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domingo, 22 de novembro de 2020

Fundo Monetário da América Latina?: uma idéia discutível (2000) - Paulo Roberto de Almeida

 Fundo Monetário da América Latina?: uma idéia discutível

 

Paulo Roberto de Almeida

Doutor em ciências sociais. Autor de

O Brasil e o multilateralismo econômico

(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999)

pralmeida@brasilemb.org  http://pralmeida.tripod.com

Publicado no boletim Network (Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudo das Américas, v. 9, n. 2, abr/jun. 2000, p. 1 e 2). Relação de Publicados n. 255.

 

 

Representantes de países andinos, em encontro preparatório à reunião de Cúpula do Grupo do Rio, realizada em junho último em Cartagena de Índias, na Colômbia, voltaram a tocar numa idéia que já tinha sido aventada por eles mesmos quando dos efeitos mais desestabilizadores do vendaval financeiro que agitou o mundo entre 1997 e 1999: a criação de um “Fundo Monetário da América Latina”, supostamente destinado a oferecer opção alternativa (ou complementar) de crédito aos países da região.

Tal como apresentada pelo presidente do Fundo Latino Americano de Reservas (Flar), Roberto Guarnieri, o novo organismo, se constituído, seria o resultado da ampliação do Flar, do qual participam atualmente apenas os países do chamado grupo andino. Segundo ele, os presidentes dos países andinos teriam dado seu apoio à proposta, que seria em seguida levada a conhecimento dos demais participantes do Grupo do Rio. Na verdade, tratava-se de velha sugestão, repetidamente apresentada ao longo dos anos aos responsáveis monetários e financeiros dos demais países da região.

A iniciativa, velha conhecida dos funcionários do Banco Central do Brasil, vem sendo sugerida de maneira recorrente como uma espécie de “FMI latino” e assim foi imediatamente caracterizada pela imprensa. Matéria da correspondente especial do Jornal do Brasil ao encontro de presidentes do Grupo do Rio, Sonia Carneiro, fazia a chamada em sua edição de 16 de junho: “Países andinos pedem FMI latino”, completando-se o subtítulo da seguinte forma: “Apresentada na reunião de governantes latino-americanos, plano é parte de reformulação da arquitetura financeira mundial”. Altamente especulativa, a reportagem chegou a confundir zona de livre-comércio com união monetária, num contexto de reforma do sistema financeiro internacional. Segundo a repórter, “O primeiro passo para a criação de uma zona de livre comércio latino-americana e de uma moeda única, foi dado ontem [isto é, 15/06/2000] por representantes de 19 países latino-americanos – 15 presidentes e 4 chanceleres – no primeiro dia de reunião da XIV reunião de Cúpula do Grupo do Rio, convocada para analisar a revisão do sistema financeiro internacional, o papel da ONU no próximo século e medidas para aumentar a segurança humana. Os presidentes aceitaram discutir a proposta encaminhada pelos representantes do grupo andino – Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela – para a criação de um Fundo Monetário do continente (já batizado de FMI latino-americano), idealizado para permitir aos países em desenvolvimento enfrentar os desafios da globalização.”

Levada à fase final da reunião de cúpula do Grupo do Rio, a idéia foi devidamente expurgada de seus aspectos mais comprometedoras e reduzida a uma fórmula genérica, sem qualquer conteúdo vinculatório mais explícito. De fato, o parágrafo 34 da Declaração de Cartagena de Índias, intitulada “Um compromisso para o Milênio”, assim rezou: 

Proponemos complementar el fortalecimiento del sistema financiero global con un mayor desarrollo de las instituciones financieras regionales y subregionales, aprovechando sus ventajas comparativas, promoviendo la coordinación de sus actividades y evitando la duplicación de funciones.

 

Tendo prevalecido o bom senso, imaginemos contudo como seria se o projeto tivesse prosperado e levado adiante em seus compromissos práticos. Para isso, antes de apresentar as respostas previsíveis ou esperadas pelos seus proponentes, é preciso fazer as perguntas adequadas. Com que capital trabalharia o suposto FMI latino? Quem, ou quais países, mais exatamente, seriam chamados a integralizar as cotas da subscrição básica e que relação teria o capital operacional com o exigível? Em que moedas trabalharia a nova instituição, em quais manteria reservas, como seria administrado o fundo rotativo? Como se definiria seu processo decisório e como seriam escolhidos seus dirigentes e funcionários? Em que condições atuaria essa instituição de crédito e que tipo de política se aplicaria para situações de “simples” desequilíbrio de balanço de pagamentos ou uma de risco sistêmico? Haveria condicionalidades na utilização dos recursos, determinação de políticas de ajuste, recomendações de ordem fiscal, monetária, macroeconômica? Enfim, como faria esse “FMI latino” para ser um pouco mais latino e bem menos FMI?

Conhecendo-se o registro histórico de inadimplências periódicas e de crises financeiras regionais, não é difícil imaginar os limites e as peculiaridades, bem como antecipar os prováveis resultados de uma tal instituição regional. Consideremos, antes de mais nada, a ordem de magnitude dos valores envolvidos. Quando da crise do Tequila, entre dezembro de 1994 e janeiro de 1995, o pacote montado sob a liderança dos Estados Unidos para salvar o México de uma completa débacle financeira representou a mobilização de mais de 50 bilhões de dólares, dos quais foram efetivamente utilizados pouco mais da metade. Da mesma forma, quando o Brasil corria o risco imediato de se apresentar como o “next one”, no seguimento da moratória russa de agosto de 1998, o pacote de apoio financeiro constituído pelo dinheiro do FMI, dos bancos multilaterais (BIRD e BID) e por vinte países membros do BIS, ultrapassou 41 bilhões de dólares, dos quais o Brasil sacou pouco mais da metade igualmente. O pacote foi dispensado em abril de 2000, quando o Banco Central efetuou pagamento de 10 bilhões de dólares, retendo ainda algumas linhas de crédito do FMI, de custo mais aceitável para o país.

Com quanto poderia contar o FMI latino? Atualmente, o Flar conta com um capital de US$ 1 bilhão e pretenderia, segundo seu dirigente, dobrar o valor em cinco anos. Recentemente, o organismo ajudou o Equador a lidar com sua crise, dando-lhe socorro de US$ 411 milhões. Em outros termos, o FMI latino precisaria pelo menos quintuplicar o seu capital num horizonte razoável de tempo para poder hipoteticamente vir a prestar ajuda aos países maiores da região, adicionalmente aos mecanismos de apoio financeiro já existentes no âmbito do Fundo Monetário Internacional. De onde supostamente sairia o dinheiro? Como se imagina mal o FMI de Washington ou os países desenvolvidos correrem em socorro de uma entidade puramente regional, a conclusão é a de que ele teria de vir da própria América Latina.

A idéia não é nova e de fato ela retoma iniciativas anteriores de criação ou ampliação de fundos regionais, que mais recentemente surgiram na Ásia, quando do início da crise financeira em 1997. O Japão, potência financeira regional, até se dispôs a ajudar a constituição desse fundo, mas foi discretamente dissuadido pelos Estados Unidos e pelos países europeus. Na América Latina, entretanto, na ausência de uma verdadeira potência financeira regional, supõe-se que os países maiores – Argentina, Brasil, México – seriam chamados a cumprir esse papel. Em resumo, o Brasil seria chamado a contribuir para um fundo ao qual ele não administraria totalmente e do qual não poderia realisticamente esperar grande socorro numa situação de emergência. A iniciativa pode até ser generosa, para países como o Equador, mas trata-se certamente de um mau negócio para países como o Brasil.

 

Network Cândido Mendes [739: Washington, 21/06/2000]