MISSÃO DE PAZ?
Mortes por cólera e golpe eleitoral: o rastro das missão brasileira no Haiti
Ex-representante da OEA fala sobre as consequências da missão militar brasileira no país mais pobre do ocidente
A um mês de completar três anos da retirada das Forças Armadas brasileiras do Haiti, o rastro da presença dos militares ainda está presente no país. A principal marca da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), comandada pelas tropas do Brasil durante treze anos (2004-2017), são milhares de vítimas de uma epidemia de cólera, a miséria e a instabilidade política em que o país se encontra ainda hoje.
É o que afirma Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra que atuou como representante especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011.
Em seu livro A ONU e a Epidemia de Cólera no Haiti, Seitenfus aponta que soldados do Nepal que atuaram na Minustah foram os responsáveis por levaram o vírus ao Haiti. Segundo ele, ao invés de combater a disseminação da doença, a Organização das Nações Unidas (ONU) concentrou esforços em esconder sua responsabilidade pelo episódio com conivência dos oficiais brasileiros.
“Há uma lei do silêncio em torno da questão que é vergonhosa. Se sabia desde o início [que os soldados nepaleses levaram a coléra para a ilha] e isso provocou milhares de mortes. Quando fazemos o balanço da situação do Haiti no momento em que saímos, é de um país com 50 mil mortes de cólera, instável e mais pobre do que estava. Ao invés de premiar os militares que lá foram, deveríamos pedir a conta a eles”, disse Seitenfus, em entrevista ao Brasil de Fato.
Durante a Missão de Paz, o Brasil enviou 37 mil militares ao Haiti, maior força militar brasileira no exterior depois da Guerra do Paraguai.
"Nós nos apresentamos como salvadores do Haiti. Premiamos os generais brasileiros que passaram no Haiti com postos de ministros. No Palácio do Planalto, nunca foi contestado nada, quando de fato o Brasil foi conivente com essa situação", afirmou o especialista.
Para ele, é urgente que os brasileiros e haitianos conheçam todos os lados da Missão de Paz que deixou danos permanentes no país.
"Foi uma experiência para o Brasil que começou de forma eufórica e terminou de forma trágica. Essa é a experiência da Minustah. E eu espero que os militares - muitos se referiram ao Haiti como se fosse um pós-doutorado que tivessem feito lá fora - reflitam sobre sobre os aspectos absolutamente negativos da missão".
Confira a entrevista completa.
Brasil de Fato - Em seu livro “A ONU e a epidemia de cólera no Haiti” você aponta a responsabilidade da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) em relação a epidemia de cólera que atingiu o país. Como isso aconteceu?
Ricardo Seitenfus - A primeira coisa que quero enfatizar é que o Haiti, apesar de reunir condições sanitárias que nós sabemos que são as piores do Ocidente, nunca, nunca, reitero, em toda sua história, teve cólera. A história da cólera nas Américas exclui o Haiti. A primeira vez que chega a cólera no Haiti é em outubro de 2010 por meio de movimentos de tropas das Nações Unidas e soldados vindos da região de Katmandu, do Nepal. A cólera surge justamente em um vilarejo ao lado de Mirebalais, onde estava a base de soldados do Nepal.
Isso ficou claro, e aí é importante o fio do tempo, a cronologia. Em novembro de 2010, ficou bastante claro. Mesmo em outubro, autoridades haitianas, a começar pelo presidente da República, René Préval, faz uma declaração para a imprensa: "isso é uma doença importada". Ficou bastante claro desde o início que havia um elemento exógeno, estrangeiro, que havia se inserido no meio haitiano naquela região. E as Nações Unidas tomam uma decisão em sua mais alta cúpula de não reconhecer a essa realidade.
E a partir daí estabelece uma estratégia de várias etapas, que eu descrevo no livro, de negação, minimização, até que em 2013, três anos depois, eles reconhecem que sim. Mas aí falam que têm imunidade. Que as operações de paz se beneficiam da imunidade das Nações Unidas.
Mas durante esse período, caso as autoridades haitianas soubessem, desde o início, desde 20 de outubro de 2010, que tivessem certeza que dali que veio a cólera, o embrião, assim que se comporta, poderiam ter tomado medidas preventivas como, por exemplo, proibir a utilização dos rios. No Haiti, os rios, no interior, que dão água potável, são utilizados para banho, para dar de beber aos animais, preparar as refeições, cozinhar, fazer de tudo. Os rios são limpos. Não existem defensivos agrícolas, as águas são limpas, é uma agricultura absolutamente natural.
E a partir daí, essa água que era uma fonte de vida no Haiti, sobretudo no Haiti rural, se transformou. Houve, como o epidemiologista francês Renaud Piarroux fala, um verdadeiro tsunami colérico. Não foi um ou dois turistas. Aquilo matou dezenas e centenas e depois milhares de pessoas em um período extremamente curto.
Queria fazer uma primeira diferenciação entre o que aconteceu no Haiti na época e o que acontece hoje. É que se sabe muito bem como tratar a cólera. É uma doença hiper conhecida, comportamento previsível, mesmo que seja objeto de mutações genéticas, o comportamento de impedir que se use os esgotos e o uso apenas de água encanada e tratada. Enfim, há uma série de medidas profiláticas bastante simples de serem aplicadas.
No entanto, as Nações Unidas naquele momento, não seguiram o caminho normal que segue a ciência no caso da cólera, que é a análise do que compõe esse vibrião colérico. Eles foram buscar outras motivações e origens possíveis para o surgimento do cólera e deixaram de lado a análise do genoma sequencial.
O que foram fazer? Disseram que várias teses apareceram... uma era de que forças telúricas surgiram a partir do terremoto de janeiro de 2010. É inédito que cientistas se baseiem nisso, porque nunca se viu. Depois falaram do balastro dos navios que acostam em um porto que chama San Mar, mas também, evidentemente, não foi ali que nasceu.
E uma terceira explicação foi o aquecimento global, dizendo que a cólera seria originária do aquecimento global, que impulsionaria o surgimento do bacilo cholerae na região do Delta do Artibonite. Ou seja: se afasta completamente o que já em 1851 havia sido estabelecido, que teria que analisar o genoma sequencial do cólera. E se vai para teorias naturais, que as origens seriam naturais e não de atividade humana. Essa é uma diferença muito grande em relação à covid-19 porque não sabemos qual o comportamento dele. A ciência está dividida, alguns exigem certas coisas, outros propõem a cloroquina... Há um debate dentro da ciência que se presta a uma utilização política.
No caso da cólera no Haiti não. Deveria ser bastante claro: é a análise do genoma sequencial. E é isso que, finalmente, a comissão de especialistas convocados pelo Ban Ki-moon, então secretário-geral da ONU, quando entrega o relatório em maio de 2011, afirma. Fazendo a análise do genoma sequencial e dizendo que provavelmente veio do Nepal, que é em razão da atividade humana, ou seja, dos excrementos e não uma causa natural.
Mas mesmo assim, como no relatório os especialistas escrevem provavelmente, as Nações Unidas se utilizam da expressão para alegar que não há certeza. Mas havia certeza.
Em 2012, uma das integrantes da comissão de especialistas disse: "não, o vibrião (bactéria) colérico tem a mesma composição no Haiti e no Nepal, exatamente a mesma". Então há uma situação bastante clara desde o início. Um elemento estrangeiro, de origem humana, que provoca a cólera no Haiti. E as Nações Unidas, ao longo de todo esse período, tem essa atitude de desviar a atenção, de desresponsabilizar.
E, muito importante enfatizar isso, há uma conjunção de vontades de esconder a realidade. A grande imprensa internacional praticamente não fala sobre isso. Os governos envolvidos com a Minustah, a começar pelo nosso, não falam sobre isso.
Para que tenha uma ideia, ainda em 2017, sete anos depois que havia o reconhecimento científico-político dessa realidade, o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Aloysio Nunes, vai ao Haiti para se despedir das tropas, que estavam voltando, e diz que as infelicidades haitianas não são de responsabilidade da Minustah. Há o que eu chamo de Omertá. Uma lei do silêncio em torno da questão, que é vergonhosa. Se sabia desde o início e isso provocou milhares de mortes.
O Renaud Piarroux não fala de dez mil, ele fala em 50 mil mortes em total silêncio, em total conivência. Em total lei da Omertá, dos mafiosos italianos. Ainda hoje, fico muito feliz que estejamos tratando disso, é uma responsabilidade intelectual minha de escrever esse livro. É um livro desagradável, claro que é, porque a realidade é muito desagradável.
Nós nos apresentamos como salvadores do Haiti. Premiamos os generais brasileiros que passaram no Haiti com postos de ministros. No Palácio do Planalto, nunca foi contestado nada, quando de fato o Brasil foi conivente com essa situação. O Brasil não exerceu a responsabilidade que deveria ser a sua.
E mais ainda, o general Paul Cruz que em 2010 era o Force Commander da Minustah, ele tinha a responsabilidade do acampamento, da base dos nepaleses. Ou seja, o Brasil, não somente seus militares mas também o seu governo, têm responsabilidade em relação a isso.
Quando se consulta essa solução proposta no apagar das luzes de seu mandato pelo Ban Ki-Moon e de recolher US$ 400 milhões para resolver essa situação, no site, é possível ver que os Estados Unidos colocaram US$ 10 milhões e que o Nepal colocou US$ 237 dólares e o Brasil zero.
É algo que temos que resgatar. Faz parte da nossa experiência, infelizmente com esses dados absolutamente negativos. E a humanidade não aprendeu porque está repetindo os erros com a covid. Não aprendeu e toda a discussão sobre a origem da covid é de novo a discussão sobre a origem da cólera.
Toda a discussão sobre o papel da OMS, também tivemos lá. Sobre o papel da OMS e da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) braço americano da OMS. Chegaram a falsificar mapas na época para mostrar que a cólera não havia surgido no departamento de Mirebalais, ou seja, houve uma conivência do conjunto das Nações Unidas, da chamada "família" das Nações Unidas.
Quando se recupera os dados, as declarações, as informações, os mapas, é absolutamente incrível o que aconteceu no Haiti e que foi levado de roldão com um total manto de cumplicidade e de silêncio sobre isso.
Até chegar ao que eu te disse anteriormente, a questão da imunidade. Dizer que soldados envolvidos em operações de paz tem imunidade. Como? Baseado na Convenção de Londres de 1946, que foi firmada para proteger os funcionários civis das Nações Unidas. Como há também a proteção diplomática das convenções de Viena para os embaixadores, para os enviados... mas nunca se falou que isso protegeria soldados em armas, em armas ofensivas, inclusive.
Então, no frigir dos ovos, uma conclusão que se pode extrair dessa interpretação maximalista das Nações Unidas sobre o privilégio da imunidade é que os soldados das Nações Unidas, os capacetes azuis nas Operações de Paz, são os únicos que não precisam respeitar as Convenções de Genebra e não precisam respeitar o direito da guerra. Isso é um absurdo total. Sabemos que em 1948 foi firmada a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o primeiro princípio é o direito à vida.
E, portanto, lá os soldados, segundo essa interpretação das Nações Unidas, podem matar e voltar para seu país livremente, sem nenhum tipo de processo. Fazendo um parênteses, tem a questão dos "babies da Minustah".As crianças que foram geradas por soldados e aí tem uma lista de nacionalidades onde o Brasil está em segundo lugar. São mais de 280 crianças. Também não há nenhum tipo de proteção ou trabalho feito pelas Nações Unidas e muito menos pelos militares, pela Justiça militar dos países que enviaram tropas pra lá.
E aí também é uma discussão jurídica que pra mim é bastante clara sobre o duplo chapéu que têm os soldados enviados em Operações de Paz, que seria o chapéu do país que envia e o chapéu das Nações Unidas. A ONU se esconde atrás dessa possível interpretação do duplo chapéu para dizer que a Justiça militar dos respectivos países fará com que isso seja resolvido, que fará justiça. E nunca foi feito.
Tem uma frase que eu utilizo que é: a justiça militar está para a justiça como a música militar está para a música. Há uma grande diferença entre justiça militar e justiça.
Qual seria a responsabilização possível no caso da disseminação da cólera no Haiti?
Em 2017, o Ban Ki-Moon criou uma espécie de observatório sobre possíveis delitos sexuais, muitos haviam sido acusados em Operações de Paz. No Congo, no Haiti e outros lugares. Então, tem uma responsável que recebe as demandas por parte das famílias ou por parte das vítimas, mas são demandas individuais ao passo que isto está previsto exclusivamente para delitos de natureza sexual. Não está previsto para vítimas de ações coletivas, que é o caso da cólera.
Não há maneira de buscar justiça. As Nações Unidas haviam previsto no acordo de sede com o Haiti, uma comissão de reparações de particulares, e essa comissão nunca foi criada.
Inclusive, na Comissão de Londres, na chamada sessão 29, que supostamente daria imunidade para todos em trabalho para as Nações Unidas, na sessão 30, ou seja, na sessão seguinte, diz que quando houver algum tipo de dúvida em relação à interpretação das sessões anteriores, seria feito uma consulta à Corte Internacional de Justiça. As Nações Unidas nunca aceitaram isso. Está previsto na Convenção de Londres de 1946 e também no acordo-sede entre as Nações Unidas e o Haiti, mas nunca permitiram.
Portanto há uma espécie de denegação de jurisdição. As vítimas não sabem a quem demandar. Isso é uma infração jurídica e mesmo penal. Ou seja, a vítima tem que ter meios de reclamação e não tem.
E com relação ao comando da Minustah, qual foi o papel das Forças Armadas brasileiras nesse período?
São duas fases da Minustah. Há uma fase que vai de 2004 a janeiro de 2010 e uma segunda fase de janeiro de 2010 até o seu fim. Até o final de 2009, eu representava a OEA no Haiti, tínhamos reuniões no Core Group para discutir o que chamávamos de modelo de saída de crise. Como podemos deixar o Haiti? Uma missão de paz onde não havia guerra.
Tudo estava mais ou menos encaminhado. As gangues haviam sido desmanteladas, o Préval havia sido eleito no primeiro turno de 2006, a economia havia retomado um pequeno e médio crescimento, havia um diálogo nacional. Então, 2008-2009 é um momento de imaginar um modelo de saída de crise, fechar as malas e ir embora. É quando acontece o terremoto, em janeiro de 2010.
E o terremoto muda tudo. Vem os marines nos Estados Unidos, 20 mil. O Préval é visto como alguém inapto. Em outubro vem a cólera, um milhão de pessoas nas ruas. É necessário tirar todos os destroços da região metropolitana de Porto Príncipe. Há 230 mil mortos, 300 mil feridos. É uma catástrofe de dimensões gigantescas.
Nesse momento, quando os Estados Unidos enviam os 20 mil marines, mostram, bem claramente, que o Comando Sul não confia na Minustah. Há uma certa tensão entre a Minustah e militares americanos para saber quem vai fazer o que naquele momento, quem distribui os livros, quem faz segurança.
Os haitianos foram extremamente corajosos e até estóicos com o terremoto, não houve saques, rebeliões, não houve nada. Poucas semanas depois os marines foram embora, viram que não tinham função nenhuma ali. Mas mesmo assim, a partir daquele momento, o papel político da América Latina e propriamente do Brasil se esvai. O que é confirmado em dois episódios.
No episódio da cólera, onde ficamos em silêncio e não fizemos o que deveria ser feito, e no episódio das eleições do fim de ano de 2010 para a substituição do Préval. Houve um golpe eleitoral preparado pela Hillary Clinton com a conivência dos demais, que impactou o resultados das eleições no primeiro turno. Conto isso em outro livro: "Haiti: dilemas e fracassos internacionais".
Eu me opus ao golpe e me retiraram do Haiti em novembro de 2010. E ai é eleito o Michel Martelly. E aí é interessante... Fomos em uma Missão de Paz e resgatam o duvalierismo depois desse período. E ele faz o mandato dele de uma forma autoritária até 2016 e faz o sucessor dele que lá está até hoje. Não tem mais parlamento, não tem mais Conselho Eleitoral, desígnios dos prefeitos. É, de fato, um ditador.
Há mesmo até uma tese dizendo que normalmente depois de uma operação de paz o que fica no país que recebeu a operação de paz é um regime autoritário. É o caso da Libéria, do Congo, do Camboja. O primeiro-ministro do Camboja está no cargo há 37 anos. E foi colocado pelas forças de paz das Nações Unidas. Há outra tese que diz que as operações de paz das Nações Unidas, quando vão embora, deixam alguém autoritário e de extrema-direita. No caso do Haiti é bastante claro em relação a isso.
O Brasil perde, e a América Latina junto, o comando, mas unicamente pró-forma. Mandamos, nesse período, 37 mil militares ao Haiti. É a maior força militar brasileira no exterior depois da guerra da Tríplice Aliança, da Guerra do Paraguai. Mais ainda que na Segunda Guerra Mundial quando mandamos 26 mil militares pro norte da Itália.
Então, é a maior presença brasileira militar depois da Guerra do Paraguai e quando fazemos o balanço disso, a situação do Haiti no momento em que saímos é um país com 50 mil mortes de cólera, deixamos um país instável, mais pobre do que estava e ao invés de premiar os militares que lá foram, deveríamos pedir contas a eles. Mas não foi isso que foi feito.Há uma tentativa de dourar a pílula, de contar outra história, quando a história é muito dramática, muito difícil.
A América Latina teve esse papel triste, para as Forças Armadas brasileiras, foi um treinamento. Inclusive o Heleno, em 2010, diz que como treinamento foi excelente. Como Missão de Paz não tem mais sentido. Ele mesmo disse isso. Em 2010 deveríamos ter saído do Haiti e ter outro tipo de presença de cooperação econômica e desenvolvimento econômico e social. Hoje o Haiti está em pior situação do que estava em 2004.
E no caso desse exercício doméstico que as tropas brasileiras acabaram fazendo lá, vemos que mais pra frente tivemos uma intervenção no Rio de Janeiro da mesma forma. Esses militares estão hoje no governo. Foi uma decisão do governo mas qual o interesse das Forças Armadas em permanecer no Haiti? Visibilidade? Por que permaneceram ali?
Acho que há muitas razões. Primeiro a participação em uma operação de guerra sem correr nenhum risco. Tivemos zero mortes em combate, zero. Nenhum soldado, nenhum militar, nenhum policial morreu em combate no Haiti. Morreram em acidente, suicídio, é outra coisa.
Primeiro, é um exercício militar com baixa zero. Segundo, uma parte dele é paga pelas Nações Unidas. Terceiro: Tivemos autonomia de transporte, de comunicações, de testar a indústria bélica nacional, fantástica. Em um terreno propício. E, finalmente, uma última razão e que muitos mencionavam, e outros pensavam, que o Haiti era um laboratório que serviria de experiência para serem usadas nas regiões metropolitanas brasileiras.
A questão haitiana se resume às favelas de Porto Rico. Os militares, a começar pelo General Heleno, que fala claramente de usar helicópteros para sobrevoar favelas e atirar contra, como já foi feito no Rio de Janeiro. Como fizeram no Haiti. Dizer que no Haiti, como disse ele, havia uma autorização judicial, que o juiz dava autorização, isso não é verdade. O judiciário haitiano nunca se voltou a essa questão. Era única e exclusivamente dos militares da Minustah.
Houve mortes em 2005 e 2006 sim [em decorrência do uso de helicópteros]! Há um documentário sobre isso, em que se mostra claramente que usaram helicópteros. Havia alguns diplomatas e militares que diziam que até escreveram que o Haiti seria um laboratório. Eu acho isso uma posição vergonhosa, de se utilizar dessa situação terrível para fazer uma espécie de aprendizado. Mas é isso que foi feito.
O senhor aponta que os militares atuaram para encobria a epidemia de cólera no Haiti e hoje vemos os militares aqui no Brasil tomando pra si o Ministério da Saúde e também lidando com uma epidemia. O senhor vê semelhanças na ação militar brasileira nesses casos?
Eu acho que no caso do Haiti, se entrevistarem algum militar [brasileiro] sobre isso, ele vai dizer duas coisas: Primeiro que não sabia. E que segundo, não ficou claro de onde veio a origem [da cólera].
É evidente que o tratamento que foi feito em relação à cólera no Haiti foi feito com a conivência dos militares. Foi uma decisão política do Departamento de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral das Nações Unidas que sequer o secretário geral comanda. As decisões que emanam do Conselho de Segurança são inimputáveis. Se o Conselho decidiu pela missão de paz e segurança internacional, não pode ser colocada em questão nada que decorra dessa missão.
O departamento de Assuntos Jurídicos zela para que isso seja respeitado. Nenhuma interpretação que venha a contrariar essa autonomia total e absoluta, essa imunidade total e absoluta, pode ser aceita.
Tanto é assim que quando houve a assinatura do Tratado de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), os Estados Unidos conseguiram, para os crimes de guerra, de genocídio, fazer com que fosse aprovado por unanimidade uma resolução no Conselho de Segurança dizendo que as tropas em serviço das Nações Unidas não seriam submetidas ao TPI. Ou seja, poderiam vir eventualmente a cometer crimes de guerra mas não poderão ser julgadas pelo Tribunal de Haia.
Nota-se muito bem que há uma percepção de que tudo que está vinculado ao Conselho de Segurança está acima do bem e do mal. Não pode nem ser contestado. Nem por fatos como esse que estou narrando agora, nem pelo Direito. Direitos humanos, direito à vida, direito da guerra, Convenção de Genebra.
É uma visão dos Estados Unidos. Eles dizem: "se vocês não fizerem isso, vou paralisar as Operações de Paz". Parar o financiamento. Tem um artigo da Susan Rice, que foi embaixadora dos Estados Unidos na ONU e conselheira de Segurança Nacional do Obama. Onde ela descreve perfeitamente o papel das operações de paz nas estratégias do poder dos Estados Unidos.
"O que é mais benéficos para nós? Mandar uma ação de paz ou nossos marines?". Uma operação de paz custa um quarto menos. "Eu adoro ir a um shopping que me dê 75% de desconto". Ela diz isso.
E até os militares brasileiros, coniventes com essa situação, não entendem. Eu fico pasmo com gente de esquerda que não entenda isso. Em 2004, quem tomou a decisão de ir para o Haiti foi o Lula. Uma ilusão de entrar no Conselho de Segurança, de ter uma política externa mais ativa.
Eu apoiei isso, inclusive, em 2004. Eu pessoalmente apoiei. Só que vimos como fomos manipulados por essa situação. Se nós nos espelharmos na atitude que os militares tiveram, brasileiros e outros, durante a crise da cólera, estamos muito mal amparados hoje com os militares trabalhando com a covid.
Existem algumas semelhanças até da forma como trabalhar a informação. Uma coisa que marcou logo no começo foi o fato dos militares pararem de divulgar os dados em relação aos casos...
E no caso do Haiti, o que se fazia com os jornalistas? Se coloca no avião da FAB e levavam. Não deixavam falar com ninguém. Só com os militares. Pode pegar todo o material que veio de lá durante esses 12, 13 anos, a maioria é muito favorável.
Mas eu acho que houve essas duas fases, só pra reiterar. Em janeiro de 2010, as cartas são embaralhadas, tudo é diferente. E ninguém está preparado pra isso. Ai foi improvisação, improvisação. Cólera, política, a reconstrução, a tentativa de salvar pessoas. Extremamente complexo.
Foi uma experiência inovadora para todos. Mas creio que em certos momentos de confusão é preciso ter certos princípios. Mas creio que os militares brasileiros e os brasileiros não tiveram esses princípios a partir do momento que foram coniventes com as mentiras das Nações Unidas em relação à cólera. Quando o Itamaraty foi conivente com o golpe protagonizado pela Hillary Clinton.
Quais seriam esses princípios que deveriam ter prevalecido?
O primeiro é o princípio democrático e do respeito à vontade do eleitor. E não trocar resultados. Fomos lá para ensinar a democracia. Talvez não com os melhores professores, mandamos militares, mas o princípio básico é respeitar o veredito das urnas.O segundo é respeitar os interesses daqueles que nós vamos ajudar. Fomos lá para ajudar os civis haitianos, para protegê-los. Nós terminamos matando 50 mil com a cólera e ficamos em silêncio. Fomos coniventes. Por nossa ação e omissão.
São dois princípios básicos que creio que infrigimos e não deixaram boas lembranças para os haitianos. Acho que perdemos uma aura que tínhamos no Haiti, de simpatia, junto a população, junto aos movimentos de esquerda e aos nacionalista com essa missão que participamos.
Quais são as responsabilidades que ainda precisam ser cumpridas em relação a esse episódio, no caso da ONU, e também enquanto Brasil? Qual seria o papel das nossas Forças Armadas, necessidade de reflexões nossas, brasileiros, sobre essa atuação?
A nossa primeira responsabilidade é falar a verdade. Reconhecer que efetivamente houve isso, por ação e omissão. Que agimos mal nesse período, fomos coniventes, nos silenciamos, participamos da Lei da Omerttá. O povo haitiano e o povo brasileiro têm direito de saber. Em segundo, é fazer com que essas Operações de Paz não estejam acima do direito, temos que ter uma formulação jurídica que enquadre os militares armados em Operações de Paz. Não é porque eles são enviados pelas Nações Unidas que têm total autonomia.
Eu cito, no livro, três documentos internos na ONU sobre as Operações de Paz. Nada mais. Nenhuma convenção internacional que defina como as tropas devem se comportar. Não existe isso. Não há nenhuma declaração das Nações Unidas que possa ser cobrada.
Então há o que eu chamo de limbo jurídico para as Operações de Paz. Não podemos admitir que depois da Guerra da Criméia, 1870, quando houve a criação do Direito da Guerra, proteger os feridos, os prisioneiros, a não tortura, proteger a população civil, todo esse arsenal que foi construído em quase dois séculos de proteção aos combatentes e aos efeitos dos combates, seja jogado fora. Não seja considerado nas operações.
"Ah, mas estamos em uma operação de paz". A estamos impondo, por meio de armas, inclusive com armas ofensivas. Há o que eu chamaria de um buraco negro jurídico em torno das Operações de Paz. Seria muito importante que os juristas, aqueles que trabalham com os Direitos Humanos, direito humanitário, internacional, de guerra, se voltasse a isso e exigisse que tivéssemos uma carta de obrigações dos soltados em Operações de Paz.
Finalmente, foi uma experiência para o Brasil que começou de forma eufórica e terminou de forma trágica. Essa é a experiência da Minustah. E eu espero que os militares, muitos militares que se referem ao Haiti, à experiencia haitiana, como se fosse um pós-doutorado que tivessem feito lá fora, reflitam sobre os limites, sobre as limitações, sobre os aspectos absolutamente negativos.
Quando fazemos as contas, enviamos soldados para proteger a população civil no Haiti, provocamos uma situação que hoje, social, econômica e politicamente, é pior. Além disso, houve 50 mil mortes civis de inocentes. Essa é a marca registrada, para mim, da operação da Minustah do Haiti. Não temos porque nos vangloriarmos disso.
Temos que fazer uma análise e levar, como em dado momento, a presidente Dilma e o Antonio Patriota levaram essa discussão pro Conselho de Segurança. Não somente sobre a responsabilidade de proteger, mas houve uma proposta brasileira sobre a responsabilidade ao proteger. Isso não foi levado em consideração pelos outros membros do Conselho. Houve somente uma discussão informal sobre isso.
Mas eu creio que o governo brasileiro, qualquer governo, deveria insistir. Voltar a esse ponto fundamental sobre a responsabilidade ao proteger. Quais são os caminhos, os limites, os objetivos. Qual o enquadramento jurídico. Não podemos ter a carta branca que temos hoje.
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