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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 15 de março de 2020

Brasil perdeu Nobel porque o cientista não tirou certificado de reservista - Bruno Vaiano

Brasil perdeu Nobel porque o cientista não tirou certificado de reservista

Peter Medawar nasceu em Petrópolis e lá viveu até os 14 — quando foi estudar na Inglaterra e renunciou à cidadania brasileira para não servir o exército

Em 2015, a SUPER entrevistou o evolucionista Richard Dawkins — e ele comentou de passagem que um de seus ídolos, o prêmio Nobel Peter Medawar, nasceu no Brasil. Não só nasceu como viveu e estudou em Petrópolis, no Rio de Janeiro, até os 14 anos.
Eu achei essa história muito estranha. Afinal, já virou clichê dizer que o Brasil não tem Nobel. Isso fere nosso orgulho. A Argentina tem Nobel. O Peru tem Nobel. A Colômbia tem Nobel. O Brasil não tem Nobel do mesmo jeito que a Inglaterra não ganha uma Copa desde 1966: padrão Mick Jagger de de zica e pé-frio. É um desses fatos inescapáveis da vida.
Uma pesquisa rápida revela o essencial sobre o prodígio mais desconhecido da nação: Medawar era filho de um libanês e uma inglesa. Sua família veio para cá quando o patriarca, sócio de uma empresa inglesa que fabricava próteses e instrumentos de dentista, visitou a capital fluminense para instalar uma filial na rua do Ouvidor. O casal gostou do que viu e ficou por aqui mesmo: eles tiveram quatro filhos, morreram e foram enterrados no Brasil.
Medawar pai não era bobo: apesar de gostar do país tropical, sabia que ter um passaporte inglês não faz mal a ninguém. Registrou suas quatro crias tanto aqui como na terra da rainha Elizabeth. Com 14 anos, o Peter adolescente aproveitou sua dupla cidadania para fazer o colegial na Europa — e como já era um gênio desde cedo, emendou uma graduação em zoologia em Oxford. Coisa fina.
O que leva a outra pergunta: naquela época, não prestar serviço militar era mesmo suficiente para perder a cidadania? Ou Medawar simplesmente optou por não ser mais brasileiro para evitar a dor de cabeça?
Em uma reportagem do Fantástico de 1998 (que você pode ver no YouTube), um advogado afirma que Medawar morreu tão brasileiro quanto nasceu: ficar sem certificado de reservista não é suficiente para ser jogado na sarjeta pela nação.
Folha também fez uma matéria sobre o assunto em 1996, em que há uma breve análise de um professor de Direito da USP. A conclusão dele foi um pouco diferente: de fato, nenhuma das constituições brasileiras  inclua aí as de 1934 e 1937, que vigoravam quando Medawar estava na faculdade — afirma explicitamente que quem não presta serviço militar fica sem cidadania. Na época, porém, “havia essa interpretação”.
O texto da Folha não dá mais detalhes, mas não é difícil de imaginar o porquê de uma medida tão radical: 1937 marca o início do Estado Novo, a ditadura comandada por Getúlio Vargas. Nessa época, tentar escapar do exército na malandragem certamente não era o melhor jeito de ficar bem na fita com a justiça.
Gerdal Medawar, um primo do biólogo que passou a vida no Brasil, afirma que ele, na verdade, renunciou voluntariamente à cidadania brasileira. O pesquisador simplesmente não quis ter a dor de cabeça de interromper a graduação em Oxford para fazer uma visita arriscada ao quartel — que poderia lhe render um ano longe dos estudos. Como ele já tinha a cidadania britânica, garantida por seus pais, não foi tão difícil assim tomar a decisão.   
Os Medawar eram razoavelmente bem relacionados: o padrinho do futuro Nobel era ninguém menos que Salgado Filho, na época ministro do Trabalho. O político pediu pessoalmente a Gaspar Dutra, então ministro da Guerra, que liberasse o afilhado do serviço militar. E ouviu um “não”. Dureza.
Conclusão? Com ou sem cidadania, é pouco provável que Medawar tivesse entrado para a história como um Nobel brasileiro. Ele abraçou seu lado inglês sem olhar para trás, e foi na Inglaterra que ele fez todo seu trabalho.
Por último, para você não ir embora curioso: Medawar ganhou o prêmio por suas pesquisas sobre o sistema imunológico — que permitiram os primeiros transplantes de órgãos e tecidos sem rejeição. 

Guerra do Paraguai: 150 anos do seu término - Rubens Ricupero

A tradição diplomática brasileira de não intervenção nos assuntos  internos de outros países— interrompida agora pela canhestra diplomacia ideológica olavo-bolsonarista — começou com o final da desgraçada guerra que o Paraguai do ditador Solano Lopez deslanchou contra o Brasil, isso por intervenções nossas na política interna do Uruguai e outros problemas de fronteiras. A regra da não-intervenção foi seguida escrupulosamente na longa trajetória da diplomacia brasileira desde então – embora parcialmente desrespeitada sob o regime lulo-petista, se envolveu em diversos episódios eleitorais na região –, até que o inepto presidente atual e seu chanceler acidental deslanchassem ataques inacreditáveis ao então candidato argentino, depois eleito presidente. Poucas vezes em nossa história, tivemos exemplos tão baixos de incompetência diplomática.
Paulo Roberto de Almeida
15/03/2020

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/trauma-da-guerra-do-paraguai-iniciou-aversao-brasileira-a-conflitos.shtml

Trauma da Guerra do Paraguai iniciou aversão brasileira a conflitos

Episódio encerrado há 150 anos inspirou tradição diplomática de paz e não intervenção, diz Rubens Ricupero


Rubens RicuperoFolha de S. Paulo, 13 de março de 2020
[resumo] Último conflito armado do Brasil com países da América Latina, a Guerra do Paraguai chegava ao fim há 150 anos. Episódio ainda controverso, a batalha encerrou o período de choques na bacia da Prata, iniciou a derrocada da monarquia e inspirou uma tradição diplomática de paz e não intervenção.
No dia 1º de março, o Brasil completou 150 anos ininterruptos de paz com seus dez vizinhos. Nenhum outro país com tão vasta vizinhança ostenta essa tradição pacífica.
Em 1º de março de 1870, terminava, com a morte do ditador paraguaio Francisco Solano López, a Guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Em Assunção, manifestações oficiais relembraram a efeméride; no Brasil, passou em brancas nuvens.
Detalhe da pintura "A Batalha do Avaí" (1877), de Pedro Américo
Repetiu-se o que ocorrera no centenário do fim do conflito (1970). Nos cinco anos anteriores à data, os jornais guaranis recordaram dia a dia o que acontecera um século antes. O Brasil guardou silêncio, fiel à lição do barão do Rio Branco de que há vitórias que não se devem comemorar.
Somente no aniversário do fim do conflito, o ministro do Exército emitiu nota exemplar, afirmando que o Brasil tinha preferido esperar para comemorar cem anos de paz a um século de guerra. Era, e é, a melhor maneira de celebrar a maior tragédia da história sul-americana.
Passado tanto tempo, a Guerra do Paraguai continua a suscitar acusações e dúvidas que merecem esforço de elucidação. A quem cabe, por exemplo, a culpa pelo conflito?
As hostilidades começaram em 11 de novembro de 1864, quando, sem declaração de guerra, os paraguaios capturaram o vapor brasileiro que conduzia o presidente (espécie de governador) designado para Mato Grosso. Em fins de dezembro, duas colunas invadiram o território mato-grossense.
López protestara em agosto de 1864 contra a intenção brasileira de intervir na guerra civil uruguaia e advertira o Brasil das consequências de um ataque a seus aliados do Partido Blanco. Não houve, no entanto, nenhuma ameaça ou agressão direta contra o Paraguai da parte da Corte do Rio de Janeiro.
Não existia, assim, justificativa para o Paraguai invadir o Mato Grosso, em seguida o Rio Grande do Sul e ocupar Uruguaiana. Aliás, a fim de atacar o território gaúcho, López violou o território argentino, possibilitando a aliança com o Brasil que não teria ocorrido sem essa provocação.
Como se explica que um país cuja população em 1860 se estimava em cerca de 400 mil habitantes desafiasse a Argentina, com 1,7 milhão, o Brasil, com 9 milhões, e o Uruguai, com 250 mil, num total de menos de meio milhão contra 11 milhões?
A explicação emerge da comparação dos efetivos dos exércitos prontos a entrar em combate, em que o Paraguai levava vantagem de quase três contra um (77 mil homens contra 18.300 do Brasil, 6 mil da Argentina e 3.100 do Uruguai, totalizando 27.400 aliados).
Daí a estratégia de López de tentar, por meio do efeito surpresa de uma ofensiva fulminante, vitória que lhe permitisse resolver em favor de seu país as questões fronteiriças e de liberdade de navegação pendentes com o Brasil. Fracassada a guerra-relâmpago com a derrota guarani na batalha naval do Riachuelo e a capitulação das forças de ocupação de Uruguaiana (setembro de 1865), só então a luta se deslocou para o território paraguaio, invadido pelo Passo da Pátria (abril de 1866).
Reprodução de foto de Francisco Solano López
Reprodução de foto de Francisco Solano López - Ministerio de Defensa/AFP
Seguiu-se vagaroso avanço aliado até que, já sob o comando do Duque de Caxias, a guerra entrou na decisiva fase das batalhas da dezembrada (dezembro de 1868), culminando na ocupação de Assunção (1/1/1869).
Doente, Caxias retornou ao Rio, convencido de que o conflito acabara. Temendo que o perigo só cessaria com o fim de López, dom Pedro 2º resolveu continuar a luta, numa decisão controvertida, análoga à tomada pelos Aliados contra Hitler.
A guerra se prolongaria ainda por 15 meses, durante os quais se concentrou boa parte do pior em matéria de devastação, atrocidades, morte em combate de crianças e da maioria da população masculina paraguaia. Os números dessa época são incertos, mas o Paraguai pode ter perdido 250 mil vidas, mais da metade de seus habitantes.
Dos 140 mil brasileiros que participaram da guerra, morreram cerca de 50 mil, mais de um terço, aos quais se somam 18 mil dos 30 mil argentinos e 5 mil dos 5.500 uruguaios. Mais de dois terços pereceram não em combate, mas em consequência de doenças, fome, exaustão e migrações forçadas da população civil obrigada a seguir o ditador.
O esforço de guerra custou ao Brasil o equivalente a 11 anos do Orçamento anual, gerando déficit contínuo nas duas décadas seguintes. Foi o que inspirou o célebre desabafo do barão de Cotegipe: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século”.
Iniciada quando findava a Guerra de Secessão americana, a do Paraguai se assemelha a ela na duração e ferocidade da luta, antecipando o estilo de conflito total do futuro. Guardadas as proporções, os danos em vidas e destruição foram também devastadores.
Para o Império brasileiro, ela encerra o ciclo de choques militares com os vizinhos da bacia do Prata, iniciado logo depois da Independência com a Guerra da Cisplatina (1825 a 1828) e prosseguido com as intervenções no Uruguai e na Argentina após 1850. Sequência dos atritos coloniais entre Espanha e Portugal, essa fase instável termina com a consolidação dos Estados nacionais e de suas fronteiras nas décadas finais do século 19.
Joaquim Nabuco julgou que a Guerra do Paraguai teve importância tão decisiva para os destinos dos países do Cone Sul que pode ser considerada o “divisor de águas” da história dessas nações. Ela teria marcado o “apogeu do Império, mas dela também procedem as causas principais da decadência e da queda da dinastia”.
O triunfo da monarquia representou o brilho final de uma estrela que se apagava. Por volta de 1880, a política exterior do Brasil atingira todos seus objetivos: afastara do poder seus inimigos em Assunção, Montevidéu, Buenos Aires; evitara a eventual reconstituição de uma união dos demais contra o Império; obtivera a livre navegação dos rios e as fronteiras que desejava com uruguaios e paraguaios.
Depois de 30 anos de variados conflitos, era como se a monarquia, exausta, tivesse perdido a energia para reformar-se a si própria, modernizando a estrutura social do país, debilitada pela escravidão.
Nessa mesma época, a Argentina e, em menor grau, o Uruguai logravam pôr fim à longa instabilidade da fase formativa, atraíam capitais ingleses e imigrantes europeus que as transformariam em nações mais modernas e prósperas que o Brasil.
A Guerra do Paraguai é tema histórico que se presta a controvérsias e geração de mitos a serviço de interesses ideológicos e políticos. O revisionismo argentino inventou a tese fantástica de que a causa de tudo seria a influência da Inglaterra imperialista. Entre os absurdos da fábula, omite-se que, no começo do conflito, o Brasil estava de relações rompidas com Londres desde a Questão Christie (1862 a 1865).
A tese deu origem no Brasil a panfletos como o que denunciou o suposto genocídio que teria provocado 1 milhão de vítimas num país cuja população não atingia nem a metade desse número. A pior distorção, obra tardia de partido político paraguaio, consistiu na metamorfose do tirano sanguinário que foi Solano López num estadista sacrificado no altar da pátria.
Quem desejar pisar em terreno firme nessas questões, dispõe de reconstituição primorosa da terrível tragédia, “Maldita Guerra”, de Francisco Doratioto, maior conhecedor brasileiro de história paraguaia. Livro até agora definitivo pela solidez da análise dos documentos, dele extraí dados e análises deste artigo.
A Guerra do Paraguai e as intervenções no Prata nos legaram herança amarga de perdas humanas e atraso econômico e social. Data da guerra encerrada um século e meio atrás a “questão militar”, a tendência do Exército de intervir na política, um dos fatores da queda da monarquia e fenômeno perturbador da democracia que se prolonga até nossos dias.
Os brasileiros como Rio Branco e Nabuco, que viveram na juventude as angústias da luta contra o Paraguai, adquiriram horror à guerra e às intervenções em países estrangeiros. Passaram a cultivar diplomacia avessa a julgar publicamente os demais, escrupulosa na observância do princípio de não se imiscuir na política interna dos vizinhos.
O esquecimento dessas lições de nossa história abriu caminho à volta da prática lamentável de condicionar a amizade com os vizinhos a distorções ideológicas. Não surpreende que isso tenha provocado perigosa deterioração do relacionamento com a Venezuela, a ponto de gerar tensão militar na fronteira e grave retrocesso na relação com a Argentina, nosso principal vizinho.
A República inseriu em sua Constituição a proibição da guerra de conquista. Posto à prova na crise do Acre, quando o país chegou perto do conflito, o compromisso com a paz foi mantido graças ao gênio diplomático de Rio Branco, que não se cansava de repetir que “o recurso à guerra é sempre desgraçado”. Mais tarde, nos anos 1970, o Tratado de Itaipu deu impulso ao projeto bilateral para ajudar o Paraguai no seu desenvolvimento econômico-social.
Finalmente, o ex-presidente José Sarney inaugurou com o ex-presidente argentino Raul Alfonsín processo de edificação de confiança mútua que culminaria em duas das maiores conquistas da política externa: o Mercosul e o abandono dos projetos secretos para construir a bomba atômica.
Superando dois séculos de confrontos, essas duas realizações complementares transformaram a bacia do Prata de antigo cenário de guerras em espaço de integração entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Nosso dever é não permitir que desvarios ideológicos ponham em risco a tradição de paz com os vizinhos, maior título de glória do povo brasileiro.

Rubens Ricupero, foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (Governo Itamar Franco) e embaixador em Genebra, Washington e Roma.

sábado, 14 de março de 2020

Simon Schwartzman resenha Mussolini, de Antonio Scurati (OESP)

Mussolini

By Simon on Mar 13, 2020 06:57 am
(Publicado no O Estado de São Paulo, 13/03/2020)
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Para entender os movimentos de extrema direita que ocorrem hoje, a leitura de “M – O Filho do Século” de Antonio Scurati, recém-publicado pela Editora Intrínseca, que conta a história do surgimento do fascismo na Itália, é leitura obrigatória. É um romance documental, que faz lembrar o “Romance de Perón” de Tomás Eloy Martinez, publicado em 1998 pela Companhia das Letras, que merece uma reedição.
O fascismo surge das cinzas ainda quentes da Primeira Guerra Mundial, com seus onze milhões de mortos. Vitoriosa, mas economicamente arrasada, a Itália se divide entre um governo liberal, que tenta reconstituir a economia, e um forte movimento socialista que ganha cada vez mais força no campo e nas cidades.  Todos anseiam pela paz, mas Mussolini, que havia começado sua carreira como editor do jornal do Partido Socialista, Avanti!, e sido expulso do partido por defender a entrada na Itália na Guerra, decide abraçar a morte, a violência e o nacionalismo como formas de ação política e busca do poder. 
Seus principais parceiros, no início, são os remanescentes de uma tropa de elite desmobilizada, os Arditi, treinados para assassinar os inimigos, que depois da guerra se sentem frustrados e marginalizados. Scurati os descreve como passando o tempo embriagados, nos bordéis, armados com punhais e envolvidos em atividades criminosas. São eles que Mussolini conquista com seu novo jornal, O Povo da Itália, cujo tema principal é o ataque aos que se opuseram à participação italiana da guerra,  e os organiza com a criação em 1919 do Fasci Italiani di Combattimento, os Grupos Italianos de Combate, simbolizados por uma caveira, que dão início o movimento e do Partido Fascista.
No início, Mussolini e suas milícias paramilitares são olhados com desprezo tanto pelos liberais, que controlam o governo nacional, como pelos socialistas, que cada vez mais controlam os governos locais e ganham espaço no Parlamento. A economia do país continua estagnada, a Itália não consegue participar da partilha do mundo colonial feita pelas potências europeias e os Estados Unidos, e o exemplo da revolução russa inspira entre os socialistas a ideia de que a hora da revolução italiana também está próxima. Mussolini, no início, ainda tentou manter um discurso a favor dos operários e camponeses, e compartilhava, com os setores mais radicais do partido socialista, a ideia de que o regime político liberal não servia para nada, os políticos eram, na melhor hipótese, incapazes, e na pior, corruptos, e só uma revolução poderia resolver os problemas do país. Ambos acreditavam, com Marx e os anarquistas, que a violência era a parteira da história.
Com o país paralisado por greves e ocupações sucessivas de terras e fábricas, os fascistas decidem se colocar como defensores da ordem e, financiados por fazendeiros e empresários, partem para atacar com violência e desmantelar os movimentos e organizações de esquerda, ao mesmo tempo em que, pelo jornal, Mussolini sobe o tom na defesa da violência e do nacionalismo como os únicos caminhos para fazer a Itália voltar aos tempos gloriosos do Império de dois mil anos atrás. Na primeira eleição que em que participam, em 1919, os socialistas e o Partido do Povo Italiano, católico, conquistam a maioria, e os fascistas ficam totalmente marginalizados. Nos dois anos seguintes, que ficaram conhecidos como o “Biênio Vermelho”, a crise econômica se aprofunda, as greves e ocupações de fábricas e fazendas se multiplicam o desemprego continua e os fascistas intensificam sua violência, com assassinatos de líderes populares e destruição das sedes das organizações locais. 
Na eleição de 1921, os fascistas se aliam aos liberais e ganham, deixando os vários partidos da esquerda na oposição. No governo, a crise econômica persiste, e Mussolini continua incentivando o terrorismo, com as milícias agora organizadas em esquadrões dos camisas negras. Em 1922 organiza a “marcha sobre Roma”, em que as milícias avançam sobre a capital exigindo que Mussolini seja nomeado primeiro ministro. O governo hesita, teria sido fácil desmantelar a milícia se o exército decidisse agir, mas todos temem a confrontação.  Na chefia de governo, Mussolini trabalha para desmontar as instituições democráticas, criando dentro do governo uma polícia secreta copiada da Cheka de Stálin, para dar continuidade à violência, e em 1925 assume o poder como ditador.
Mussolini não estava sozinho em seu assalto à democracia, que incluía gestos teatrais,  acordos por debaixo dos panos, o uso descarado da violência contra os opositores, o uso sistemático da mentira e a traição constante a antigos companheiros.  Tinha a simpatia de empresários, como Gianni Agnelli, dono da FIAT, e intelectuais e artistas brilhantes e famosos, como o filósofo Benedetto Croce, o maestro Arturo Toscanini, e a amante, a aristocrática intelectual judia Margherita Sarfatti. Para eles, o Duce tinha seus defeitos, mas havia uma causa maior, a recuperação econômica e renovação da Itália, que tudo justificavam. Deu no que deu.

Karl Popper: em defesa da ciência e da racionalidade

Apenas transcrevendo o que mantenho na coluna da direita (de quem olha) deste blog.

Uma reflexão...

Recomendações aos cientistas, Karl Popper:
Extratos (adaptados) de Ciência: problemas, objetivos e responsabilidades 
(Popper falando a biólogos, em 1963, em plena Guerra Fria):

"A tarefa mais importante de um cientista é certamente contribuir para o avanço de sua área de conhecimento. A segunda tarefa mais importante é escapar da visão estreita de uma especialização excessiva, interessando-se ativamente por outros campos em busca do aperfeiçoamento pelo saber que é a missão cultural da ciência. A terceira tarefa é estender aos demais a compreensão de seus conhecimentos, reduzindo ao mínimo o jargão científico, do qual muitos de nós temos orgulho. Um orgulho desse tipo é compreensível. Mas ele é um erro. Deveria ser nosso orgulho ensinar a nós mesmos, da melhor forma possível, a sempre falar tão simplesmente, claramente e despretensiosamente quanto possível, evitando como uma praga a sugestão de que estamos de posse de um conhecimento que é muito profundo para ser expresso de maneira clara e simples.
Esta, é, eu acredito, uma das maiores e mais urgentes responsabilidades sociais dos cientistas. Talvez a maior. Porque esta tarefa está intimamente ligada à sobrevivência da sociedade aberta e da democracia.
Uma sociedade aberta (isto é, uma sociedade baseada na idéia de não apenas tolerar opiniões dissidentes mas de respeitá-las) e uma democracia (isto é, uma forma de governo devotado à proteção de uma sociedade aberta) não podem florescer se a ciência torna-se a propriedade exclusiva de um conjunto fechado de cientistas.
Eu acredito que o hábito de sempre declarar tão claramente quanto possível nosso problema, assim como o estado atual de discussão desse problema, faria muito em favor da tarefa importante de fazer a ciência – isto é, as idéias científicas – ser melhor e mais amplamente compreendida."

Karl R. Popper: 
The Myth of the Framework (in defence of science and rationality)
Edited by M. A. Notturno. (London: Routledge, 1994), p. 109.