Conduta dos servidores na campanha eleitoral: ironias do Itamaraty bolsolavista
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
[Objetivo: esclarecimento público; finalidade: ressaltar a contradição]
O boletim diário do Itamaraty, instrumento básico de informação dos diplomatas, ao lado do Boletim de Serviço – que publica os atos oficiais de movimentação de pessoal e medidas correlatas –, que deveria ser complementado pelos clippings diários de notícias nacionais e internacionais – perversamente suprimidos pela atual gestão, provavelmente porque a “grande mídia” trazia muita matéria contrária à política externa bolsolavista –, publicou a seguinte nota nesta quarta-feira, 9/09/2020:
"Eleições Municipais 2020 – Orientações sobre condutas vedadas aos Agentes Públicos Federais em eleições | Última atualização - 31/08/2020 às 09:51
Com o objetivo de orientar a ação dos agentes públicos, a Plataforma +Brasil disponibiliza cartilha com informações básicas acerca dos direitos políticos e das normas éticas e legais que devem nortear a atuação dos agentes públicos federais no ano das eleições municipais de 2020 http://plataformamaisbrasil.gov.br/ajuda/manuais-e-cartilhas/condutas-vedadas-aos-agentes-publicos-federais-em-eleicoes-2020.
Além disso, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República também publicou normas sobre veiculação de publicidade governamental no período de eleições municipais, disponíveis no endereço http://www.secom.gov.br/eleicoes-municipais-2020-orientacoes-ao-sicom."
Existe aqui uma suprema ironia para quem conhece a história do chanceler acidental. Essa mesma Cartilha, distribuída a todos os “agentes públicos federais” a cada eleição, já estava em vigor nas eleições presidenciais de 2018, da qual o então ministro de primeira classe recém promovido pela administração Temer-Aloysio Nunes, participou com grande entusiasmo, ainda que clandestinamente ao início. Quando descoberto, numa famosa matéria da jornalista Patrícia Campos Mello, do dia 30 de setembro de 2018, o militante até então secreto da causa bolsonarista, foi pedir perdão ao titular do Gabinete, por meio da Secretaria Geral do Itamaraty; recebeu permissão para continuar, e por isso até fez uma postagem, no dia 2 de outubro, agradecendo a deferência:
Quero aqui agradecer e enaltecer as altas chefias do Itamaraty por seu compromisso com a liberdade de expressão e com o pluralismo, que me dá a oportunidade de compartilhar estas reflexões. Não sei se esses princípios sobreviverão se o PT “tomar o poder”.
Pretendo destacar aqui algumas pérolas do comentarista desconhecido, até quase a véspera do primeiro turno de 2018, agregando alguns exemplos ao longo do período eleitoral que vai de meados de setembro até a realização do segundo turno. O fato é que ele estava empenhado na campanha desde 2017, quando se revelou por meio de um famoso artigo, “Trump e o Ocidente”, que foi publicado na revista do IPRI, que eu dirigia, Cadernos de Política Exterior (embora o artigo não tivesse muito a ver com a natureza da publicação).
Os interessados em conhecer o “pensamento” – se o substantivo se aplica – do chanceler acidental podem acessar o seu blog (enquanto existir) que se chama – num título que remete aos círculos wagnerianos pré-nazistas – Metapolítica 17 - contra o globalismo (neste link: https://www.metapoliticabrasil.com/blog/), do qual retiro apenas alguns tópicos, para refrescar a memória de alguns responsáveis pelo Comitê de Ética da PR sobre como se pode burlar impunemente as regras de conduta que eles recomendam aos “agentes públicos”.
1) Na primeira postagem, em 22 de setembro de 2018, Ernesto Araújo, enalteceu as virtudes do povo:
Na campanha eleitoral brasileira, hoje, vemos os instruídos preocupados unicamente com duas ou três frases pronunciadas por Bolsonaro ou pelo General Mourão. Repetem essas frases nos seus restaurantes e teatros e competem para ver quem mais se indigna. (Só não se dão ao trabalho de analisar o contexto das frases, é claro, porque analisar uma expressão no seu contexto é tarefa complexa, a exigir as faculdades cognitivas que os vários níveis de educação lhes retiraram.) Dizem que jamais votariam num candidato que disse isto ou aquilo sobre "as mulheres" ou "os gays". Para eles, mulheres ou gays não são indivíduos realmente existentes, mas categorias políticas, personagens chapados numa novela esquerdista com um enredo absolutamente primário, que jamais satisfaria qualquer pessoa dotada de boa-fé e curiosidade intelectual.
2) Logo em seguida, no dia 23/09/2018, ele enaltece a polarização em curso:
As mesmas pessoas que dizem detestar a polarização querem apelar a um certo moralismo puramente verbal no atual debate político. Sustentam que algumas frases que Bolsonaro pronunciou a respeito de mulheres, gays ou negros, transformam a eleição numa questão moral. O saque da Petrobras, o mensalão, o achincalhamento das instituições, o assassinato de Celso Daniel e a tentativa de assassinato de Bolsonaro, nada disso acaso são questões morais? (...)
A esquerda não quer polarização porque não quer nenhuma concorrência ao seu polo totalizante, que ocupa todo o espectro do centro moderado até o stalinismo (veja-se, para exemplificá-lo, a perspectiva de uma aliança do PT, cuja candidata a vice-presidente pertence ao PC do B stalinista, com o PSDB liberal reformista, cuja candidata a vice-presidente pertence ao PP, partido herdeiro da ARENA: assim, o centro moderado no Brasil vai de Stalin a Geisel, passando por Lula e FHC).
3) Dois dias depois, em 25/09/2018, o elogio é ao povo, que “se interessa por política externa”, contrariamente ao que acreditaria a esquerda:
O sistema não quer que o brasileiro saiba que o Brasil está, hoje, chamado a participar de uma gigantesca luta mundial, que se desdobra em vários aspectos: (...)
A luta pela soberania econômica e política dos países, contra o domínio das cadeias produtivas de bens e contra o monopólio da circulação de informações por uma elite transnacional niilista, contra uma economia globalizada maoísta-capitalista centrada na China.
A luta pela democracia efetiva e contra a reemergência do bolivarianismo na América Latina, o sistema regional de implantação do "Socialismo do Século XXI".
As opções reais de política externa são: ou aliar-se aos países e forças que lutam contra o globalismo, ou deixar que o Brasil, junto com todas as nações, desapareça na geleia geral de um mundo desnacionalizado e desespiritualizado (a nação é a casa do espírito!) e torne-se uma província da "pátria grande" socialista.
A esquerda, juntamente com o centro..., usa o seu controle da mídia e da academia para ocultar ao brasileiro o que está em jogo nas eleições, em relação à nossa inserção internacional: se o Brasil combaterá por um mundo de nações e de pessoas livres, ou se continuará deixando-se levar para um império global sem amor e sem apego, onde impera um programa de controle político-mental que aniquila a personalidade de pessoas e povos para melhor dominar.
4) No dia seguinte, 26/09, os ataques ao PT emanam naturalmente do “povo”:
O PT assumiu assim, sem maior dificuldade, o completo controle do país. Atribuiu ao PSDB o papel de "direita" e governou confortavelmente por 13 anos. (...) Esse regime tão eficiente e popular só se esqueceu de colocar uma coisa em sua equação: o povo. (...)
Dessa agenda do povo brasileiro nasceu a candidatura de Bolsonaro. Todos sabem que Bolsonaro é o único candidato anti-sistema. (...) Na verdade, sua candidatura é o único projeto político que atende ao anseio mais profundo do povo brasileiro.
Trata-se de uma candidatura de direita, certamente, e não poderia ser de outra forma já que todo o espectro político do sistema foi ocupado pela esquerda. (...)
Tudo o que é decente e bom, hoje, está na direita, simplesmente porque a direita é, hoje, o único lugar que acolhe tudo o que é bom e decente. (...)
Por isso, muitas pessoas que se consideram centristas e muitos políticos autênticos estão abandonando os candidatos presidenciais ditos de centro e entendendo que a única casa sob cujo teto podem abrigar suas ideias e suas esperanças é a campanha de Bolsonaro.
5) Imediatamente após, em 27/09, confiando na sua “clandestinidade”, Ernesto se permite criticar o discurso do presidente Temer, na abertura dos debates na Assembleia Geral, quando o presidente se refere à “nossa Venezuela” (ele coloca o vídeo do discurso para provar), e logo em seguida transcreve um trecho do discurso do presidente Trump atacando de forma veemente o governo de Maduro:
Mas sabemos que a solução para a crise virá quando, na verdade, o nosso país, a Venezuela, reencontrar o caminho do desenvolvimento.” (https://www.youtube.com/watch?v=1nYdOEM6D1M).
Do discurso do Presidente Donald Trump na mesma ocasião: (...)
6) No mesmo dia, ele ainda encontra tempo para atacar o candidato do PT e seu projeto, provavelmente numa alusão à linha de transmissão que transporta eletricidade da Venezuela a Roraima, destacada da rede nacional de energia.:
Haddad é o poste de Lula.
Lula é o poste de Maduro, atual gestor do projeto bolivariano.
Maduro é o poste de Chávez.
Chávez era o poste do Socialismo do Século XXI de Laclau.
Laclau e todo o marxismo disfarçado de pós-marxismo é o poste do maoísmo.
O maoísmo é o poste do inferno.
Bela linha de transmissão.
7) No dia seguinte, em 28/09, sempre atarefado em sua missão secreta de angariar votos para o seu candidato, ou mais provavelmente em consolidar sua candidatura ao cargo de chanceler do futuro presidente, ele conclama os conservadores a se mobilizarem:
Acorda, liberal!
Sai da cama, conservador!
Você pretende ficar neutro, assistindo à batalha pelo futuro do Brasil e comendo pipoca, como se estivesse vendo Croácia x Dinamarca?
Você tem algo mais importante a fazer do que salvar o seu país?
Quem se diz liberal e não está com Bolsonaro é porque não se importa com a liberdade, mas apenas com a sua própria imagem.
Quem se diz conservador e não está com Bolsonaro é porque só quer conservar sua própria convicção de superioridade moral.
O PT (Partido Terrorista) está se preparando para tomar o poder no Brasil.
Na véspera da I Guerra Mundial, o Secretário do Exterior britânico, Edward Grey, prevendo a catástrofe, disse a um amigo: “As luzes estão-se apagando em toda a Europa. Não as veremos novamente em nossas vidas.”
No Brasil, se o PT ganhar, vai extinguir todas as luzes da decência e da liberdade, e não as veremos acesas novamente em nossas vidas. (...)
Fascista é o nome dado pelos comunistas a qualquer inimigo do regime de terror que o PT pretende instaurar ou reinstaurar no Brasil.
A sobrevivência do Brasil depende de você perder o medo de ser chamado de fascista.
Acorda, sai da cama e vem para a luta! É o Brasil que está jogando o jogo mais importante da sua vida.
8) Depois de mais uma postagem atacando a esquerda no dia 29, no próprio dia em que sua identidade seria revelada na reportagem de Patrícia Campos Mello na FSP (30/09), como o único diplomata a apoiar ativamente o candidato da direita, ele novamente conclama o povo a vir em apoio ao candidato, revelando seus sentimentos com uma grande carreata pró-Bolsonaro em Brasília:
Mas se ergues da justiça a clava forte
Algumas reflexões sobre a carreata pró-Bolsonaro em Brasília, com 25.000 carros, em 30 de setembro:
Não vi ódio em ninguém, em nenhum instante. O movimento popular por Bolsonaro não se nutre de ódio, mas de amor e de esperança. As pessoas sorriem e celebram. Há um clima de congregação, uma energia coletiva impressionante, uma presença. Só me lembro de uma atmosfera cívica desse tipo em duas ocasiões: a campanha das Diretas Já em 1984 e o movimento pelo impeachment em 2016. É a primeira vez, portanto, que este oceano profundo, obscuro, poderoso de sentimento coletivo, ruge desta maneira em uma situação eleitoral. Isso significa que se trata de muito mais do que uma eleição, de uma escolha entre diferentes projetos para a pátria. Trata-se de uma luta pela sobrevivência da pátria.
O hino nacional fala de bosques e campos floridos e de uma vida serena, mas em certo ponto interrompe todo esse aconchego e proclama: “mas se ergues da justiça a clava forte, verás que o filho teu não foge à luta”. A mão fazendo o gesto de atirar é a pátria-mãe erguendo a clava forte! E não esqueçamos que Jesus, o príncipe da paz, disse em alto e bom som: “não vim trazer a paz, mas a espada”.
Arma só é símbolo de violência na mão de bandido. Na mão de pessoas de bem, arma é símbolo de orgulho, confiança, determinação e justiça.
Vi pessoas de todos os níveis de renda, de todos os tons de pele. Vi homens e muitas mulheres, se bobear mais mulheres do que homens. Pensei na cena final do Fausto de Goethe: Das Ewig-Weibliche zieht uns hinan. “O eterno feminino nos eleva ao alto.” A Virgem e a pátria-mãe gentil estão conosco.
Alegria por poder participar de algo tão grande, angústia por saber que não temos a opção de perder diante de um inimigo tão pérfido, confiança na justiça e no poder mais alto. A carreata continua até salvarmos o Brasil.
9) No dia seguinte, 1/10/2018, mas com uma postagem que já devia estar preparada antes, ele ainda ataca o candidato da esquerda em especial e o marxismo em geral:
O marxismo é um projeto para destruir o cristianismo, não o capitalismo. O capitalismo é visto por Marx simplesmente como um meio capaz de acelerar, pela desagregação que promove na sociedade tradicional, seu projeto anticristão. (...) A tarefa então é aniquilar a família humana, destruir o homem, para poder aniquilar o salvador que é Deus. Isto não está em alguma nota de pé de página ou em algum rascunho de Marx, está no centro do texto que os marxistas consideram a essência de sua obra. Esse é o marxismo ou o socialismo que, com Haddad, pretende tomar o Brasil.
10) Finalmente, provavelmente constrangido por ter sido revelado, ele vai pedir compreensão ao Gabinete, no dia 2/10, e até se permite elogiar a postura aberta das “altas chefias”, personalidades que ele atacaria de forma acerba depois, com munição fornecida pelo “Gabinete do Ódio”;
Quero aqui agradecer e enaltecer as altas chefias do Itamaraty por seu compromisso com a liberdade de expressão e com o pluralismo, que me dá a oportunidade de compartilhar estas reflexões.
Não sei se esses princípios sobreviverão se o PT “tomar o poder”.
11) Nos dias seguintes, e durante todo o intervalo entre o primeiro e o segundo turno, EA faz diversas postagens, praticamente uma a cada dia, sempre atacando a esquerda, o PT e o seu candidato. Quase na véspera do segundo turno, em 20/10, ele recrudesce:
Não há nada que o PT odeie tanto quanto a liberdade: liberdade econômica, liberdade de pensamento, liberdade de expressão.
Isso porque o PT, fiel ao “belo ideal socialista”, odeia o ser humano.
Deixado a si mesmo, o ser humano cria e produz, ama e constrói, trabalha e confia, realiza-se e projeta-se para a frente.
Então não pode. O PT (que aqui significa não apenas “Partido dos Trabalhadores”, mas também Projeto Totalitário ou Programa da Tirania) não pode deixar o ser humano a si mesmo. (...)
A única coisa que o Projeto Totalitário não criminaliza é o próprio crime e os próprios criminosos. Ou seja, o PT criminaliza tudo, menos a si mesmo.
Agora querem criminalizar o Whatsapp.
O ideal do PT (já expresso por alguns ecologistas radicais) é que a espécie humana não existisse. Já que existe, ainda, vamos fazer dela o pior possível, para que a humanidade se odeie tanto a ponto de um dia cometer suicídio. Sim, o Projeto Totalitário, do qual o “Partido dos Trabalhadores” faz parte integralmente até a medula dos seus ossos e até o fundo do buraco que tem no lugar do coração, é levar a humanidade ao suicídio. Para isso precisa destruir a alegria de viver, que depende da liberdade. Censurar o Whatsapp é mais uma tentativa.
12) Finalmente, o triunfo, devidamente comemorado em 24 de outubro de 2018:
O povo vem criando um novo Brasil. Já criou ao menos a imagem de um novo Brasil – um Brasil sem PT, sem crime, sem falsidade – e agora se prepara para alcançar essa imagem, para tocá-la e começar a vivê-la.
13) Seguiram-se uma dezena de postagens altamente ideológicas, como pode ser verificado no site Metapolítica 17, e isso a despeito de o presidente, que o escolheu em 14/11/2018 (sob provável injunção do guru expatriado e dos dois olavistas que o controlam de perto, em Brasília), ter prometido uma política externa “sem ideologia”. Uma dessas postagens consistiu num artigo, “Contra o consenso da inação”, com críticas acerbas ao ex-ministro Rubens Ricupero e ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi objeto de uma postagem conjunta, que fiz em meu blog na madrugada do dia 4/03/2019, e que motivou minha exoneração poucas horas depois.
14) Nos meses seguintes, as postagens amainaram, mas todas elas tinham um sentido altamente ideológico, como aquela famosa que defendia a tese – imediatamente rejeitada até pela embaixada da República Federal da Alemanha em Brasília – segundo a qual o nazismo era um “movimento de esquerda”, em 30/03/2019:
Pela aliança liberal-conservadora
15) Raras foram as postagens no restante do ano de 2019, sendo que uma delas, em 19 de julho, defendia a “liberdade religiosa, religião libertadora”, até que finalmente chegamos à apoteose ideológica da famosa reunião dos impropérios, no dia 22 de abril de 2020, durante a qual o presidente recrudesceu contra a Polícia Federal e seus demais inimigos no governo e fora dele, ao passo que o chanceler acidental, defendendo o grande papel do Brasil de Bolsonaro na reorganização do poder mundial, cunhou o famoso slogan do “comunavirus”, o terrível inimigo que surgiu na China para dominar o Ocidente:
Querem mais, querem se divertir, querem lamentar? Basta acessar o site do chanceler acidental – que não sei quanto tempo dura, mas tenho tudo registrado –, embora outras formidáveis bobagens figuram em entrevistas e artigos que podem ser acessadas nos sites do Itamaraty e da Funag. Creio que bastam as pérolas acima...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3750, 9 de setembro de 2020