesse drama. Sejamos claros: o governo Maduro é
antidemocrático e insustentável. Não é de hoje que tenho me manifestado
publicamente dessa maneira, em reuniões internacionais, acadêmicas e políticas.
Contudo falar em permitir bases estrangeiras em território nacional ou em abrir
caminho para aventuras guerreiras nas nossas vizinhanças não tem nada que ver
com os interesses brasileiros de longo prazo. E em política externa é disso que
se trata.
Apoiar a oposição venezuelana é uma coisa. Imaginar
que se deva fazer o que foi feito na Líbia, pensando que forças externas podem
reconstruir a democracia no país, é ignorar os fatos. Os desatinos verbais têm
sido de tal ordem que resta o consolo de ver os militares recordarem que temos
uma tradição de altanaria e soberania a respeitar, soberania nossa e dos demais
países.
Bom mesmo seria ver o Itamaraty voltar a ser coerente
com sua tradição: ressaltar e criticar o autoritarismo predominante na
Venezuela, apoiar a oposição, dar acolhida às vítimas do arbítrio do atual
governo e manter acesa a chama democrática. Abrir espaço para que terceiros
países, mormente distantes da América do Sul, queiram resolver o drama político
pela força não nos convém e fere nossas melhores tradições de atuação
internacional.
*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA