As bibliotecas de minha infância e adolescência
Paulo Roberto de Almeida
Quando não se tem livros em casa, o jeito é buscá-los em bibliotecas. Em livrarias, também, se você tem dinheiro, mas em bibliotecas públicas se você não o tem, nem a sua família.
Foi o que sempre eu fiz, durante toda a vida. Um dia vou falar de todas as bibliotecas, livrarias, sebos que visitei, mas hoje vou ficar com as minhas primeiras leituras nas bibliotecas de minha infância e adolescência.
Começou com a que estava mais próxima de casa, e nisso fui um privilegiado: a Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank (não tinha a menor ideia de quem fosse) ficava um quarteirão apenas, numa rua tranquila, num bairro então periférico de SP, o Itaim Bibi, quase sem asfalto, com muitos terrenos baldios, onde se podia jogar futebol, com algum esforço, ou brincar de esconde-esconde, nos terrenos com mato. Ou então brincar de taco na rua, pois quase não passavam carros, inclusive porque ela terminava por uma pequena ponte de madeira, que se atravessava a pé, pois nem carroça cabia ali.
Confesso que eu não era seduzido por nenhuma dessas atividades: depois do parque infantil, eu comecei a “frequentar” a biblioteca, mesmo dois ou três anos antes de aprender a ler, na “tardia” idade de sete anos (que é quando começavam os quatro anos do ensino primário, o único obrigatório em meados dos anos 1950).
Vindo de avós perfeitamente analfabetos, e de pais que sequer haviam concluído o curso primário, não se poderia esperar que eu tivesse livros em casa ou que fosse estimulado a ler.
Assim, eu ia à biblioteca essencialmente para jogar, o que fazia sempre, ou para assistir filmes, uma vez por semana, quarta ou quinta-feira de tarde. Lembro-me de Oscarito e Grande Otelo, Tarzan, Roy Rogers, Zorro, Hopalong Cassidy, Os Três Patetas, O Gordo e o Magro, e outros filmes do gênero. Quanto aos brinquedos eram muito simples: palitos, dominó, dados e tabuleiro, depois damas, pois xadrez veio bem mais tarde. Havia também revistas infantis, que eu seguia apenas pelos desenhos, pois ainda demorou dois anos para ser apresentado ao difícil mundo das letras.
Mas eu já tinha um imenso respeito pelas letras e pela cultura escrita, provavelmente por me ver cercado de livros, de todos os tipos e tamanhos, que eu folheava pelas ilustrações. Lembro-me de quando minha mãe, Dona Laura, me anunciou solenemente que eu iria para a escola, pois eu já tinha feito sete anos, e o uniforme estava comprado — muita roupa lavada para fora ele custou —, eu respondi que não queria ir. Como assim!?!? Não posso, obtemperei (um verbo que obviamente não estava em meu vocabulário). Como não pode?!?! Tem de ir!
Não posso, continuei.
Mas por que?!?!
Eu não sei ler, confessei, com vergonha, a única desculpa que eu podia dar.
Não sei como a coisa se arranjou, mas lá fui eu para o primeiro ano do primário, no Grupo Escolar Aristides de Castro. Creio que me sai muito bem, com meu caderno de caligrafia e algum livro do tipo Ivo Viu a Uva. Dona Iracema — que não tinha nada de “virgem dos lábios de mel”, como vim a ler mais tarde, e sim era uma gordinha baixinha, moreninha e severa — deve ter sido muito eficiente, pois em pouco tempo eu estava de volta à Biblioteca, com todo um imenso universo à minha disposição.
Foi uma festa: comecei pelas revistas em quadrinhos: Pato Donald, Bolão e Rocambole, os Sobrinhos do Capitão, mas logo fui para literatura “pesada”: Monteiro Lobato, que foi provavelmente minha maior influência nos anos iniciais de formação. Devo ter lido tudo, ou quase tudo, da sua literatura infantil, desprezando durante anos sua obra adulta, que só vim a ler, erraticamente, muitos anos depois. O mundo grego, com seus heróis mitológicos, foi o que mais me fascinou.
Mas aí eu já tinha praticamente “liquidado” quase tudo o que me parecia interessante, inclusive, muito cedo, o História do Mundo para as Crianças, que li muitas vezes. Não lia só na Biblioteca, mas retirava livros para ler em casa, na cama, a contra luz, antes que minha mãe apagasse as luzes, para economizar. Não me lembro de estantes, na infância, e os livros ficavam no criado-mudo ou mesmo no chão. Acho que esgotei as possibilidades da Anne Frank, e antes mesmo de começar a trabalhar no Centro da cidade, já tinha conhecido a Mário de Andrade, que passei a frequentar na primeira adolescência, quando me tornei office-boy numa grande empresa da Rua Boa Vista.
Foi outro universo que se abriu para mim: aproveitava as saídas para descontar cheques ou pagar contas nos bancos do centro para rápidas incursões na Mário de Andrade, na da Faculdade de Direito do Largo de S. Francisco e também na Livraria Brasiliense da Barão de Itapetininga. Mais tarde aprendi a ir na Biblioteca da Usia, no Consulado Americano — que então ficava no segundo andar do Conjunto Nacional da Avenida Paulista —, na do UCBEU, União Cultural Brasil-Estados Unidos, na da Confederação do Comércio, embaixo do Viaduto do Chá, assim como entrava em todas as livrarias conhecidas: uma delas era a Zahar, da Praça da República, e mais tarde ainda a da Alliance Française, na mesma Barão de Itapetininga.
Posso me lembrar dos vários livros que eu lia (e quando podia retirava) em cada uma delas, mas é uma lista muito grande, que deixo para relatar mais adiante. O que sim posso dizer, genericamente, é que eu passei a ler obras universitárias vários anos de ingressar na universidade, mais ou menos a partir de doze a catorze anos, quando me politizei precocemente, por obra e graça das crises políticas dos anos Jânio-Goulart e do golpe militar de 1964. Passei a ler Caio Prado e Celso Furtado, Marx e Engels e tudo o que me parecia interessante para entender o Brasil efervescente dos anos 1960.
Só no final da década, com o endurecimento do regime, e a aposentadoria compulsória ou cassação daqueles que seriam meus mestres nas Ciências Sociais da USP — cujos livros eu já conhecia em grande parte —, foi que decidi sair do país para estudar fora. Fui embora, mas não deixei de arrastar alguns livros e cadernos de notas comigo.
Não sabia que passaria sete longos anos de autoexílio na Europa, grande parte dos quais escondido ou refugiado em bibliotecas e livrarias. Mas essa é uma história que eu contarei depois.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28/09/2020
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