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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Redes sociais e democracia política - Paulo Roberto de Almeida

 Redes sociais e democracia política  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[ObjetivoQuestões para debate onlinefinalidadesubsídios a questões relevantes]

  

Entrevista gravada e reproduzida na plataforma Instagram (24/11/2020; link: https://www.instagram.com/p/CH-cuKQh4mg/).


1- Qual tem sido o impacto do uso das redes sociais sobre a política em um sentido amplo?

PRA: Esse impacto é enorme, descomunal mesmo, em relação às formas anteriores de comunicação política, de conquista de votos, de disputas eleitorais.

Podemos caracterizá-las como uma quarta ou quinta revolução social na missão de conquistar adeptos para suas posições e de galgar assim o poder político. Nas sociedades tradicionais, reinos ou impérios da antiguidade, ou nas sociedades feudais e monarquias absolutas, regimes despóticos em geral, a “propaganda política” é mais bem feita pela força das armas. Nos Estados mais ou menos organizados, passam a existir as coalizões de forças sociais ou personalidades individuais que predominam pela força da palavra e do convencimento, com algum apoio ocasional, ou latente, no poder econômico e militar. A política, a propaganda, o aliciamento de apoiadores são feitos na ágora, na praça pública das cidades-estados da Grécia antiga, no Senado romano, na mobilização dos cortesãos e dos mandarins que sempre circulam em torno do poderoso do momento, até que algum outro se imponha, pacificamente ou pela força. Se trata, portanto, do contato direto dos chefes políticos com súditos ou cidadãos de uma sociedade organizada em estamentos ou classes sociais diferenciadas (sendo os proprietários de terra, os comerciantes, os banqueiros os estratos mais importantes dessas sociedades tradicionais). A comunicação é direta, ou pela via de “cabos eleitorais” primitivos, os assessores dos chefes políticos, dos condottieri.

A primeira revolução social na comunicação política é, evidentemente, a invenção da imprensa, o uso de tipos móveis e dos mecanismos de impressão para reproduzir de forma infinita o que antes era objeto de cópias manuais, trabalhosas, restritas, caras. Ela é concomitante com a expansão da alfabetização e da escolarização, sobretudo nas sociedades protestantes da Europa setentrional, uma vez que a China já estava adiantada nas formas de escrita e disseminação de textos literários e oficiais. A imprensa vai fazer explodir os jornais, os pasquins, os panfletos, os livros, e provocar, pela primeira vez, um amplo debate de ideias, nas ruas e praças, nos cafés, nos parlamentos que se vão instalando com a passagem das monarquias absolutas para regimes constitucionais. Guerras civis e revoluções para a conquista do poder são em grande medida o resultado da disseminação da palavra escrita, e da propaganda política que vem junto. 

Mas é partir da segunda revolução industrial, desde meados do século XIX até o início do XX que se desenvolve uma segunda revolução: as máquinas gráficas movidas a diversas formas de energia, o telégrafo elétrico e depois os cabos submarinos e o telégrafo sem fio, que inaugura a era das grandes tendências políticas organizadas em partidos: liberais, socialistas, anarquistas, conservadores, todos os movimentos se organizam em torno de um jornal, de um periódico, da propaganda ocasional nos debates pré-eleitorais e depois nas tribunas dos parlamentos. O interior recebe as notícias das capitais e se insere igualmente na política, as classes subalternas também se organizam em torno de seus panfletos e jornais. Desde a Revolução francesa, atravessando todas as revoluções democráticas do século XIX, a principal forma de conquista de poder passa a ser a conquista de votos não mais unicamente pelo contato direto, pela arenga pública, mas pela comunicação impressa distribuída aos milhares de exemplares. Grandes jornais e revistas já existem há mais de dois séculos, e continuam ainda a desempenhar um papel relevante na propaganda política. 

A terceira revolução social na comunicação política é a que nasce com a segunda revolução industrial e tem a ver com o telefone e o rádio, este o meio principal, ainda, capaz de alcançar praticamente todos em todos os rincões do país. A televisão virá em seguida e completará essa revolução decisiva na formação das democracias contemporâneas, ao lado dos sempre presentes órgãos da imprensa, independentes ou partidários. Ela ainda é a forma principal de propaganda política nas campanhas eleitorais, mas passou a ceder lugar, desde 20 ou 30 anos, à internet, que serve à comunicação direta entre o candidato e seus eleitores. Até o seu surgimento, os candidatos eram obrigados a mandar imprimir milhares ou milhões de “santinhos” ou mensagens políticas, cartas e panfletos, para distribuição direta nas casas dos eleitores ou envio pelos correios e serviços de entrega. Ela não substituía a arenga direta, os comícios, os palanques, as marchas e visitas dos candidatos nas praças, nos estádios, ou nas casas dos eleitores, nos casos de candidaturas locais. Toneladas de papeis impressos, em preto e branco ou coloridos, jorravam das gráficas a cada dois ou quatro anos, enquanto os candidatos se preparavam para mentir o melhor possível nas rádios e nas redes de televisão. Uma má sorte num debate televisivo jogava o candidato lá atrás nos resultados das urnas.

Tudo isso continuou existindo, mas veio a ser complementado e agora suplantado, talvez diminuído, pela irrupção das redes de comunicação social, que podem ser chamadas de quarta ou mesmo quinta revolução social da comunicação política, pois ela também evoluiu terrivelmente ao longo da última década e meia. O presidente Barack Obama talvez tenha sido o primeiro presidente eleito, e financiado, pelas redes de comunicação social, cuja característica básica, em relação à rádio, jornais e televisão, é a de que elas sejam, na sua essência, descentralizadas. Obama recebeu milhares, milhões de pequenas contribuições individuais de eleitores seduzidos pela novidade, do candidato e das suas formas de comunicação e de mobilização de eleitores. Isso permitiu vencer a força dos grandes lobbies, os financiamentos milionários de grupos de interesse, o apoio de grandes carteis e empresas aos “seus” senadores e deputados, o que tem sido crucial para a expansão da participação democrática nas sociedades abertas da contemporaneidade. 

De 2008 para cá, as ferramentas e mecanismos das redes sociais se estabeleceram como a principal forma de propaganda política à disposição de todos, praticamente, ainda que necessitando igualmente a contratação de especialistas nas novas formas de comunicação social, para o bem e para o mal. O presidente Trump foi provavelmente o primeiro a usar essas formas de comunicação deliberadamente com o objetivo de falsificar, de enganar, de desacreditar seus adversários, de manipular eleitores ingênuos com hábil propaganda mentirosa. É o primeiro arquiteto da máquina de FakeNews que ele nunca cessou de denunciar, e da qual abusou tremendamente para vencer sua adversária em 2016, e que ainda continuou usando em 2020, tendo sido vencido, desta vez, pela pandemia e pela exposição de todas as suas más qualidades e preconceitos. 

Para o bem e para o mal, as redes estão estabelecidas em todas as vertentes e dimensões da competição política, e vão marcar as disputas eleitorais no futuro imediato e nas décadas à frente, mas muitas outras inovações vão surgir nesse mesmo universo.

 

2- O uso das redes sociais tem contribuído para a crescente polarização ideológica, própria do debate político nos últimos anos?

PRA: Sim, e não. Polarização ideológica sempre existiu, em todas as épocas, embora desde a Revolução francesa ela tenha adquirido esse formato divisivo que ainda permanece entre nós, a despeito do surgimento de novas correntes políticas (feminismo, ambientalismo, etc.). Os grupos e partidos políticos costumam ocupar o largo espectro que vai da extrema-esquerda à extrema-direita, sendo mais comuns os partidos centristas, para um ou outro lado. O linguajar político e as propostas de políticas públicas não mudaram muito, desde então. A esquerda é normalmente identificada com as causas dos pobres e dos trabalhadores, propondo distributivismo, socialismo, igualdade e intervenção estatal, em oposição aos interesses dos patrões e dos setores conservadores, que defendem a propriedade, os mercados e o patrimônio, insistindo mais na garantia da lei e da ordem, a pretexto de ficar do lado da liberdade. Essa polarização, que se tornou mais explícita com os movimentos socialistas dos séculos XIX e XX, permanece até hoje, e deve marcar o debate político no futuro previsível, uma vez que as sociedades, mesmo as mais avançadas, ainda são marcadas por diferenças de renda e de bem-estar, dimensões bem mais caracterizadas nas sociedades mais pobres e menos capitalistas. 

O que as redes sociais fazem é levar a polarização ao alcance de todos os cidadãos eleitores conectados de alguma forma às informações que circulam livremente por elas. Mas, muito antes das redes, grupos políticos opostos já se combatiam pela imprensa, nas ruas e nos parlamentos. O que elas trazem é uma capacidade de mobilização maior, sobretudo em termos de protestos sociais, como se viu na Primavera Árabe e em outros países, e geralmente em detrimento de ditadores e dirigentes incompetentes. 

 

3- O uso crescente das redes sociais constitui uma ameaça à Democracia?

PRA: Sim e não, novamente. Elas transmitem ideias, boas e más, informações, verdadeiras ou falsas, consignas, unificadoras ou divisivas. Ou seja, elas constituem um aporte extraordinário à participação democrática dos cidadãos, mas também podem servir, como se viu no seu uso maligno pela nova direita americana, e por Trump especialmente, para provocar erosão da fé cidadã na democracia tradicional, em favor do culto a um salvador da pátria. Isso não depende apenas das redes, pois elas não podem criar sozinhas crises econômicas, conflitos políticos, tensões sociais, desemprego, conflitos maiores, nacionais ou extranacionais. 

A terceira onda da globalização, que justamente fez emergir a força das redes sociais, também provocou certo stress social, ao provocar desemprego nos países da segunda revolução industrial em favor das economias emergentes dinâmicas, geralmente da Ásia. O desemprego, acompanhado da imigração de massas de miseráveis, migrantes econômicos ou refugiados de guerra, provocou reações na Europa e nos Estados Unidos, juntamente com a irrupção do terrorismo islâmico, que acentuou um deslocamento do eleitorado para grupos, movimentos e partidos de direita, nacionalistas, xenófobos, racistas. No meio de tudo isso, é fácil encontrar os adeptos de teorias conspiratórias que fazem um uso perverso das redes sociais de uma forma que os antigos serviços de propaganda dos governos, na época da Guerra Fria, não podiam sequer imaginar. 

Populismo econômico, demagogia política, estavam relativamente em recuo, desde as experiências fascistas do entre guerras, com seu uso intensivo das ferramentas de comunicação social – basicamente rádio, imprensa e um pouco de TV, complementado por filmes e documentários de massa – para mistificar as massas. Os demagogos voltaram a incomodar os partidos tradicionais, como também já tinham feito nos anos 1920 e 30 – que eram basicamente os conservadores e os socialdemocratas – e agora passam a dispor de ferramentas poderosas de manipulação das massas, que não hesitam a usar das formas mais viciosas e viciadas possíveis. Nesse sentido, elas constituem, sim, uma ameaça à democracia, daí essas demandas recentes de combate às FakeNews, de controle dos provedores de acesso, de códigos de conduta para as ferramentas mais conhecidas na atualidade. 

Não se trata de missão simples, uma vez que as FakeNews estão no âmago da propaganda política desde séculos, apenas assumindo formas e suportes diversos. Sociedades abertas são evidentemente mais suscetíveis de sentirem o peso da manipulação política, uma vez que nas ditaduras a solução mais simples é a censura da imprensa e o controle arbitrário dos produtores e disseminadores de informação, com a forte mão do Estado atuando sem freios contra quaisquer dissidentes da verdade oficial. 

 

4- De que modo o uso das redes sociais tem influenciado a política internacional?

PRA: Até a Segunda Guerra Mundial as comunicações internacionais eram muito restritas, por serem caras e limitadas. Com a explosão das comunicações por satélite, desde os anos 1960, a comunicação é instantânea e cada vez mais acessível a empresas de mídia e a todo e qualquer cidadão. As redes sociais, desde a inauguração da internet, no final dos anos 1980 e a sua disseminação universal via celular desde então, mobilização cidadãos identificados com as mesmas causas, co-nacionais ou não, em qualquer canto do planeta, o que criou uma opinião pública suscetível de ser mobilizada para pressionar os governos e, portanto, as diplomacias. Os próprios dirigentes, diplomatas e chefes de Estado, passaram a se comunicar mais facilmente, multiplicando-se, antes da pandemia, os encontros presenciais, as grandes conferências, as viagens e todos os tipos de contatos de cooperação internacional. Um desastre natural, uma guerra, uma carência de abastecimento em qualquer canto da terra podem ser comunicados e serem objeto de administração multilateral em tempos recordes. 

As redes sociais conectam cientistas, pesquisadores, dirigentes políticos e ativistas sociais de modo instantâneo, o que significa que os governos podem ser pressionados a adotar esta ou aquela política em função das novas pressões políticas e sociais que emergem a partir das redes. O presidente Trump, novamente, foi o dirigente que inaugurou a direção do país por essa via, tuitando furiosamente desde a manhã até a noite. É possível que o grande fator de vitória do seu seguidor e admirador no Brasil tenha sido o uso intenso – inclusive de forma desonesta – dessas redes, para construir o mito do homem salvador (no caso, contra a volta da esquerda). Funciona no âmbito doméstico e no ambiente externo igualmente, pois não existem mais diferenças entre as clientelas que é possível atingir por meio das redes: todos estão no mesmo universo, instantaneamente. Mas, assim como esses líderes podem usá-las para disseminar falsas notícias, eles também podem ser desmentidos no mesmo momento, e até fazer parte de campanhas de boicote, como tem ocorrido com Bolsonaro a propósito das queimadas e devastações na Amazônia: ele não mais conseguirá se desvencilhar dessa imagem de destruidor que já adquiriu justamente pelo uso das redes de comunicação social. 

 

5- O uso das redes sociais afetará futuramente as noções tradicionais de esquerda e de direita?

PRA: Não creio, pois as redes são apolíticas e amorais: elas servem a todos os propósitos, intenções e orientações políticas, das mais sensatas às mais hediondas e perversas. Mas, ao trazer novas dimensões sociais, filosóficas, espirituais, ao jogo político tradicional, que era, sim, muito marcado à direita e à esquerda, as redes vão diversificar o mercado de mensagens políticas e de clientelas. Feminismo, ambientalismo, defesa dos direitos dos animais, dos direitos das minorias sexuais e correntes religiosas as mais diversas encontram canais de comunicação que elas talvez não tivessem nas mídias tradicionais (jornais, rádios e redes de TV). A quantidade de ONGs já é incalculável, e seu trabalho é tremendamente facilitado pelas redes, uma vez que elas não possuem os recursos disponíveis nos meios tradicionais pela propaganda comercial paga. 

O impacto na educação também é significativo, o que talvez mude um pouco o universo no qual as políticas nacionais têm se movimentado nos últimos dois séculos e meio, que é ainda, um pouco ou bastante, o da Revolução francesa e suas grandes causas, que eram ainda a da emergência da sociedade industrial. Na economia do conhecimento, dos serviços, da inteligência artificial, talvez essas noções tradicionais de esquerda e direita percam um pouco de sua preeminência nos debates políticos junto ao grande público do futuro. As novas causas são menos de direita e esquerda e mais da saúde do planeta, dos direitos humanos e da democracia, no sentido mais amplo do termo. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3799, 23 de novembro de 2020

 


Moeda comum em blocos comerciais: textos (1998-2009) - Paulo Roberto de Almeida

 Moeda comum em blocos comerciais: 

textos Paulo Roberto de Almeida

Problemas da unificação monetária na América do Sul e no Mercosul

 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orgpralmeida@me.com

Lista seletiva parcial de textos sobre questões monetárias nos processos de integração

Brasília, 23/11/2020

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44556080/3798_Moeda_comum_em_blocos_comerciais_textos_Paulo_Roberto_de_Almeida_Problemas_da_unifica%C3%A7%C3%A3o_monet%C3%A1ria_na_Am%C3%A9rica_do_Sul_e_no_Mercosul_2020_)

 

 

Recentemente, um estudante consultou-me a respeito das possibilidades de uma moeda única na América Latina, um objetivo que eu julgo realisticamente utópico nas condições atuais de fragmentação dos processos integracionistas na região, e mesmo de retrocesso nos que existem, seja a Comunidade Andina de Nações, seja o Mercosul, para não mencionar a fantasmagórica Alba do coronel Chávez. Com base nessa consulta fui verificar o que eu já havia escrito sobre a questão, o que compreende um pouco da experiência europeia com o euro da União Europeia – o único exitoso até o momento, e ainda assim apenas uma moeda comum para parte de seus membros, não uma moeda única de todo o bloco – e várias especulações sobre o mesmo experimento no Mercosul ou na América do Sul.

Creio que a leitura de pelo menos alguns desses meus textos – que obviamente não esgotam a questão – poderá levar à conclusão de que tal objetivo é virtualmente impossível no estado atual de desagregação da região. Na verdade, nem julgo esse objetivo prioritário, ou sequer necessário, numa conjuntura em que sequer existem zonas de livre comércio na região. No momento em que a questão se colocar de maneira concreta, poderei escrever sobre isso.

 

Lista cronológica de alguns textos de Paulo Roberto de Almeida sobre questões monetárias em processos de integração

 

606. “O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados”, Brasília, 5 março 1998, 2 p. Texto sobre o impacto do euro para a economia brasileira, com destaque para as áreas de comércio, investimentos, finanças, reservas e no sistema monetário internacional. Publicado na Carta de Conjuntura do CORECON-DF (Brasília: ano 12, nº 56, março/abril de 1998, p. 18-19). Divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-futuro-euro-e-o-brasil-efeitos.html). Relação de Publicados nº 216.

 

648. “Preparando a união monetária: as agendas política e econômica”, Brasília, 25 novembro 1998, 20 p. Exposição preparada, com base no trabalho 647, para o V Fórum Brasil–Europa: “Novos desafios para a União Europeia e o Mercosul no marco das privatizações e da união monetária”, organizado pela Fundação Konrad Adenauer (São Paulo), cooperação com IRELA e BNDES, e apresentada em 27/11/1998 no painel “Mercosul: da união alfandegária à união monetária”, sob coordenação de Wolf Grabendorff (IRELA, Madrid), BNDES, Rio de Janeiro, conjuntamente com Fabio Giambiagi (“Custos e benefícios globais e regionais de uma moeda única do Mercosul”). Previsão de publicação no Caderno Debates da FKA. Serviu de base à elaboração de “Problemas da união monetária no Mercosul” (2 julho 1999, 29 pp), sob demanda da revista Civitas, da PUC-RS, depois substituído pelo trabalho de n. 700. Divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/mercosul-da-uniao-alfandegaria-uniao.html).

 

655. “O papel do euro no sistema monetário internacional”, Brasília, 22 janeiro 1999, 5 p. Artigo sobre o impacto internacional da nova moeda europeia, elaborado a pedido do NUPRI-USP. Publicado em Carta Internacional (São Paulo: NUPRI-USP, ano VI, nº 69, novembro 1998, p. 4-5). Divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/202; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-papel-do-euro-no-sistema-monetario.html); Divulgado igualmente na versão (incompleta) da Carta Internacional na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44555203/655_O_papel_do_euro_no_sistema_monet%C3%A1rio_internacional_1999_). Relação de Publicados nº 231.

 

700. “Mercosul: problemas da coordenação de políticas macroeconômicas e de uma futura união monetária”, Brasília, 28 julho 1999, 19 p. Palestra em seminário da Fundação Konrad Adenauer no Rio de Janeiro, em painel sobre integração monetária na UE e no Mercosul. Anexo (não arquivado): “Mercosul em Ciência Hoje: Precisões”, Brasília, 28 de julho de 1999, 4 p. Comentários e observações a entrevista do economista Wilson Cano, na revista Ciência Hoje, nº 151 (julho 1999) a propósito do Mercosul. O texto é exatamente o mesmo que já foi divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/mercosul-da-uniao-alfandegaria-uniao.html).

         

719. “Euro: a moeda europeia”, Washington, 14 janeiro 2000, 6 p. Texto de verbete para a Enciclopédia de Direito Brasileiro. Revisto em 30/09/2000, para refletir o resultado negativo do plebiscito na Dinamarca e a decisão pela entrada da Grécia na UEM. Publicado em Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2. volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; ISBN 85-309-0860-0), p. 214-219. Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44555431/O_euro_a_moeda_europeia_2002_); divulgado no blog Diplomatizzando(22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-euro-moeda-europeia-2000-in.html). Relação de Publicados n. 330.

 

739. “Fundo Monetário da América Latina? Uma ideia discutível”, Washington, 21 jun. 2000, 3 p. Comentário acerca da ideia de criação de um Fundo latino-americano de reservas. Publicado no boletim Network (Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudo das Américas, v. 9, n. 2, abr/jun. 2000, p. 1 e 2). Divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/fundo-monetario-da-america-latina-uma.html). Relação de Publicados n. 255.

 

855. “Mercosul: da união alfandegária à união monetária”, Washington, 28 jan. 2002, 19 p. Artigo sobre as perspectivas de unificação monetária no Mercosul, a partir do trabalho n. 648, de 1998, para a revista Estratégia, do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (Lisboa; Ricardo Migueis). Divulgado no blog Diplomatizzando (30/04/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/mercosul-da-uniao-alfandegaria-uniao.html). 

 

869. “Moeda Única no Mercosul: uma agenda para os debates”, Washington, 16 fevereiro 2002, 3 p. Contribuição ao debate sobre a moeda única, no âmbito da lista Mercosul de direito internacional (mercosul@yahoogrupos.com.br). Divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/moeda-unica-no-mercosul-uma-agenda-para.html).

 

879. “O euro: a moeda europeia”, Washington, 15 mar. 2002, 7 p. Atualização do texto inserido como “leitura complementar” do Capítulo 9 (“Impactos e desafios do processo de globalização”) de meu livro Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), p. 179-184. Divulgado no blog Diplomatizzando (23/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-euro-moeda-europeia-2002-paulo.html).

 

1445. “A Moeda Única europeia e a experiência do Mercosul”, Brasília, 22 jun. 2005, 7 p. Respostas a questionário colocado por Rodrigo do Amaral Souza, para servir de anexo a tese de CAE-IRBr. Divulgado no blog Diplomatizzando em 1/07/2012 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2012/07/moeda-unica-europ-e-experiencia-do.html). 

 

2017. “O grande retrocesso monetário e cambial: comércio em moedas locais”, Brasília, 18 junho 2009, 2 p. Comentários em torno das propostas de se substituir o dólar por moedas nacionais nas transações comerciais entre os países. Postado sob n. 1164) no blog Diplomatizzando (Link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/06/1164-o-grande-retrocesso-monetario-e.html). Postado novamente em 18/07/2014 (http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/contra-hegemonia-do-dolar-uso-de-moedas.html).

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 23 de novembro de 2020.


O euro: a moeda europeia (2002) - Paulo Roberto de Almeida

 O euro: a moeda europeia

 

Paulo Roberto de Almeida

pralmeida@mac.comwww.pralmeida.org

O presente texto constitui “leitura complementar” do

Capítulo 9 (“Impactos e desafios do processo de globalização”) de meu livro

Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 179-184.

 

 

Em janeiro de 2002, após vários anos de preparação, o euro foi finalmente introduzido como meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, isto é, uma área monetária composta por doze dos quinze países-membros da União Europeia que optaram por integrar a União Econômica e Monetária e funcionando sob um regime de regras unificadas coordenadas pelos ministros de finanças dos países integrantes e pelo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, na Alemanha. O euro já tinha sido convertido, desde janeiro de 1999, em moeda oficial da UEM — então com onze países participantes — embora funcionando ainda sob forma escritural, mas já dotado de uma paridade única de câmbio em relação a terceiras moedas.

Sua inauguração representa, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política que presidiu, desde então, à integração europeia.

Com efeito, ainda que não mencionado expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da integração europeia – o Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário” estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade Europeia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas etapas subsequentes.

O movimento “unificacionista” no campo monetário começa efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner de união monetária (de 1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos). Ambos foram tornados inexequíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e 1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de unificação das moedas nacionais da então Comunidade Europeia.

No regime de livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e depois, como resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram, obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas mais “fracas” como a lira italiana. 

Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum, instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura moeda comum, podendo-se considerar o ecu – European currency unit, até então um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, de 1992, que dá os fundamentos jurídicos da união econômica e monetária e da moeda única europeia.

O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de janeiro de 1999, viu o estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).

No decurso da segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos Estados. Os principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem sempre pôde ser alcançado.

Com uma avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que participariam do euro a partir de 1º de janeiro seguinte. O Conselho Europeu de Bruxelas (maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se qualificar em diversos critérios importantes. No final desse ano, foram fixadas irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, e no início de 1999 entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados monetários e cambiais passaram a poder operar com euros (sob forma escritural).

A opção dos Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar representarão a consequência natural da afirmação ulterior do poder econômico da União Europeia no plano internacional.

De fato, o euro confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração europeia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).

No plano interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento na zona do euro. Suas vantagensmicroeconômicas também são facilmente demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal exercida por alguns Estados).

O período de transição, que estendeu-se de 1º de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assistiu ao desenvolvimento de processos importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais agregados monetários e a emissões passaram a ser de responsabilidade exclusiva do BCE, os mercados financeiros passaram a operar em euros, ainda que do ponto de vista prático o euro só podia ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer pessoa passou a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa moeda). Finalmente, no primeiro trimestre de 2002, ocorreu a substituição completa do meio circulante nos países integrantes da UEM, com a entrada em circulação das notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada das notas e das moedas nacionais, aqui incluída a Grécia, qualificada para ser admitida na zona monetária no decorrer de 2000. O mais tardar em 1º de julho de 2002 se assistirá à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à UEM.

Do ponto de vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até então marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Europeia.

A importância da União Europeia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de mais de 9 trilhões de dólares — algo similar ao norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.

O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Europeia.

O comportamento de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (em 2001) e da campanha favorável conduzida pelo big business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de “marcha lenta” no processo de integração europeia. 

Que ensinamentos ou que consequências poderiam ser extraídos a partir da experiência europeia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. 

De fato, as crises enfrentadas pelos países membros do Mercosul abriram um debate em torno da criação de uma moeda única no bloco. Os primeiros passos na direção de um espaço monetário integrado no Mercosul foram dados em dezembro de 2000, com o anúncio de metas e mecanismos de um exercício de coordenação e de convergência macroeconômica, tais como os referentes à: i) variação da dívida fiscal líquida do setor público consolidado; ii) dívida líquida do setor público consolidado (deduzidas as reservas internacionais) sobre o PIB nominal; iii) inflação, com base nas estatísticas harmonizadas elaboradas pelo Grupo de Monitoramento Econômico.

As autoridades financeiras dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.

 

 

Referências: 

A principal fonte de informação sobre o euro e as economias dos países membros é a página do banco Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.

Para a questão da moeda única no Mercosul, podem ser citados os seguintes trabalhos:

GIAMBIAGI, Fabio. “Uma proposta de unificação monetária dos países do Mercosul”, Revista de Economia Política, v. 17, nº 4, 1997, p. 5-30

––––. “A Moeda Comum como Base do Crescimento do Brasil e Argentina”, Revista do BNDES, V. 8, n. 16, dez 2001, p. 119-166

LAVAGNA, Roberto e GIAMBIAGI, Fábio. Hacia la creación de una moneda común: una propuesta de convergencia coordinada de políticas macroeconómicas en el Mercosur. Ensaios nº 06, BNDES, Macroeconomia, março de 1998

RIBEIRO, Maria de Fátima. “O Euro e as perspectivas de implantação de uma moeda única no Mercosul”, Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ed. Revista dos Tribunais, nº 31, ano 8 abril-junho-2000, p. 9-26.

 

 

PRA: Washington, 879; 15/03/2002

domingo, 22 de novembro de 2020

Moeda Única no Mercosul: uma agenda para os debates (2002) - Paulo Roberto de Almeida

 Moeda Única no Mercosul: uma agenda para os debates


Paulo Roberto de Almeida

Circulado na lista Mercosul

(mercosul@yahoogrupos.com.br)

em 16/02/2002

(ver mensagem  inicial do debate, in fine]


  

Meu caro Letácio [Jansen, colega de lista e amigo pessoal] e demais colegas interessados na moeda única do Mercosul,

“Que fazer?”, era o título de um panfleto de Lênin, num momento (1902) em que o partido social democrata russo enfrentava graves impasses em seu programa político e em sua atividade pratica, e ele pretendeu dar uma nova orientação ao movimento. Conseguiu, mas à custa da divisão dos socialdemocratas em bolcheviques e mencheviques, sendo que estes últimos seriam depois massacrados pelos primeiros, quando conseguiram tomar o poder em 1917. O resto é história...

A moeda única do Mercosul pode ter outra história, mas não podemos ser profetas, nem fazer construções utópicas. A pergunta é pertinente, desde que saibamos os limites de nossa atuação e os demais limites que nos impõem a realidade...

As recentes decisões tendentes a favorecer a agenda da moeda única no Mercosul são, sem dúvida, encorajantes, mas não nos deixemos iludir pelas circunstâncias. Todo esse palavreado atual sobre a moeda única tem objetivo algo encantatórios, como se se tratasse de afastar maus espíritos e ameaças de catástrofe, como ocorre atualmente com a Argentina e a crise do Mercosul (criada, alias, pelas malcriações do ex-ministro Cavallo).

Falar de IMM, agora, serve para criar um certo clima de confiança, sinalizar que os países membros continuam a avançar no caminho da integração, enfim exibir um certo otimismo de fachada, quando sabemos que os problemas reais permanecem intocados.

O objetivo é louvável, mas, sem querer tocar no velho refrão do carro na frente dos bois, sejamos realistas: não é o fato de falar da (ou tentar implementar, contra ventos e marés, a) moeda única que vai resolver os graves problemas de instabilidade econômica na Argentina e dar uma nova impulsão ao Mercado Comum.

Uma moeda comum, nas circunstâncias de um processo de integração (isto é, eliminando-se a adoção negociada, como Bélgica e Luxemburgo, incorporação estatal, renúncia unilateral de soberania, etc.), significa, nada mais, nada menos, do que a concretização plena de um mercado comum: ela é a consequência logica e, por vezes incontornável, dessa unificação do espaço econômico, de maneira tão completa que sua adoção se torna quase natural. Foi um pouco o que ocorreu na Europa, depois de realizado o Ato Único de 1986 e implementadas as medidas constantes do processo de unificação completa dos mercados em 1993. 

Convenhamos que o Mercosul está longe, muito longe, longíssimo mesmo dessas etapas necessárias e incontornáveis. Mais ainda: não existem, estruturalmente, as mesmas condições “naturais” de integração completa dos mercados como na Europa, e, no plano monetário, a situação é totalmente diferente (para o negativo), requerendo ainda muitos anos de completa estabilidade macroeconômica e de avanços reais no processo de integração para podermos realmente colocar o tema da moeda na agenda.

Mas, admitamos por um momento que chegou o momento de falar da moeda única. Que fazer então? Criar um IMM vai servir para alguma coisa? Não creio, sinceramente, mas para não parecer totalmente negativo, admitamos que ele possa servir para fazer avançar um pouco mais o DEBATE (não ainda as medidas reais) em torno da futura, eventual, hipotética, possível moeda comum (vocês estão vendo que, se eu estou disposto a me sacrificar pelo Mercosul, não morreria pela moeda única, por razoes que já expus aqui). 

Mas, como tudo no Mercosul é político, e não exatamente econômico, temos de considerar a criação do IMM como uma espécie de fait accompli e partir daí para avançar um pouco mais. Ele pode servir para muita coisa, entre outras introduzir um pouco mais de constrangimentos racionais (e realistas) ao arbítrio econômico dos dirigentes nacionais. Sempre considerei o Mercosul um pouco como essa tia severa que não deixa seus sobrinhos irresponsáveis sair por aí fazendo bobagens (tarifárias, fiscais, setoriais, orçamentárias etc.). Se o IMM e a ideia de moeda única também servirem para disciplinar nossos países na linha dos good fundamentals, excelente, esta poderia ser sua missão histórica. 

Dito isto, volto ao Que fazer?

Não creio, com perdão do Letácio, que devamos comparar os estatutos do IMM (inexistente ao que saiba e aparentemente uma mera construção no papel, quando não uma simples decisão, sem qualquer coisa de concreto atrás) com os do antigo IME, que se converteu em BCE seis meses antes da fixação irrevocável das taxas de cambio nos países candidatos a UEM europeia, ou seja, em junho de 1998. Não se pode comparar o incomparável ou o físico com o diáfano, inclusive porque, mesmo existindo essa obra de ficção cientifica que se dá o nome de IMM, ele teria funções completamente distintas do finado IME, que era o BCE in pectore.

Não creio tampouco que se deva discutir agora a questão da supranacionalidade no (ou do) Mercosul, não porque me oponha a discussões teóricas (quem sou para proibir qualquer coisa?), mas porque simplesmente ela não está na agenda e não vai nos levar a nada.

Sou, sim, a favor de se comecar a estudar as etapas e condições concretas que permitiram o surgimento, em última instancia, do euro. Isto implica em retomar o caminho não só da integração, na Europa e no Mercosul, mas também examinar as condições peculiares sob as quais foram dados os avanços monetários e de coordenação de políticas macroeconômicas naquele continente, e em circunstâncias adversas nos nossos próprios países.

Não quero parecer ambicioso demais, nem traçar um grande projeto de estudos jurídicos ou econômicos, mas a História sempre é boa conselheira (desde que não nos deixemos amarrar por ela, nem mistifiquemos seus itinerários, sempre únicos e originais).

Eu começaria, por exemplo, na própria União de Pagamentos Europeia, um sistema de clearing administrado pelo BIS nos anos 50, com dinheiro americano, que precedeu a decretação da conversibilidade das moedas europeias (1958) e o levantamento das restrições aos pagamentos correntes. Precisaríamos examinar depois os códigos da OCDE de liberalização de movimento de capitais e de transações correntes, ao lado das disposições do convênio constitutivo do FMI e o funcionamento do G-10 e do GAB. Podemos analisar também as diferentes fases da coordenação monetária europeia pós-Bretton Woods, os mecanismos de intervenção dos bancos centrais, o ERM e o SME, as bandas internas entre certas moedas europeias (sobretudo o bloco do deutsche mark) e as primeiras tentativas de unificação monetária (relatório Werner, por exemplo).

Fundamental, no entanto, será examinar as disposições relativas a UEM em Maastricht e o processo que se seguiu em três etapas desde 1993: independência dos bancos centrais e constituição do IME, decretação das paridades fixas das moedas candidatas, em janeiro de 1999 e, finalmente, agora em janeiro, a introdução do euro. O mais importante será examinar os critérios de Maastricht e seus pré-requisitos, para ver até que ponto os países do Mercosul estão prontos ou dispostos a caminhar nessa direção (pois tudo é uma questão não apenas de vontade, mas de disciplina, o poder fazer seguido do agir).

Tudo isso obviamente sem prejulgar que o Mercosul deva necessariamente ter moeda comum, pois se você começa um processo com uma meta preestabelecida, independentemente das condições reais, isso não é união monetária, isto é fundamentalismo monetário.

Resumo o Que Fazer?: analisar o itinerário monetário europeu em todas as suas facetas, e estudar ao mesmo tempo nossas próprias particularidades, para ver se temos condições de seguir avançando na direção dessa “ideia”. Entendo que o IMM servirá de “think tank” para tudo isso. Nós somos apenas livres atiradores, mas podemos ainda assim dar nossa contribuição ao debate, atuando como cidadãos e como estudiosos voluntários.

Tenho apenas uma condicionalidade nesse processo: para mim, Mercosul, moeda única e outros instrumentos integracionistas não são fim em si mesmos, mas apenas meios, mecanismos para realizar um fim desejável: o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Não me lanço nesse tipo de empreendimento por alguma bela ideia estética do Mercosul, mas por acreditar que ele possa contribuir para essa (esta sim) ideia fixa: o desenvolvimento do Brasil (não falo dos outros países, pois minha atuação refere-se apenas às minhas obrigações e consciência como cidadão brasileiro, e acho que cada um deve cuidar do seu país primeiro). Se a moeda única ajudar nessa meta, excelente, mas como disse não sou fundamentalista.

Bons estudos a todos…

 

Paulo R. Almeida

pralmeida@mac.com

www.brasilemb.org

 

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From: "Letácio Jansen" letaciojansen@yahoo.com

Reply-To: mercosul@yahoogrupos.com.br

Date: Sat, 16 Feb 2002 17:35:56 –0800

To: mercosul@yahoogrupos.com.br

Subject: [mercosul] Que fazer ?

 

Prezados companheiros da Lista: 

Diante da constituição do INSTITUTO MONETÁRIO DO MERCOSUL, sinalizando a institucionalização da moeda única regional no cone Sul, o debate que vinha sendo travado há cerca de dois anos sobre o tema na nossa Lista de Discussão, mudou de nível, "saindo do nosso controle", por assim dizer, e aumentando a nossa responsabilidade.

Embora a nossa Lista não tenha meios eficazes de ação, ainda assim levamos uma certa vantagem, já que em nenhum outro âmbito discutiu-se tanto o assunto como aqui.

Devemos preservar o método que temos adotado até agora, que é o debate livre, que permitiu com que o assunto ficasse em pauta e despertasse o interesse das pessoas durante tanto tempo.

A nossa força está em que somos uma Lista ... de discussão, e é a discussão, portanto, que deve ser estimulada.

Já temos o que fazer de imediato. O Instituto Monetário do Mercosul deve ter-se inspirado e seguido o modelo do Instituto Monetário Europeu. Poderíamos começar comparando as normas das duas entidades, para ver até que ponto os patrocinadores do IMM decidiram avançar.

Devemos debater, também, desde logo, a questão da supranacionalidade no Mercosul. Será viável manter-se a "estrutura deliberadamente anêmica” do Mercosul, de que sempre fala o Paulo Roberto? Penso que não.

Não vai ser fácil administrar a tecnoburocracia dos Bancos Centrais e dos Ministérios da Economia da região. A nossa cultura ibérica - e católica - reage contra a moeda, como se ela fosse uma faceta do demônio. Precisamos reverter essa falsa ideia: uma moeda bem estruturada é uma excelente forma de disciplinar a conduta das pessoas na sociedade, melhor do que o Direito tradicional. 

Continuemos, pois, a debater livremente. O fato de não termos um público leitor muito grande não nos deve intimidar. Se a nossa discussão continuar a ser criativa, mais cedo ou mais tarde os membros do Instituto Monetário do Mercosul gostarão de saber o que estamos pensando. 

Abraços do Letácio Jansen

Direito Internacional Privado & Mercosul Website

http://www.dip.com.br

 

Fundo Monetário da América Latina?: uma idéia discutível (2000) - Paulo Roberto de Almeida

 Fundo Monetário da América Latina?: uma idéia discutível

 

Paulo Roberto de Almeida

Doutor em ciências sociais. Autor de

O Brasil e o multilateralismo econômico

(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999)

pralmeida@brasilemb.org  http://pralmeida.tripod.com

Publicado no boletim Network (Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudo das Américas, v. 9, n. 2, abr/jun. 2000, p. 1 e 2). Relação de Publicados n. 255.

 

 

Representantes de países andinos, em encontro preparatório à reunião de Cúpula do Grupo do Rio, realizada em junho último em Cartagena de Índias, na Colômbia, voltaram a tocar numa idéia que já tinha sido aventada por eles mesmos quando dos efeitos mais desestabilizadores do vendaval financeiro que agitou o mundo entre 1997 e 1999: a criação de um “Fundo Monetário da América Latina”, supostamente destinado a oferecer opção alternativa (ou complementar) de crédito aos países da região.

Tal como apresentada pelo presidente do Fundo Latino Americano de Reservas (Flar), Roberto Guarnieri, o novo organismo, se constituído, seria o resultado da ampliação do Flar, do qual participam atualmente apenas os países do chamado grupo andino. Segundo ele, os presidentes dos países andinos teriam dado seu apoio à proposta, que seria em seguida levada a conhecimento dos demais participantes do Grupo do Rio. Na verdade, tratava-se de velha sugestão, repetidamente apresentada ao longo dos anos aos responsáveis monetários e financeiros dos demais países da região.

A iniciativa, velha conhecida dos funcionários do Banco Central do Brasil, vem sendo sugerida de maneira recorrente como uma espécie de “FMI latino” e assim foi imediatamente caracterizada pela imprensa. Matéria da correspondente especial do Jornal do Brasil ao encontro de presidentes do Grupo do Rio, Sonia Carneiro, fazia a chamada em sua edição de 16 de junho: “Países andinos pedem FMI latino”, completando-se o subtítulo da seguinte forma: “Apresentada na reunião de governantes latino-americanos, plano é parte de reformulação da arquitetura financeira mundial”. Altamente especulativa, a reportagem chegou a confundir zona de livre-comércio com união monetária, num contexto de reforma do sistema financeiro internacional. Segundo a repórter, “O primeiro passo para a criação de uma zona de livre comércio latino-americana e de uma moeda única, foi dado ontem [isto é, 15/06/2000] por representantes de 19 países latino-americanos – 15 presidentes e 4 chanceleres – no primeiro dia de reunião da XIV reunião de Cúpula do Grupo do Rio, convocada para analisar a revisão do sistema financeiro internacional, o papel da ONU no próximo século e medidas para aumentar a segurança humana. Os presidentes aceitaram discutir a proposta encaminhada pelos representantes do grupo andino – Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela – para a criação de um Fundo Monetário do continente (já batizado de FMI latino-americano), idealizado para permitir aos países em desenvolvimento enfrentar os desafios da globalização.”

Levada à fase final da reunião de cúpula do Grupo do Rio, a idéia foi devidamente expurgada de seus aspectos mais comprometedoras e reduzida a uma fórmula genérica, sem qualquer conteúdo vinculatório mais explícito. De fato, o parágrafo 34 da Declaração de Cartagena de Índias, intitulada “Um compromisso para o Milênio”, assim rezou: 

Proponemos complementar el fortalecimiento del sistema financiero global con un mayor desarrollo de las instituciones financieras regionales y subregionales, aprovechando sus ventajas comparativas, promoviendo la coordinación de sus actividades y evitando la duplicación de funciones.

 

Tendo prevalecido o bom senso, imaginemos contudo como seria se o projeto tivesse prosperado e levado adiante em seus compromissos práticos. Para isso, antes de apresentar as respostas previsíveis ou esperadas pelos seus proponentes, é preciso fazer as perguntas adequadas. Com que capital trabalharia o suposto FMI latino? Quem, ou quais países, mais exatamente, seriam chamados a integralizar as cotas da subscrição básica e que relação teria o capital operacional com o exigível? Em que moedas trabalharia a nova instituição, em quais manteria reservas, como seria administrado o fundo rotativo? Como se definiria seu processo decisório e como seriam escolhidos seus dirigentes e funcionários? Em que condições atuaria essa instituição de crédito e que tipo de política se aplicaria para situações de “simples” desequilíbrio de balanço de pagamentos ou uma de risco sistêmico? Haveria condicionalidades na utilização dos recursos, determinação de políticas de ajuste, recomendações de ordem fiscal, monetária, macroeconômica? Enfim, como faria esse “FMI latino” para ser um pouco mais latino e bem menos FMI?

Conhecendo-se o registro histórico de inadimplências periódicas e de crises financeiras regionais, não é difícil imaginar os limites e as peculiaridades, bem como antecipar os prováveis resultados de uma tal instituição regional. Consideremos, antes de mais nada, a ordem de magnitude dos valores envolvidos. Quando da crise do Tequila, entre dezembro de 1994 e janeiro de 1995, o pacote montado sob a liderança dos Estados Unidos para salvar o México de uma completa débacle financeira representou a mobilização de mais de 50 bilhões de dólares, dos quais foram efetivamente utilizados pouco mais da metade. Da mesma forma, quando o Brasil corria o risco imediato de se apresentar como o “next one”, no seguimento da moratória russa de agosto de 1998, o pacote de apoio financeiro constituído pelo dinheiro do FMI, dos bancos multilaterais (BIRD e BID) e por vinte países membros do BIS, ultrapassou 41 bilhões de dólares, dos quais o Brasil sacou pouco mais da metade igualmente. O pacote foi dispensado em abril de 2000, quando o Banco Central efetuou pagamento de 10 bilhões de dólares, retendo ainda algumas linhas de crédito do FMI, de custo mais aceitável para o país.

Com quanto poderia contar o FMI latino? Atualmente, o Flar conta com um capital de US$ 1 bilhão e pretenderia, segundo seu dirigente, dobrar o valor em cinco anos. Recentemente, o organismo ajudou o Equador a lidar com sua crise, dando-lhe socorro de US$ 411 milhões. Em outros termos, o FMI latino precisaria pelo menos quintuplicar o seu capital num horizonte razoável de tempo para poder hipoteticamente vir a prestar ajuda aos países maiores da região, adicionalmente aos mecanismos de apoio financeiro já existentes no âmbito do Fundo Monetário Internacional. De onde supostamente sairia o dinheiro? Como se imagina mal o FMI de Washington ou os países desenvolvidos correrem em socorro de uma entidade puramente regional, a conclusão é a de que ele teria de vir da própria América Latina.

A idéia não é nova e de fato ela retoma iniciativas anteriores de criação ou ampliação de fundos regionais, que mais recentemente surgiram na Ásia, quando do início da crise financeira em 1997. O Japão, potência financeira regional, até se dispôs a ajudar a constituição desse fundo, mas foi discretamente dissuadido pelos Estados Unidos e pelos países europeus. Na América Latina, entretanto, na ausência de uma verdadeira potência financeira regional, supõe-se que os países maiores – Argentina, Brasil, México – seriam chamados a cumprir esse papel. Em resumo, o Brasil seria chamado a contribuir para um fundo ao qual ele não administraria totalmente e do qual não poderia realisticamente esperar grande socorro numa situação de emergência. A iniciativa pode até ser generosa, para países como o Equador, mas trata-se certamente de um mau negócio para países como o Brasil.

 

Network Cândido Mendes [739: Washington, 21/06/2000]