Resquícios de um quilombo de resistência
intelectual
Considero os trabalhos reunidos neste volume, que de outra forma
poderiam ser chamados de “crônicas do limbo,” como remanescentes de alguns dos
meus quilombos de resistência intelectual, quando eu estava reduzido a um
ostracismo funcional, ou seja, confinado a uma espécie de limbo institucional
por razões que muitos sabem quais foram, mas que talvez não seja o caso de
discutir aqui. Em todo caso, basta informar que, convidado no início de 2003 a
assumir a coordenação do mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco, fui
“desconvidado” logo em seguida, por motivos obscuros mas que podem ser
deduzidos mediante uma simples consulta à lista de minha produção acumulada
desde muitos anos. O fato é que, desde aquela data, e pelos 13 anos seguintes,
permaneci sem qualquer função na Secretaria de Estado, uma travessia do deserto
que apenas foi interrompida com o impeachment de certa senhora. Tudo
coincidência, claro.
Enterrado um regime, iniciado um outro, retomei meus trabalhos,
não exatamente na Secretaria de Estado, mas numa função de corte acadêmico, que
por acaso coincide com meus interesses intelectuais. Durante aquele longo
período – do início de 2003 a meados de 2016 –, frequentei, ou criei, vários
tipos de “quilombos”, que eu chamei de “resistência intelectual”, em geral sob
a forma de blogs, que eu mantinha e alimentava com objetivos variados: resenhas
de livros, transcrição de escritos alheios, usos tópicos diversos (por ocasião
de eleições presidenciais, por exemplo), e mais frequentemente para finalidades
pessoais (como o DiplomataZ, entre vários
outros), ou blogs de caráter geral, dos quais o mais constante, e até hoje em
uso, é o Diplomatizzando.
Num desses quilombos, ou fora deles, a verdade é que eu estava no
limbo, o que até pode parecer anacrônico, uma vez que a Cúria do Vaticano
parece ter extinguido esse “território” muitos anos atrás. Enfim, sempre podem
subsistir limbos virtuais. O limbo, segundo os dicionários, representa, na
teologia cristã, uma região próxima do inferno, um refúgio para as almas dos
homens bons, que viveram antes da chegada de Cristo, e para as almas das
crianças falecidas não batizadas. Num sentido civil, pode aproximar-se de uma
espécie de prisão, ou confinamento, o que deve ter sido o meu caso. No sentido
mais comum do termo, seria um lugar ou a condição de negligência ou de esquecimento aos quais
seriam relegadas coisas ou pessoas não desejadas. Estas são, em todo caso, as
definições que retiro do Webster's New
Universal Unabridged Dictionary (2nd edition; New York: Simon and Schuster,
1979), p. 1.049. Os muito curiosos por outras significações, ou por explicações
mais detalhadas, podem procurar o verbete na Wikipédia.
Retomemos o meu caso. Consciente do ostracismo que me foi imposto,
por decisões provavelmente políticas (ainda que não declaradas), continuei a
fazer o que sempre fiz, no decorrer de toda uma vida dedicada a uma atividade
fundamental: ler, refletir, escrever, eventualmente divulgar meus escritos
pelos meios disponíveis. Estes meios não eram muitos; ao início, na verdade,
nenhum, uma vez que eu só dispunha, em 2003, de meu próprio site pessoal (www.pralmeida.org), que se
destinava unicamente a divulgar alguns trabalhos acadêmicos, em temas sobre os
quais eu era frequentemente consultado por estudantes, jornalistas ou colegas
acadêmicos: integração regional, política externa brasileira, relações internacionais
de modo geral. O site pessoal era um instrumento passivo, pois nunca fiz dele
um instrumento de comunicação, ou plataforma para qualquer outro objetivo,
senão a compilação de trabalhos de natureza intelectual, que refletiam essa minha
produção de tipo acadêmico. A partir de certo momento, para facilitar o
trabalho de carregamento e disponibilização de trabalhos mais curtos, passei a
utilizar a ferramenta dos blogs, o único free
lunch real, conhecido sob o capitalismo.
Por inépcia pessoal, incompetência técnica notória, tive vários
deles, sucessivos, até conseguir estabilizar no Diplomatizzando, sem que todos os demais tivessem sido desativados;
foram apenas sendo deixados de lado, para não complicar muito a vida. O fato é
que comecei a postar um volume crescente de materiais suscetíveis de atrair a
atenção de um número maior de leitores, e até de “editores” de ferramentas
semelhantes ou até de instituições de ensino e pesquisa espalhadas pelo Brasil.
De várias recebi convites para colaborar, o que procurei atender na medida de
minhas possibilidades e, sobretudo, interesse no tipo de veículo, seu perfil
social e nicho de interesse intelectual.
Um deles foi a revista eletrônica Via Política (Porto Alegre), animada
pelos jornalistas gaúchos Omar Luiz de Barros Filho e Sylvia Bojunga, que me
localizaram em algum momento do início de 2006 e formularam o convite para que
eu colaborasse. Refleti por algum tempo, sobre se deveria aceitar ou não, e
resolvi colaborar, tanto porque havia sido contatado quase simultaneamente por
dois outros veículos online de comunicação, e também porque, desde 2001, já
contribuía mensalmente com a revista digital Espaço Acadêmico, um bem sucedido empreendimento editorial mantido
em condições quase artesanais pelo professor Antonio Ozaí, da Universidade de
Maringá, no Paraná. Depois de ter inaugurado minhas colaborações mensais nessa
revista por um texto – “Dez novas regras de diplomacia” – que deve ter sido o
mais acessado de toda a minha produção acadêmica (na verdade diplomática),
continuei durante dez anos com meus artigos provocadores (ao ambiente de
gramscismo disseminado), até que o corpo editorial deve ter se cansado de meus
ataques à nossa miséria acadêmica e resolveram dispensar-me dos colaboradores
regulares. Ufa! Poupou-me uma obrigação adicional.
Em Via Política, com
total liberdade de colaboração, cheguei até a dispor de uma coluna dedicada e
especial, que reproduzia o título de um dos meus blogs na ocasião – a
“Diplomatizando” – e mandava minhas
contribuições a intervalos regulares, embora sem uma periodicidade fixa. No
total, salvo engano de registro, contei 87 publicações, mas pelo menos duas
delas foram longos artigos divididos em postagens diferidas ao longo de algumas
semanas, como foi o caso de um ensaio sobre o Brics e uma análise das parvoíces
do Fórum “Surreal” Mundial (que parecem ter desaparecido da paisagem, mais por
falta de dinheiro oficial do que de besteirol à disposição dos incautos).
Nesta minha
seleção ilustrativa, escolhi três dezenas de trabalhos, reproduzidos neste
volume de compilação (nem sempre fiel aos textos efetivamente publicados, pois
que buscados nas minhas pastas de “originais”, organizadas ano a ano. Creio que
podem ser considerados os trabalhos mais representativos, e ainda válidos, de
minhas reflexões e de minha produção intelectual nesses anos em que me
encontrava afastado de qualquer atividade funcional na Secretaria de Estado ou
de postos no exterior. Depois da decisão de efetuar o “renascimento” desta
colaboração com um blog infelizmente já desaparecido, comecei a pensar em como intitular
esta nova série de trabalhos atinentes às minhas pesquisas, reflexões e
escritos. Diferentes opções estavam à disposição deste autor: crônicas do
deserto, do cerrado, do agreste, ou qualquer outro conceito denotando uma
situação áspera, difícil, de isolamento ou de dificuldade, enfim, algo conforme
às minhas condições naquele período.
Resolvi então adotar o que era mais característico quanto ao autor
e sua situação: um “contrarianista” – ou seja, alguém não absolutamente
contrário a tudo o que vê, ou encontra, mas praticando o que eu sempre chamei
de “ceticismo sadio” – ,“no limbo”, pois esta era, efetivamente, a minha
situação naquele momento. Esta foi, pois, a decisão de deixar registrados trabalhos
de uma fase já passada, mas que ainda pode voltar a ocorrer novamente, pois
nunca se sabe que tipo de complicações esses contrarianistas profissionais
podem criar para si mesmos, em termos de projetos de vida, tanto pelo lado
profissional, como pelo lado acadêmico ou pessoal. Acredito que as pessoas são
responsáveis, em grande medida, pelo seu próprio destino, na medida em que
fazem escolhas, adotam posturas, assumem atitudes que as colocam em maior ou
menor conformidade com o seu meio social, com o seu ambiente profissional, com
o seu universo de relacionamentos e interações. Sou o resultado de minhas
próprias escolhas, ainda que outros possam ter contribuído, direta ou
indiretamente, para minha condição, em determinados momentos de minha carreira
profissional ou itinerário acadêmico.
Não pretendo lamentar nada, ainda que exercícios de autorreflexão
e revisões críticas de trajetórias passadas e presentes sejam sempre
desejáveis, na perspectiva de corrigir o que está errado e impulsionar caminhos
mais atrativos, ou interessantes. Ao refletir sobre esse tipo de situação, em
dezembro de 2006, ao confirmar-se o limbo no qual eu andava metido, escrevi num
dos textos pessoais: “Vou estabelecer, neste final de ano [2006], um plano de
trabalho para enfrentar os próximos meses, talvez anos, de travessia do meu
deserto particular”. Não sabia, naquela momento, que o limbo teria a exata
duração de dez anos, durante os quais preferi ficar com minha consciência e em
defesa de certos princípios e valores, do que aderir a um governo que sempre
considerei um desastre no plano econômico, político, institucional, e até ético
e moral. Acho que eu não estava errado a este respeito, como constatamos pelos
incontáveis processos, delações, investigações sendo feitas e casos sendo
julgados atualmente no Judiciário.
O Brasil atual, de certo modo, me dá vergonha, pelo aspecto de
corrupção impune a que se assiste. Mas, por outro lado, existem pessoas e
instituições lutando para que tal vergonha seja corrigida, punida, senão
eliminada, pelo menos limitada. É isso que eu sempre procurei fazer através de meus
escritos e publicações. Eles não são fortuitos, ou puramente circunstanciais.
Eles traduzem um compromisso com certos princípios de vida, com certos valores
que julgo importantes, para minha geração e as que se seguirão nas décadas
seguintes, agora representadas por meus filhos e netos.
A palavra limbo talvez não é mais adequada à minha situação atual.
Ela fica, em todo caso, como conceito chave destas minhas crônicas de um
período especial, hoje felizmente superado, mas que talvez possa voltar pelo lado
de um contrarianismo sempre presente em meus textos. Nesse caso, eu talvez
tenha de escolher algum substantivo mais apropriado. No momento este é o que me
convém para expressar estas colaborações a um dos muitos veículos com os quais
colaborei ao longo dos anos.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
26 de dezembro de 2017
Revisto:
Brasília, 26 de dezembro de 2019