A Funag, o IPRI e o compromisso com o sentido de seus mandatos
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
Divulgado na plataforma Academia.edu (link:https://www.academia.edu/44062729/A_Funag_o_IPRI_e_o_compromisso_com_o_sentido_de_seus_mandatos_2020_).
Em agosto de 2016, depois de treze anos e meio – na verdade, um pouco mais, pois em 1999 tinha sido removido para a embaixada em Washington – afastado de qualquer cargo na Secretaria de Estado, pude finalmente, e graças ao impeachment de Dona Dilma, voltar a colocar a minha força de trabalho a serviço do Itamaraty em Brasília. No início de 2003, eu havia sido convidado pelo Diretor do Instituto Rio Branco para dirigir o programa de mestrado da academia diplomática, iniciado em 2001, do qual eu já era professor-orientador. Aceitei com prazer, apenas para ser vetado imediatamente pelos novos “donos do poder” na chancelaria, provavelmente por artigos que eu publicara, ainda nos anos 1990, com críticas à “política externa” do PT, um típico partido esquerdista latino-americano, como eu dizia.
Depois de dois anos e meio no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, onde esforcei-me por reduzir as pretensões grandiosas do novo regime a um número bem mais reduzido de políticas públicas fundamentais – todas na área da educação –, voltei ao Itamaraty, apenas para ver o mesmo veto renovado nos anos seguintes: passei pelo menos quatro anos da Biblioteca do Itamaraty, lendo e escrevendo, ganhando modestamente e viajando um pouco, a convite de alunos e professores, para falar sobre política externa e relações internacionais do Brasil pelo Brasil afora. Em 2010, já no final do período Lula, fui designado para uma missão transitória no Consulado em Xangai, mas para trabalhar no pavilhão do Brasil durante a Exposição Universal realizado naquela cidade durante 6 meses.
Mais um ano sem funções no Itamaraty, e aceitei um convite para ser professor visitante no Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine, junto à Sorbonne, em Paris, onde estive no primeiro semestre de 2012. De novo, sem funções na SERE, acabei aceitando, numa espécie de compensação por falta de espaço no Brasil, o cargo de cônsul adjunto em Hartford, Connecticut, uma experiência bastante positiva do início de 2013 ao final de 2015. Novamente de volta a Brasília, fiquei no meu habitat natural da Biblioteca, até que o drama do impeachment me levou de volta ao trabalho regular na SERE, desta vez como Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), o think tank da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), o que me permitiu um enorme programa de atividades, cujo resumo pode ser encontrado em meu relatório final de funções (que eu já suspeitava que estavam próximas), no Natal de 2018:
“Relatório de Atividades como Diretor do IPRI de 2016 a 2018”, Brasília, 24 dezembro 2018, 27 p. Disponibilizado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/e66d6c1639/relatorio-do-ipri-diretor-paulo-roberto-de-almeida-2016-2018).
Na verdade, não consegui fazer tudo o que pretendia no ano de 2018, seja por carência de recursos – o IPRI não tem personalidade jurídica, não tem orçamento próprio, nem autonomia administrativa –, seja por falta de apoio em outras esferas. O relatório acima indica o que efetivamente foi realizado, mas como eu sempre anoto em meus cadernos os planos e registros de reuniões mantidas, consulto agora o que anotei no princípio daquele ano como intenção de realizações:
Várias das atividades tinham a ver com datas-aniversário, os 70 anos da conferência de Havana (que criou uma primeira OMC, nunca implementada), do surgimento da OEA, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os 60 anos da Operação Pan-Americana, que resultou na criação do BID, assim como diferentes outras iniciativas que eu esperava concretizar em colaboração com associados brasileiros e mais frequentemente estrangeiros, uma vez que minha intenção era colocar o IPRI nos radares internacionais. Uma atividade que eu pensava realizar eram debates sobre temas de política externa em eleições presidenciais, e não apenas no Brasil, mas isso também foi cortado. Enfim, realizei muita coisa e convido a uma leitura do relatório completo, para uma verificação do que foi possível fazer, quase sem recursos, com base nos esforços de colegas como Marco Tulio Scarpelli Cabral, Antonio de Moraes Mesplé e colaboradores como Rogério Farias e Rafael Pavão.
Por que menciono isto agora?
Porque, como muitos outros colegas, e certamente não colegas também, estamos propriamente estupefatos com o que vem ocorrendo na Funag, e isso desde praticamente o início de 2019. Um reflexo das loucuras em curso já foi reproduzido na imprensa numa matéria recente, “Fundação do Itamaraty vira aparelho de guerra cultural bolsonarista”,que pode ser lido na postagem original (https://brpolitico.com.br/noticias/fundacao-do-itamaraty-vira-aparelho-de-guerra-cultural-bolsonarista/) e que postei igualmente em meu blog (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/fundacao-do-itamaraty-vira-aparelho-de.html).
A Funag foi criada por uma lei em 1971 com atribuições bastante precisas, como uma espécie de think tank da diplomacia brasileira. O IPRI foi instituido em 1987 para realizar interações com acadêmicos dedicados ao estudo das relações internacionais do Brasil e no mundo. A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) foi instituída por meio do Decreto n. 69.553, de 18/11/1971. Sua criação foi autorizada pela Lei no. 5.717, de 26/10/1971, sendo seus objetivos básicos (art. 1º):
I – Realizar e promover atividades culturais e pedagógicas no campo das relações internacionais;
II – Realizar e promover estudos e pesquisas sobre problemas atinentes às relações internacionais;
III – Divulgar a política externa brasileira em seus aspectos gerais;
IV – Contribuir para a formação no Brasil de uma opinião pública sensível aos problemas de convivência internacional;
V – Outras atividades compatíveis com as suas finalidades e estatutos.
O IPRI, por sua vez, tem por finalidades:
- Desenvolver e divulgar estudos e pesquisas sobre temas atinentes às relações internacionais;
- Promover a coleta e a sistematização de documentos relativos a seu campo de atuação;
- Fomentar o intercâmbio científico com instituições congêneres nacionais e estrangeiras;
- Realizar cursos, conferências, seminários e congressos na área de relações internacionais.
Através dessas atividades, o IPRI trabalha para a ampliação e o aprofundamento dos canais de diálogo entre o Ministério das Relações Exteriores e a comunidade acadêmica sobre temas de interesse para a política externa brasileira, e foi este o sentido que eu procurei imprimir à minha gestão, como se pode verificar pelo relatório geral acima referido.
Nenhuma dessas duas instituições parecem se amoldar à atual guerra cultural olavo-bolsonarista, que vem sendo conduzida desde 2019. Ambas instituições foram terrivelmente deformadas, diminuídas, amordaçadas pelos seus atuais dirigentes, o que justificaria um procedimento investigatório dos órgãos de controle, quanto à questão de saber se elas estão realmente cumprindo suas funções estatutárias.
Finalizando, permito-me reproduzir o último parágrafo da matéria acima assinalada, de autoria da jornalista Vera Magalhães, do jornal O Estado de S. Paulo:
“Fica evidente o uso político de uma fundação que deveria fomentar o pensamento plural, ser representativa da tradição diplomática do Itamaraty e debater doutrinas, ideias e teses respaldadas em evidências e na ciência, e não pura pregação ideológica com base em teorias da conspiração, narrativas vazias e negacionismo científico.”
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3751, 10 de setembro de 2020
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