Caro ex-aluno, excelente diplomata, agora representante do Brasil junto ao imperador Trump, Nestor Forster,
Escrevo esta carta aberta para, em primeiro lugar, cumprimentá-lo pela conquista do posto diplomático que parecia ser, até pouco tempo atrás, o mais relevante das representações brasileiras no exterior, certamente ambicionado por muitos colegas e até por grandes personalidades de fora da carreira, atualmente, e infelizmente, transformado numa emblemática demonstração de submissão explícita, e vergonhosa, do nosso país a uma potência estrangeira.
Não, não o estou acusando de ser o instrumento involuntário de tal submissão vergonhosa: você é um excelente diplomata de carreira, que soube merecer todas as suas conquistas funcionais e que terá, ao sair algum dia do posto, o seu retrato na galeria dos ex-chefes de missão em Washington. Isso não apagará o fato objetivo de ter servido ao melhor de sua capacidade numa fase provavelmente a mais sombria e humilhante de toda a nossa história diplomática, quando fomos levados, por um presidente totalmente ignaro e despreparado em política internacional, e por um chanceler acidental especialmente inadequado para as funções, a um acúmulo de indignidades diplomáticas jamais visto nos quase duzentos anos de Estado independente.
Você foi um dos meus melhores alunos no curso do Instituto Rio Branco, quando eu era apenas um professor de Sociologia Política, mas que depois se revelou um excelente amigo e companheiro, inclusive nos anos também não convencionais de uma diplomacia ideológica, durante os quais eu atravessei um longo deserto de ostracismo funcional, por ousar expressar minha opinião sobre uma política externa que me parecia inadequada ao Brasil.
Sucedendo-o num posto consular que funcionava de maneira excelente, graças justamente ao seu trabalho e dedicação exemplares, dei testemunho dessa época de nossa política externa não convencional num livro que escrevi naquele que foi meu último posto da carreira: “Nunca Antes na Diplomacia”. Recentemente, a editora que o publicou, solicitou-me preparar uma segunda edição, o que obstei de maneira muito clara, por considerar que o Nunca Antes era exatamente agora, a fase mais medíocre, a mais vergonhosa, a mais indigna de uma trajetória até há pouco julgada exemplar em nossa história diplomática.
Lamento por você, aluno exemplar, diplomata de altas qualidades, ter sido levado a servir num posto tão relevante, num momento tão baixo de nosso prestígio no exterior, justamente devido ao fato de seguir ordens de um presidente e de um chanceler tão medíocres, mas especialmente em razão de uma estúpida, prejudicial e irracional postura de submissão automática deste governo, do nosso país, ao pequeno déspota igualmente medíocre, ainda presidente, dessa grande nação.
Lamento porque você não precisaria, e acho que não deveria, fazer parte de um enredo de absurdos, certamente em descompasso com tudo aquilo que abordávamos em minhas aulas de Sociologia Política no Rio Branco, quando falávamos de Tocqueville, de Max Weber, de Marx, e, mais adiante, em total contradição com o que discutíamos durante os anos da precedente diplomacia ideológica, mas que nem de perto tangenciou o espetáculo de despautérios diplomáticos a que estamos assistindo atualmente.
Caro Nestor: quaisquer que sejam suas convicções políticas e suas crenças religiosas — e você sabe muito bem que eu sou um total irreligioso, mas que mantenho indistintamente diálogos à esquerda e à direita do espectro político —, acredito que, no fundo, você tem plena consciência de que está servindo a um dos piores oportunistas políticos de nossa história, um homem de credenciais comprometidas por um uso vergonhoso das oportunidades que lhe foram oferecidas por um sistema político altamente corrupto, um descrente que faz um uso asquerosamente utilitário de todas as crenças religiosas que se lhe apresentem, um indivíduo capaz de elogiar um torturador condenado pela Justiça e que espezinha indignamente os direitos humanos, que não demonstra qualquer solidariedade em relação aos milhares de mortos já acumulados na pandemia (muitos dos quais podem ter sido levados a óbito por sua atitude desprezível a esse respeito) e que, mais do que tudo, colocou a política externa do Brasil, a nossa diplomacia, a serviço, de forma vil, de um dirigente estrangeiro. Em outras épocas, como você também deve ter consciência disso, nossos militares classificariam tal rastejamento sabujo como de traição à pátria, um crime que em tempos de guerra poderia merecer a pena de morte.
Você também deve ter consciência de que serve a uma contrafação de chanceler que está destruindo não só os fundamentos de nossa diplomacia, como a própria dignidade das funções de representação externa, ao expedir instruções expressas de submissão a tal agenda servil, ao introduzir elementos exóticos, altamente lesivos (quando não ridículos) ao prestígio outrora amealhado pela diplomacia brasileira, como pode ser essa rejeição do multilateralismo, essa adesão idiota ao monstro metafísico de um absurdo antiglobalismo, coisas que só mentes desequilibradas e pervertidas pelas mais canhestras teorias conspiratórias poderiam conceber, enfim um oportunista que se construiu uma personalidade artificial apenas para se colocar a serviço de dirigentes ignaros e despreparados para as altas funções que exercem, para grande infelicidade da nação.
Tudo isso que eu escrevi acima é subjetivo e impressionista, eu sei, mas eu posso lhe fornecer abundantes provas fácticas, materiais, até testemunhais — algumas até de âmbito judicial ou policial — de tudo o que afirmei, pois eu sou um atento observador (e anotador) de tudo o que anda pelo mundo e pelo Brasil, e meus argumentos carregam certo caráter objetivo, a que me obriga a mesma lógica implacável, os registros históricos, os mesmos fundamentos empíricos com os quais eu me exercia nas aulas de Sociologia Política dos nossos saudosos tempos do Rio Branco, quando estávamos recém saindo de uma ditadura militar que me levou a sete longos anos de um autoexílio estudioso na Europa.
Você deve ter consciência de tudo isso, ainda que não possa evidentemente reconhecer, confessar abertamente os equívocos atuais de nossa política externa, a submissão vergonhosa de nossa diplomacia, geograficamente identificada com o exato posto que você ocupa, e se afastar da indignidade que estará fatalmente associada aos tempos sombrios que vivemos.
Mais adiante, alguns anos à frente, poderemos quem sabe retomar o contato e voltar a falar de coisas amenas — Tocqueville, Weber, talvez Marx — ou até tratar do futuro do Brasil, de sua política externa e da nossa diplomacia, que precisarão certamente ser reconstruídas e restauradas em sua qualidade e dignidade anteriores. Estou certo de que você deve ter, como eu, “uma certa ideia do Itamaraty”, que por acaso é o título de meu mais recente livro — livremente disponível em meu blog, que você conhece bem —, o terceiro de uma série que dedico a coisas diplomáticas. Outros virão, com certeza, pois, como você também deve saber, estou mais uma vez dedicado a essas lides da leitura, da observação atenta das coisas do mundo, da reflexão sobre as coisas do nosso país, e finalmente da escrita, sempre com esse espírito crítico que é a marca inexorável desse meu quilombo de resistência intelectual. Você sabe como me encontrar.
No momento, eu lhe desejo um excelente desempenho de suas altas funções e meus sinceros votos de felicidade numa carreira que deve se estender ainda vários anos além da minha. Quando eu era seu professor, estava recém voltando de um doutorado no exterior, modesto segundo secretário numa carreira que me deu muitos momentos de felicidade, justamente ao poder combinar academia e diplomacia, o que eu sempre valorizei, a despeito dos sacrifícios incorridos individualmente e na vida familiar, e de alguns poucos episódios de desgaste funcional ao pretender defender a liberdade de pensamento e de expressão numa corporação que é bem mais feudal do que weberiana (mas, você sabe tudo isso, eu sempre repeti esse meu estereótipo).
Sinta-se realizado na sua nova condição, preserve a independência de espírito, mantenha sua dignidade em momentos certamente difíceis que você viverá, e até algum futuro, mas incerto reencontro.
Do seu colega, ex-professor e amigo
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de setembro de 2020
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