Política externa e diplomacia brasileira: notas para uma entrevista
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
[Objetivo: Entrevista a editorialista; finalidade: apoiar gravação de programa]
Questões:
1) A política externa brasileira é tema pouco comentado no Brasil. Tudo se passa como se esse fosse um assunto que deveria envolver apenas os diplomatas de carreira e os setores econômicos quer têm óbvios interesses no comércio internacional. Por isso, esse é o tema do nosso programa. Além de sua vasta experiência na área o senhor é um estudioso do tema. Qual a sua visão sobre a política externa que vem sendo praticada no governo Bolsonaro?
Respostas:
PRA: Trata-se da maior e da mais nefasta ruptura com os padrões tradicionais da política externa brasileira nos últimos 200 anos. Digo maior porque o distanciamento em relação à postura histórica da diplomacia brasileira, de busca de autonomia na formulação e implementação dos interesses nacionais em total independência, é radical, praticamente total, e isso se prende ao segundo qualificativo, nefasta, na medida em que a política externa brasileira se tornou caudatária dos interesses do governo Trump, dos Estados Unidos, e de um grupo restrito de ideólogos da extrema-direita americana. Uma das características desse grupo é o antimultilateralismo, que eles classificam de antiglobalismo, o que representa uma outra característica absurda nas condições das relações internacionais contemporâneas. O multilateralismo político, econômico, em todas as vertentes, é a principal forma, método, instrumento, pelo qual se exercem as relações internacionais na atualidade, desde a ONU.
2) Todos somos testemunhas do alinhamento automático do governo brasileiro às posições sustentadas pelo presidente Donald Trump. Esse tipo de postura pode ajudar o Brasil de alguma maneira, ou, pelo contrário, pode ser prejudicial aos interesses nacionais?
PRA: Trata-se de um absurdo tão grande que parece inacreditável que os setores que vêm sendo prejudicados por esse servilismo abjeto em relação aos desejos, não dos Estados Unidos, mas do presidente Trump, não estão se articulando contrariamente às atitudes tomadas pela diplomacia caudatária. Existem muitos exemplos e eu só me refiro a alguns: 1) aceitação, logo no dia da posse, 1/01/2019, de uma base militar americana no Brasil, o que teve de ser imediatamente rechaçado pelos militares do governo; 2) adoção da postura eleitoreira de Trump em relação à Venezuela, o que acaba de levar o Senador Telmário Mota, de Roraima, a solicitar o impeachment do chanceler Ernesto Araújo, ou pelo menos o início de um processo de crime de responsabilidade, com respeito aos prejuízos que vem causando ao seu estado; 3) adoção de uma postura complacente em relação às salvaguardas abusivas e ilegais contra as exportações de aço e alumínio brasileiro aos EUA, o que se verificou no caso de diversos outros países também; houve redução quantitativa do volume de aço exportado, o que é ilegal pelas regras do Gatt, e imposição de sobretaxa de 15% no caso do alumínio; agora Trump aumentou ainda mais as restrições quantitativas ao aço brasileiro, em volumes absurdos, sempre para proteger velhas indústrias americanas; 3) aceitação pela chancelaria brasileira do inaceitável “Plano de Paz” de Trump para a Palestina, que aceitava o projeto de Netanyahu de incorporação da Cisjordânia ocupado ao território israelense, o que não foi aceito por nenhum aliado americano da OTAN, e que o próprio primeiro ministro israelense abandonou agora, ao estabelecer relações com os Emirados Árabes e Bahrein; 4) alinhamento com os EUA e Israel na recusa de uma resolução da AGNU que condena sanções unilaterais, o que significa que o Brasil aceita, já por decisão própria, qualquer sanção unilateral que os EUA queiram impor CONTRA o Brasil; 4) Importação privilegiada de trigo e de etanol americano para o Brasil, contra os interesses da Argentina e contra os interesses dos próprios produtores nacionais de etanol, tudo isso para ajudar eleitoralmente Trump, que necessita dos votos dos eleitores do setor agrícola americano; 5) suspensão e postergação do leilão brasileiro sobre o 5G, por pressão, e até chantagem americana contra a Huawei, como se os EUA não estivessem espionando o Brasil e outros países o tempo todo. Todos esses exemplos representam PREJUÍZOS enormes ao Brasil e às empresas nacionais.
3) Examinando o alinhamento com os EUA, emerge com força, também, a posição do Brasil diante da China. Várias já foram as manifestações do governo, desde o presidente, passando pelo chanceler e chegando até a declarações de um dos filhos do presidente, que tiveram um caráter claramente hostil à China. Qual o significado disso para o Brasil?
PRA: Sim, as posições não são do Brasil, e sim de personagens absolutamente ignorantes em TODOS os temas de relações internacionais em geral, e de comércio internacional em particular. Eles provavelmente ignoram que a maior relação comercial e financeira que existe no mundo é justamente aquela entre as duas maiores economias planetárias, a dos EUA e a da China, que entretêm entre si os maiores fluxos comerciais e financeiros do planeta, e isso a despeito das restrições irracionais, do ponto de vista dos interesses das empresas e dos consumidores americanos, que vêm sendo introduzidas desde 2017 por Trump. Grande parte do imenso saldo comercial favorável à China no comércio bilateral – que é amplamente compensado por exportações de serviços e sobretudo por rendas de capital, isto é, investimentos que as empresas americanas mantêm no exterior – é investido em títulos do Tesouro americano, ou seja, financiando generosamente, porque a juros baixos, a dívida pública americana.
Do ponto de vista do Brasil, nem é preciso recordar que a China é desde mais de dez anos o principal parceiro comercial do Brasil, não só representando o DOBRO do que fazem EUA e União Europeia com o Brasil, mas sobretudo nos beneficiando com um enorme saldo comercial, ao passo que os EUA mantêm um superávit e isso desde mais de 20 anos. A China já é o principal parceiro comerciais de vários países da AL e de outros continentes, ainda que essa relação seja geralmente assimétrica, ou seja, a China é uma grande importadora de produtos básicos desses países, commodities agrícolas, minerais e petróleo, e uma grande exportadora de produtos manufaturados, alguns de alta tecnologia. Esses mesmos ignorantes da família Bolsonaro ignoram, provavelmente, que a China é a maior economia de mercado do planeta, em bases capitalistas. Eles confundem o domínio político do Partido Comunista sobre o governo chinês com a estrutura básica da economia da China, que é essencialmente capitalista. Além do preconceito anacrônico contra o comunismo, como se a China quisesse, por acaso, exportar o seu regime político para o resto do mundo, parecem ignorar também que a China é praticamente a salvação da lavoura, pois se não fosse o saldo superavitário com a China na balança comercial bilateral a nossa balança de transações correntes seria altamente deficitária, e o balanço de pagamentos do Brasil não suportaria muito tempo de desequilíbrio: já estaríamos sendo obrigados a ir para o FMI, como ocorreu nos anos 80, 90 e parte de 2000.
4) O Brasil está em um caminho de isolamento crescente na esfera internacional? Pode-se dizer isso também com relação à América Latina, tendo presente o caso emblemático das hostilidades com relação à Argentina?
PRA: Pelas posturas do presidente Bolsonaro no plano estritamente interno – postura claramente antidemocrática, desprezo pelos direitos humanos, ataques a jornalistas e à própria democracia, e sobretudo um ânimo propriamente destruidor em relação ao meio ambiente – , o Brasil já se tornou um pária internacional. Infelizmente, o Brasil também já foi arrastado para essa mesma imagem no plano externo pela suas posições bizarras, exóticas e até contrárias ao multilateralismo no campo das relações internacionais, o que vem sendo propagado por seu chanceler tutelado e controlado pela família e por aquele guru expatriado.
Sempre fomos, mesmo sem proclamar, uma espécie de líder natural na América do Sul – AL é um pouco vaga demais e tem o México, que possui grande liderança na América Central e no Caribe –, pelo nosso tamanho, pela economia, pelas iniciativas em matéria de integração, mas sobretudo pelas posições equilibradas de nossa diplomacia, sempre moderada e favorável ao estrito respeito do direito internacional, sem adentrar em querelas ideológicas. Tal postura foi moderadamente afetada pela diplomacia lulopetista, que mantinha uma posição favorável às ditaduras mais execráveis da região, a começar por Cuba e pela Venezuela chavista; Lula também interferiu na política interna de países vizinhos, invariavelmente para apoiar candidatos esquerdistas, o que vai contra nossas tradições e até os princípios constitucionais de relações internacionais, que estipulam não intervenção nos assuntos internos de outros Estados.
Bolsonaro, nesse particular, foi muito além de Lula, pois começou a atacar o então candidato peronista nas primárias argentinas, em maio do ano passado, e continuou essa hostilização gratuita contra o presidente eleito, o que impediu até hoje um encontro bilateral. Mais importante: não existe diálogo entre os dois países, o que inviabiliza qualquer reforma que se pretenda fazer no Mercosul, coordenar posições para novas negociações comerciais, ou quaisquer outras iniciativas conjuntas no plano regional e internacional. Tudo isso tomou a forma de ruptura definitiva do Brasil com respeito à Argentina e a maior parte da região depois que a diplomacia bolsolavista assumiu uma postura completamente subserviente em relação aos interesses pessoais do presidente Trump e os dos EUA de maneira geral. Um dos exemplos mais estarrecedores desse servilismo sabujo do Brasil em relação ao Trump é nossa inacreditável renúncia em assumir a presidência do Banco Interamericano, que seria nossa de direito, e aceitar, sem qualquer contestação, o candidato americano, o que contraria frontalmente um acordo feito entre os países latino-americanos e os EUA em 1960, quando foi criado o Banco, no qual a vice-presidência seria americana, mas a presidência caberia alternativamente a representantes da região. Ora, o Brasil aceitou sem contestar o candidato de Trump, sem qualquer coordenação com os demais países, o que levou outros três grandes países da região, Argentina, Chile e México, a votarem contra essa candidatura. Isso significa simplesmente o rompimento do Brasil com a maior parte da América Latina.
5) Pensando nos interesses brasileiros, o que está em jogo no caso da tecnologia 5G? O que o Brasil terá que decidir neste tema e como o governo federal está tratando desse tema?
PRA: Pelo que já se conhece das capacidades e possibilidades da plataforma 5G em termos de indústria 4.0 (ou além), de internet das coisas, de transformação radical em diferentes áreas do setor produtivo, na área médica, em transportes e comunicações, em dezenas de outros domínios da vida em sociedade, de controle e interação de comandos, de detecção precoce e visualização de dinâmicas e movimentos em diferentes áreas em escala macro e micro, não existem dúvidas de que representa uma verdadeira revolução no mundo tal como o conhecemos hoje. Não existem limites, praticamente, à sua aplicação em todas as facetas da atividade humana, organizacional, no setor público e no privado. O Brasil, portanto, não pode ficar ausente dessa próxima revolução tecnológica, mas não apenas tecnológica, e sim cultural e civilizacional, ou civilizatória. Essa plataforma tem, por consequência, implicações geopolíticas enormes, para países envolvidos, direta ou indiretamente, em alguma disputa hegemônica mundial e promete trazer a mais gigantesca transformação dos conceitos que presidem nossa forma de trabalhar e de nos comunicarmos desde o surgimento da internet (aliás, em parte resultante de pesquisas militares aplicadas).
Desta vez, os progressos serão trazidos basicamente por empresas privadas, mas os Estados, ou governos, em todos os países, possuem uma grande capacidade de interferência, para o bem e para o mal, na implementação, no uso e no controle dessa tecnologia, em função de seu poder regulatório. Mas, a maior parte dos provedores de plataformas de comunicação são empresas privadas, embora os governos paranoicos – como são todas as grandes potências – as cerquem de todos os “cuidados” tecnológicos e estratégicos.
Concretamente, estamos falando de uma batalha tecnológica, no meio de uma guerra econômica e comercial deslanchada pelos americanos – em especial, os generais paranoicos do Pentágono e, com maior fúria ainda, o presidente Trump – contra os chineses, e isso por uma razão muito simples: as empresas americanas se atrasaram no domínio da tecnologia 5G, ao passo que a Huawei chinesa deu saltos gigantescos nesse terreno, ao lado de duas outras empresas europeias, a Nokia finlandesa e a Ericsson sueca. Por diferentes motivos, os EUA estão buscando impedir os países de adotarem, em seus padrões normativos e regulatórios a tecnologia que já está sendo fornecida pela Huawei, e o fazem pelos mais diferentes tipos de pressão e de chantagem, como já vêm fazendo contra o Brasil. Concretamente, o governo federal não precisaria fazer nada, apenas deixar a Anatel decidir a adoção dessa tecnologia em bases puramente técnicas, para que ela pudesse ser licenciada pelas empresas para uso em várias esferas. Para tal haverá um leilão sobre o padrão a ser implementado, como foi o caso, no passado, do padrão corrente alternada e 60 Hertz, redes de telefonia e, mais recentemente, o padrão de televisão digital.
O governo americano já teve algum sucesso ao convencer Boris Johnson, do Reino Unido, para afastar a Huawei do fornecimento de equipamento eletrônico do 5G das compras no seu país. Está tentando fazer o mesmo com o Brasil, e o pior é que é com a colaboração da família Bolsonaro e do chanceler acidental. Uma verdadeira chantagem, contra os interesses mais concretos da economia brasileira e da liberdade que deveriam ter as suas empresas de adotarem o padrão que lhes for mais conveniente. Já tivemos pronunciamentos de membros da família presidencial e do chancelar servil aos interesses dos EUA se posicionando contra a participação da Huawei no leilão, que já poderia ter sido realizado este ano, mas que foi postergado para 2021. Trata-se de uma violência extrema contra a economia brasileira e de uma traição aos interesses nacionais no sentido mais completo do termo.
6) Na sua visita a Davos, em janeiro de 2019, o presidente Bolsonaro se encontrou nos EUA com Al Gore, momento em que este expressou sua preocupação com a Amazônia. Em sua resposta, Bolsonaro disse que a Amazônia tem muitas riquezas e que ele gostaria que os EUA o ajudassem a explorar essas riquezas. O que uma resposta desse tipo acarreta, na opinião pública mundial ou, em outras palavras, qual a importância dos temas ambientais, destacadamente da Floresta Amazônica?
PRA: Essa conversa informal em Davos, entre o presidente Bolsonaro, na ocasião acompanhado apenas de um intérprete e do chanceler acidental, e o ex-vice-presidente americano Al Gore, e candidato nas eleições de 2000 contra Bush filho, e conhecido ativista de causas ambientais, é algo surrealista, e revelador de como o presidente brasileiro tem uma ideia precária das questões ambientais e do papel de Al Gore nesse terreno. Ele começou por uma mentira, quando Gore mencionou que tinha conhecido Alfredo Sirkis, conhecido militante das causas ambientais, mas que esteve associado à luta armada no final dos anos 1960 e início dos 70, contra a ditadura militar. Bolsonaro lhe disse que tinha lutado contra Sirkis, o que é simplesmente uma mentira. Depois, ao Gore mencionar sua preocupação com a Amazônia, Bolsonaro lhe disse que gostaria de “explorar as riquezas da Amazônia” com ele, o que foi um completo desvario; talvez o presidente brasileiro tenha confundido Gore com algum investidor estrangeiro ávido por explorar as fabulosas riqueza da Amazônia, que ele se dispõe a colocar a ferro e a fogo para realizar seu intento destruidor na região.
Não espanta, assim, que o mundo está começando a conhecer uma grande campanha negativa, sob o slogan “Bolsonaro ou Amazônia”, que tem o potencial de acarretar imensas perdas concretas para o agronegócio brasileiro e, consequentemente, para diversos outros setores associados ao comércio exterior brasileiro. O presidente Bolsonaro, ao se tornar no vilão da hora no terreno ambiental, pode estar provocando um boicote monumental contra produtos brasileiros nos mercados internacionais.
7) Quais as repercussões internacionais da postura do governo brasileiro na pandemia da COVID? Como se pode pensar, por exemplo, as relações do Brasil com a OMS depois da postura negacionista sustentada pelo presidente?
PRA: O conhecido cientista político Oliver Stuenkel cunhou a expressão “aliança dos avestruzes”, para identificar todos os dirigentes que continuaram insistindo, em plena pandemia, de que se tratava apenas de uma “gripezinha” – como afirmou o presidente brasileiro –, podendo ser tratada por métodos rudimentares. O próprio presidente Trump poderia ter sido incluído nessa bizarra coalizão, se não tivesse recuado a tempo, ao ouvir seus conselheiros científicos, e pelo menos recuar um pouco de sua atitude arrogante anterior, ao recomendar cloroquina ou desinfetante como remédios eficazes. Como se sabe o presidente brasileiro continua insistindo em sua postura negacionista, para espanto e horror da comunidade de cientistas brasileiros e do resto do mundo.
Recentemente, a revista científica de humor, Annals of Improbable Research (https://www.improbable.com), anunciou, em 17 de setembro, o 30º. Prêmio Ig Nobel, que consiste em premiar as mais inúteis e absurdas pesquisas feitas até por cientistas aparentemente sérios, nos diversos ramos da pesquisa científica. Na área da educação médica, reproduzo o prêmio do ano de 2020:
Medical Education: Jair Bolsonaro of Brazil, Boris Johnson of the United Kingdom, Narendra Modi of India, Andrés Manuel López Obrador of Mexico, Alexander Lukashenko of Belarus, Donald Trump of the USA, Recep Tayyip Erdogan of Turkey, Vladimir Putin of Russia, and Gurbanguly Berdimuhamedow of Turkmenistan, for using the Covid-19 viral pandemic to teach the world that politicians can have a more immediate effect on life and death than scientists and doctors can.
Traduzo a parte final: “… por usarem a pandemia viral Covid-19 para ensinar ao mundo que políticos podem ter um efeito mais imediato sobre a vida e a morte do que o conseguem cientistas e médicos.”
Ou seja, o presidente Bolsonaro vem expondo o Brasil ao ridículo universal com sua atitude negacionista, sem mencionar todas as suas atitudes que já converteram o país em pária internacional, e, com a colaboração do seu chanceler acidental, já rebaixaram tremendamente a imagem do Brasil no cenário internacional.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3576, 17 de setembro de 2020
Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44111524/3756_Politica_externa_e_diplomacia_brasileira_notas_para_uma_entrevista_2020_)
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