Desinformação e fanatismo na era da superabundância de informação
O excesso de informação disponível pode ter um efeito diferente do que se espera (Foto: YTUZ/Unsplash)
Por muito tempo acreditamos que o acesso à informação seria uma coisa extremamente boa para o conhecimento e o debate políticos. Os iluministas nos fizeram acreditar nisto. Como o fanatismo político do passado era em parte resultado da ignorância das populações, quanto mais informações as pessoas tivessem, acreditávamos, mais inteligentes elas seriam e, portanto, seriam mais prudentes, mais tolerantes, mais certas das suas incertezas, menos dogmáticas. Além disso, quanto mais fontes de informações as pessoas tivessem à disposição, mais complexas se tornariam suas ideias e discussões, mais amplas as suas visões de mundo, menos afeitas a paixões cegas e à parcialidade.
Qual o quê?
Parafraseando Walter Lippmann (Public Opinion, 1922) – que há um século fez uma devastadora crítica da democracia por achar que a opinião pública era um produto de valor baixo demais para que pudesse sustentar dignamente um regime político qualificado -, quando as pessoas buscam informação política, frequentemente não estão procurando a verdade, o esclarecimento mútuo, cooperação das outras pessoas para compreender a complexidade do mundo. Não, na verdade, elas estão amiúde buscando confirmar os estereótipos, quer dizer, as simplificações do mundo que já adotam, reforçar os seus pré-conceitos. Eu diria mais, estão buscando informação para, com mais frequência do seria razoável esperar, satisfazer as suas angústias ao mesmo tempo políticas e existenciais. Muito pouco a ver com verdade, conhecimento, esclarecimento.
Com efeito, e para sermos justos, a divisa adotada pelo Iluminismo, o “sapere aude” – tenha a audácia de saber, atreva-se a conhecer, ouse servir-se do seu próprio entendimento – não é um incentivo à busca sôfrega e sem discernimento por informação. É um conselho justamente para evitar o dogmatismo, o conhecimento não devidamente escrutinado pelos nossos próprios recursos intelectuais, sugerindo justamente que o indivíduo assuma como responsável por usar um dos seus maiores recursos, a inteligência a fim de examinar pessoalmente cada ideia transmitida, cada conceito que lhe foi ensinado, cada sentença que a sociedade, a religião ou os mestres lhe passaram como se fosse verdade. Tenha o atrevimento de pensar com a sua própria cabeça, diziam, então.
Lippmann achava que não, que não tem “sapere aude” certo se as pessoas não possuem experiência direta da maioria dos fatos, dependem de informação de segunda ou terceira mão para construir as suas ideias sobre a realidade, e, além disso, não têm formação, discernimento, nem mesmo vocabulário suficiente, para conhecer a complexidade do mundo de forma complexa. Em vez do imperativo “sapere aude”, o imperativo, “simplifica”, use o que você já sabe ou acha que sabe para lidar com a informação nova, não gaste muito tempo com isto.
Cem anos depois de Lippmann, vivemos uma era de abundância de informação e de fontes de informação online, que em vez de superar o fanatismo do passado criou novos fanáticos. A informação não é a água com que apagaríamos o fogo do dogmatismo, mas é a pólvora que a gente lança gostosamente nas chamas do fanatismo. E mesmo grupos que há alguns anos construíam pontes posto que, como minorias, sabiam que precisavam de alianças para sobreviver e prosperar, agora afiam facas, patrulham os seus domínios como vigilantes implacáveis e atacam à menor aparência de provocação das susceptibilidades tribais. Temos, paradoxalmente e ao mesmo tempo, muita informação, variadas fontes de informação, de um lado, e muita treta, muita busca desenfreada por conflito, muita vontade de calar a boca do oponente, de humilhá-lo, expô-lo à fúria pública, puni-lo incessantemente.
A questão-chave sobre informação e democracia estava equivocada, se colocada em termos quantitativos. O fanatismo e o dogmatismo não decorriam simplesmente da falta de informação ou da diversidade de fontes. Tudo depende, na verdade, do que as pessoas decidem fazer com a informação à disposição, usando-a para o esclarecimento, a tolerância e o progresso, ou, ao contrário, para o dogmatismo e como combustível para o autoritarismo ou para o ódio. A informação, portanto, não é instrumento de opressão, de geração conflito, de tentativa de dominação apenas quando é escassa e reservada a poucos. Ela pode ser tudo isso mesmo quando há abundância e quando é segmentada conforme ideologias e interesses.
Infelizmente, em uma sociedade em que temos informação abundante, de todos os tipos, origens e níveis de profundidade, completude e alcance, o que não falta é quem a use para ficar mal-informado ou desinformado. Não, não me refiro às fake news, mas ao uso da informação para paradoxalmente, reforçar a ignorância e o fanatismo. O sujeito iluminista que aprendeu a desconfiar das tradições e das doutrinações como típicas formas de reprodução do dogmatismo, e a usar como método para a verdade a suspensão do julgamento até que pessoalmente examinasse a razões que lhes eram apresentadas, cedeu o passo e o compasso para o cidadão pragmático que busca informações para satisfazer às suas necessidades e vontades. Inclusive necessidades nascidas do pré-conceito e do dogmatismo.
A diversidade de fontes acabou se transformando numa forma de rápida satisfação das várias necessidades cognitivas políticas. A esfera pública brasileira virou isso. Não tem maluquice que não tenha um professor, um pregador online. Se você acredita que o Estado é laico, mas o governo pode ter uma religião, haverá alguém que ensine tal disparate. Do mesmo modo, se você é comunista em 2020 e anda meio por baixo vai encontrar um youtuber que o tranquilize dizendo que Stalin até que nem era um genocida tão ruim assim. Dá arrepios. Para qualquer posição política estúpida, perigosa ou antissocial, haverá online um número suficientemente grande de provedores da informação e das interpretações necessárias para a sua confirmação. Em suma, sempre haverá um Olavão ou de direita ou de esquerda para suprir de informações e interpretações quem precisa de fanatismo político como motor da própria existência.
Claro que há também abundante informação política de qualidade à disposição. Mas as barraquinhas do fast-food político entregam mais rápido e entregam coisas mais gostosas.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
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