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segunda-feira, 11 de abril de 2022

Análise preliminar da Campanha da Ucrânia de 2022 - Eugenio Diniz (Synopsis)

Análise preliminar da Campanha da Ucrânia de 2022

Prof. Eugenio Diniz
Synopsis, 31 de março de 2022
Última atualização 6 de abril de 2022 

https://synopsisint.com/analise-preliminar-da-campanha-da-ucrania-de-2022/

Identificação dos objetivos

Em uma guerra, é muito difícil estimar os objetivos das partes, por várias razões, incluindo: elas têm bons motivos para ocultá-los, mascará-los ou disfarçá-los; algumas das lideranças de cada lado podem ter agendas próprias, que podem ser desconhecidas até mesmo dos seus colegas ou dos seus superiores hierárquicos; e, ao longo da duração da guerra, vários fatores podem levá-las a reconsiderá-los, redefini-los, renegociá-los. Ao mesmo tempo, é impossível, seja para analistas, seja para agentes políticos, interpretar os acontecimentos sem uma referência aos objetivos das partes. Desse modo, é necessário inferir esses objetivos a partir de informações contextuais, conhecimento teórico e empírico, trajetórias políticas, manifestações e reações dos agentes políticos, composição, organização e desdobramento das forças e outros fatores, sempre tendo em mente que são estimativas, baseada em informações contingentes, necessariamente fragmentadas, muitas vezes de baixa confiabilidade, e que essas estimativas podem ter que ser revisadas frequentemente.[1]

Assim, considerando os acontecimentos a partir de 24 de fevereiro de 2022 como uma nova fase da guerra entre Rússia e Ucrânia, que começou em 24 de fevereiro de 2014,[2] podemos tomar como ponto de partida para entender os objetivos atuais da Rússia o que esta já conseguira após os acontecimentos de fevereiro de 2014 até 12 de fevereiro de 2015 (data da assinatura do acordo Minsk II, com termos bem favoráveis à Rússia:

  • controlar a Crimeia (cuja anexação não foi reconhecida internacionalmente);
  • um corredor terrestre bastante precário entre o território contíguo russo e a Península da Crimeia na região do Baixo Don (Donbas), com o reconhecimento formal pelo governo ucraniano da autonomia das oblasti de Donetsk e Luhansk, mas que dificilmente poderia ser considerado um acesso terrestre seguro a Sevastopol.

É importante compreender a importância da Crimeia e do controle político de Donetsk e Luhansk para a Rússia. Embora, em tese, seja possível acessar o Mar Negro a partir do seu litoral leste, que pertence à Rússia, o fato é que Sevastopol, na Crimeia, era a principal base da Esquadra do Mar Negro na época da União Soviética, e, mesmo depois do fim desta e antes de 2014, a Rússia tinha um acordo com a Ucrânia que lhe permitia usar a base. Com a anexação, mesmo não reconhecida internacionalmente, a utilização de Sevastopol e outras instalações militares na Crimeia pela Rússia fica mais garantida. Porém, se a região do Baixo Don for controlada pela Ucrânia, e esta negar o acesso à Crimeia à Rússia, o problema logístico para esta se complica enormemente.

No caso da Crimeia, mesmo que sua anexação pela Rússia não seja reconhecida internacionalmente, se for possível sustentar a presença de forças russas na península, sua defesa contra uma eventual tentativa de retomada pela Ucrânia é bastante facilitada pelas suas características geográficas. Entretanto, isso pode ser dificultado caso a Rússia não disponha de um corredor terrestre assegurado à Crimeia. Porém, a situação em Donetsk e Luhansk é particularmente precária. Em 2014 e 2015, o que a Rússia e as oblasti conseguiram se deveu a aspectos muito particulares da situação de então, e a sua autonomia dificilmente poderia ser considerada segura. Notadamente, a situação das forças armadas ucranianas (antes da ofensiva de 24 de fevereiro de 2022) melhorara substancialmente com relação ao final da Campanha de 2014, e sua capacidade de retomar as duas oblasti aumentara significativamente.

Com base nisso, eu considero que o resultado mínimo buscado pela Rússia seria:

R1: Assegurar o controle político sobre Luhansk e Donetsk para garantir um acesso terrestre seguro à Crimeia.

Todas as pretensões da Rússia a ser uma potência para além do seu entorno imediato dependem de controlar Sevastopol e ter acesso seguro a ela. A Rússia não tem qualquer outro substituto. Do ponto de vista da Rússia, pode-se considerar que alguma forma de reconhecimento de que a Ucrânia não retomaria a área seria desejável, mas não depender de reconhecimento seria melhor ainda.

O principal obstáculo à consecução desse objetivo seria exatamente a possibilidade de as forças ucranianas retomarem, num dado momento, as duas regiões. Portanto, isso se traduz nos seguintes objetivos estratégicos:

R2: Enfraquecer drasticamente as forças ucranianas, eliminando por um bom tempo sua capacidade de retomar Donetsk e Luhansk.

R3: Impedir ou pelo menos dificultar a reconstituição das forças ucranianas, para prolongar esse controle com o mínimo de custos.

A maneira mais eficaz e garantida de alcançar esse objetivo é, simplesmente, destruir diretamente o máximo possível das forças ucranianas; e, em seguida, destruir o máximo possível da capacidade ucraniana de reconstruir essas forças, o que significa, no curto prazo, inviabilizar o suprimento de qualquer tipo de apoio às forças ucranianas (principalmente munição, combustível, novos equipamentos e peças de reposição); e, para o médio e o longo prazos, danificar significativamente a infraestrutura produtiva da Ucrânia; e impedir qualquer tipo de apoio a qualquer oposição armada.

A partir dessa consideração, é importante constatar que:

  • Se for o caso que as lideranças russas tinham essas ações em mente antes da invasão, não é razoável supor que elas não antecipassem a possibilidade de uma intensa reação, voltada diretamente contra elas mesmas, as pessoas físicas que tomaram as decisões – apesar do tanto que se diz sobre isso. Essa avaliação não exclui a possibilidade de que algumas medidas tenham efetivamente lhes causado alguma surpresa. Tudo somado, porém, não parece muito realista esperar que essa reação leve a uma reconsideração das ações por parte das autoridades russas.
  • Uma possibilidade adicional é que as forças russas queiram também intensificar o fluxo de refugiados ucranianos, de modo a, entre outras coisas, diminuir o universo de recrutamento que poderia futuramente estar disponível para uma eventual oposição armada clandestina ucraniana. Nesse caso, se isso foi de caso pensado, torna-se ainda menos crível a possibilidade de que a Rússia não antecipasse manifestações muito enfáticas contrárias à sua ação.

Impedir o fluxo de suprimento e apoio às forças ucranianas e/ou a alguma oposição armada exige:

  • negar-lhes a utilização dos portos no Mar Negro a oeste e a leste da Península da Crimeia – a oeste, Odessa, Mykolayiv e Kherson são os pontos principais; a leste, fora as áreas marítimas das oblasti de Donetsk e Luhansk, o porto de Mariupol é a posição principal, com Berdyansk ocupando uma posição secundária;
  • negar-lhes a utilização dos acessos terrestres no oeste-noroeste da Ucrânia (ao norte da Moldávia), particularmente o controle das estradas – aqui, as posições principais são Chernivtsi, Ivano-Frankivsk, Lviv e Lutsk; as posições secundárias são Vynnytsia, Kimenytski, Ternopol e Rivne;

Fora essas áreas, o terreno da Ucrânia não é favorável a uma oposição armada clandestina, exceto talvez nas cidades. A única área mais acidentada se localiza bem a oeste-noroeste, nos Cárpatos. O controle das estradas nas posições mencionadas acima neutralizaria a influência dos acontecimentos locais sobre o restante da Ucrânia.

Portanto, entre os objetivos da Rússia, poderiam estar:

R4: Impedir o fluxo de recursos para as forças ucranianas e/ou para uma oposição armada a partir de Mariupol, de Mykolayiv, de Kherson e de Odessa;

R5: Impedir o fluxo de recursos para as forças ucranianas e/ou para uma oposição armada pelas estradas do oeste e do noroeste da Ucrânia.

Observe-se que, para tanto, não é necessário, a rigor, controlar as cidades mencionadas (e menos ainda outras cidades diferentes daquelas) – embora controlar as cidades portuárias possa ser útil para benefícios logísticos próprios. Fora isso, dadas as características do terreno da Ucrânia, poderia ser suficiente enfraquecer as forças ucranianas próximas, monitorar o movimento das estradas (drones, satélites, postos de observação etc.) e atacar os fluxos de interesse usando, por exemplo, artilharia. De resto, não necessariamente é melhor, a priori, tomar e controlar aquelas posições, pois isso poderia implicar uma maior vulnerabilidade das forças a ações hostis, o que obrigaria a Rússia a ter que alocar mais forças para proteção – com as implicações logísticas daí decorrentes. Talvez seja mais interessante para a Rússia, simplesmente, neutralizar a capacidade de ação ucraniana e enfraquecer as cidades – talvez destruindo boa parte da sua infraestrutura (não só produtiva) e fazendo com que grande parte das respectivas populações as abandonem.

É possível que a destruição pudesse ser minimizada caso o governo ucraniano aceitasse uma desmilitarização permanente. Parece razoável esperar que isso só ocorreria diante da necessidade de se evitar algo ainda pior – por exemplo, a desmilitarização de fato (pela destruição das suas forças armadas) e mais a destruição da infraestrutura produtiva do país. Não é impossível que as forças russas estejam tentando produzir esse algo ainda pior, talvez até mesmo como forma de levar o governo ucraniano a aceitar essa desmilitarização total permanente.

Levando isso em consideração, um resultado ainda mais favorável do ponto de vista das lideranças russas poderia incluir:

R6: Reconhecimento formal pela Ucrânia, e idealmente sancionado internacionalmente, da anexação da Crimeia pela Rússia e da independência de Donetsk e Luhansk.

R7: Aceitação formal pela Ucrânia, e pelo menos aceitação tácita da parte de Alemanha, EUA, França e Reino Unido (além da China), da desmilitarização permanente da Ucrânia.

Naturalmente, se forem reconhecidas como independentes, Donetsk e Luhansk poderiam depois unir-se à Rússia (voluntariamente ou não). Mas isso parece ter, no momento, importância secundária.

Do ponto de vista da garantia do acesso da Rússia à Crimeia, esses reconhecimentos significariam pouca coisa. A sua importância real residiria no fato de que, se isso viesse a acontecer, tratar-se-ia de um reconhecimento implícito também de que o entorno imediato da Rússia, constituído pelos ex-membros da União Soviética (com exceção de Estônia, Letônia e Lituânia, que já são membros plenos da OTAN), é efetivamente uma zona de influência russa a ser respeitada. Se isso efetivamente ocorrer, pode ser um resultado ainda melhor para a Rússia do que anexar integralmente a Ucrânia sem que haja reconhecimento internacional efetivo. Diante disso, a inviabilidade da adesão da Ucrânia e de outros ex-integrantes da União Soviética à OTAN ficaria de fato estabelecida.

Esses seriam passos bastante significativos a ser dados, por exemplo, pelos Estados que integram a OTAN. Só faz sentido esperar que eles o deem diante, novamente, da possibilidade de que algo muito pior pudesse ocorrer, e tivesse então que ser evitado. Duas possibilidades aparecem imediatamente: o arrasamento da Ucrânia; e/ou sua anexação pela Rússia. Sob esse aspecto, é significativo que, no discurso que fez na terça-feira que antecedeu a invasão, em 22/2/2022, o Presidente Vladimir Putin tenha insistido em que “a Ucrânia não tem tradição de ser um Estado independente” e em que “o futuro da Ucrânia está inevitavelmente ligado à Rússia”.

Mas, do ponto de vista dos russos, um resultado ainda melhor talvez seja, além dos pontos acima, um acordo que incluísse formalmente:

R8: Uma cláusula de “neutralidade da Ucrânia”, significando na prática a rejeição permanente de uma adesão à OTAN (e uma sujeição permanente à Rússia).

Esse resultado poderia ser considerado, do ponto de vista russo, ainda melhor que uma eventual anexação da Ucrânia, pois o status de grande potência regional, hegemônica, teria sido concedido claramente à Rússia, com ampla repercussão regional, e aumentando significativamente sua margem de manobra política internacional. Muitos consideram que este seria o principal objetivo da Rússia com a atual campanha, mas, além da argumentação acima, há uma dificuldade para esse entendimento: o Presidente Zelensky já anunciou publicamente, de viva voz, sua renúncia à pretensão de aderir à OTAN, mas isso não parece ter gerado qualquer movimentação das lideranças russas em direção a uma cessação das hostilidades. Tudo leva a crer que, conquanto isso possa ser um dos objetivos da Rússia, estaria longe de ser o objetivo prioritário.

* * *

Com base numa avaliação da situação anterior à atual campanha e dos interesses estratégicos russos, R1 a R8, parece-me, comporiam a pauta original das lideranças da Rússia, antes do início da campanha. Reitero: cheguei a essa lista a partir de uma análise da situação estratégica e da atuação das forças russas na Ucrânia a partir da situação estabelecida em 2015, à luz também da configuração, desdobramento e atuação das forças russas agora, em fevereiro e março de 2022.

Uma pessoa atenta observará que a lista de demandas que o Presidente Putin anunciou como condição para a cessação das hostilidades converge com esta. Se a minha análise estiver correta, isso significa duas coisas: que as lideranças russas parecem ter avaliado com consistência sua situação estratégica; e, como se verá mais adiante, parecem também ter planejado sua atuação na atual campanha de maneira consistente com essa avaliação – o que não significa que não possam estar enfrentando problemas, eventualmente sérios (ressalvando que, no caso, a informação que nos chega dos acontecimentos na Ucrânia é de baixa qualidade: ocasional, anedótica, com representatividade difícil de estabelecer).

Entretanto, há ainda outros aspectos da situação que parecem salientes, e não é impossível que também integrem, ainda que não explicitamente, a pauta das lideranças da Rússia. Por exemplo, o próprio fato de tomarem a iniciativa de uma (nova) invasão, em escala significativamente maior que a de 2014, pode servir de demonstração à OTAN de uma nova assertividade da Rússia em âmbito regional, o que, por si só, passa a exigir uma decisão da OTAN (que pode ser anunciada ou não; pode ser explícita ou tácita), ou seja: se a OTAN vai aceitar essa assertividade ou não, e até que ponto pretende ir. Se for esse o caso, a lista então incluiria ainda:

R9: Alguma forma de reconhecimento, mesmo implícito, mas ainda assim suficientemente claro, de que a OTAN se resignou a aceitar a liderança da Rússia sobre os países da antiga URSS à sua volta, com a exceção – pelo menos temporária – de Estônia, Letônia e Lituânia (membros plenos da OTAN).

Outro elemento da situação, mas, no caso, estabelecido após o início da atual campanha, a partir do momento em que se começaram a impor sanções sobre a Rússia, seria, evidentemente:

R10: O levantamento das sanções – idealmente, do ponto de vista das lideranças da Rússia, todas elas, mas, mais plausivelmente, uma boa parte delas, ainda que com alguma dilação no tempo.

Vários desses objetivos exigem a anuência de outros Estados que não a Ucrânia, e não podem ser alcançados em negociações que envolvam exclusivamente a Ucrânia. É possível que o Presidente Putin insista, de algum modo, numa negociação mais ampla, que envolva, de algum modo (ainda que indiretamente), a OTAN institucionalmente ou alguns dos seus integrantes de maior peso.

Numa primeira avaliação, portanto, podemos dizer que, se a Rússia não alcançar pelos menos os objetivos R1 (Assegurar o controle político sobre Luhansk e Donetsk para garantir um acesso terrestre seguro à Crimeia) e R2 (Enfraquecer drasticamente as forças ucranianas, eliminando por um bom tempo sua capacidade de retomar Donetsk e Luhansk), ou seu substituto (desmilitarização da Ucrânia), sua ação na Crimeia terá sido basicamente um desperdício de vidas e recursos. Uma outra consequência negativa para a Rússia seria a disseminação de uma percepção de fraqueza, o que poderia comprometer severamente qualquer expectativa de exercer uma maior assertividade política baseada no temor de sua força – sua capacidade de bullying pode ficar prejudicada. Por outro lado, se conseguir alcançar pelo menos esses dois, a Rússia poderá ter colhido uma melhora relevante na sua posição estratégica – deixando em aberto aqui o dano efetivo que uma continuidade prolongada das sanções possa vir a trazer a suas lideranças ou à sua economia (o que, evidentemente, teria implicações estratégicas no médio prazo).

Se alcançar mais do que isso, e novamente deixando em aberto o dano efetivo que uma continuidade prolongada das sanções possa vir a trazer, os resultados para a Rússia começam a ser muito, muito significativos. Não creio ser necessário elaborar esse ponto.

Observe-se que, à luz dessa análise, a questão da presença da OTAN no entorno da Rússia, embora não seja uma questão irrelevante, torna-se, pelo menos para o caso da Ucrânia, uma questão secundária. O centro do problema é a garantia da utilização e do acesso a Sevastopol. Qualquer ambição de influência de maior alcance pela Rússia depende disso. A maneira mais fácil de conter qualquer pretensão russa de influência extrarregional é negar-lhe esse acesso.

* * *

Naturalmente, como afirmado no começo, tais listas têm sempre um caráter especulativo. Certos comportamentos, por sua consistência ou inconsistência com itens da pauta, podem apontar para sua maior ou menor plausibilidade. Desse modo, uma análise do comportamento, particularmente no terreno, é necessária para essa avaliação.

Antes, contudo, é importante fazer o mesmo exercício para a Ucrânia. Parece-me que essa tarefa é um pouco menos complexa, levando-se em conta a situação de aparente desvantagem da Ucrânia. Parece-nos razoavelmente óbvio afirmar que seu objetivo mínimo seria:

U1: Sobreviver como unidade política minimamente autônoma, ainda que com o sacrifício de alguma parte do seu território.

Se é isso, a Ucrânia não tem outra opção que não seja continuar lutando de modo a impor o máximo de custos às forças russas, na expectativa de que, se houver uma quantidade muito grande de perdas, as lideranças russas terão que aceitar no mínimo uma Ucrânia que não esteja desmilitarizada e cuja infraestrutura produtiva, ou pelo menos uma parte dela, seja preservada– como forma de, no mínimo, dificultar uma nova invasão no futuro e, se possível, reconstituir suas forças para uma eventual retomada dos territórios perdidos. Evidentemente, essa aposta fica mais realista se houver um apoio militar da OTAN, ou de pelo menos alguns de seus membros, o que torna compreensível a insistência do Presidente Zelensky em arrastar a aliança para o confronto com a Rússia.

Menos do que isso, mesmo com algum acordo que preserve a existência jurídica do Estado, mas desmilitarizado e com sua política externa submetida a um veto vindo de fora, significa de fato renunciar a qualquer pretensão de autonomia, e, a meu ver, só se tornaria aceitável às lideranças ucranianas se ficasse claro que seria ou isso ou sua anexação pura e simples, com a expectativa implícita de continuidade da destruição que estaria em curso atualmente.

Mas, caso algumas coisas caminhem a seu favor, talvez a Ucrânia possa almejar algum objetivo um pouco mais robusto, como:

U2: Repelir as forças russas sem concessões territoriais adicionais, ou, pelo menos, sem o reconhecimento internacional da anexação da Crimeia e da independência de Donetsk e Luhansk.

Parece difícil conseguir reverter pelo menos a inclusão de Mariupol e arredores ao corredor Rússia-Crimeia por Luhansk e Donetsk, mas um eventual desgaste significativo das forças russas, combinadamente com possíveis eventos políticos internos à Rússia, pudesse fazer com que, pelo menos, a situação ficasse congelada no pé em que se encontra atualmente. Este já seria um resultado muito bom para a Ucrânia.

Se isso efetivamente se materializar, as lideranças da Ucrânia poderiam começar a pensar em algo mais robusto, ainda que num horizonte de tempo mais dilatado:

U3: Tornar a considerar a hipótese de acesso à OTAN;

U4: Retomar o controle sobre Luhansk, Donetsk e Crimeia.

Note-se que ambos parecem, no momento, distantes; mas, caso uma sucessão de reveses políticos e militares russos se materialize a ponto de haver, na prática, um rechaço das forças russas pelas ucranianas (ainda que com um eventual apoio externo), as dinâmicas políticas e estratégicas poderiam alterar-se substancialmente, abrindo essas possibilidades.

Análise do Teatro

De acordo com a organização e a doutrina militares russas, as principais unidades combatentes russas são os BTGs (Grupos Táticos em Nível de Batalhão), que são considerados as unidades mais preparadas e mais prontas das forças armadas russas. Em termos de capacidade combatente, cada BTG é constituído por 1 companhia de tanques (aproximadamente 10 tanques), 3 de infantaria, com composições variadas (mas, tipicamente, 20 IFVs e 10 APCs) e até 4 baterias de artilharia autopropulsada (o que daria, para as mais robustas, até 20 peças, incluindo MLRS; por simplificação, incluiu-se nesse total também a defesa antiaérea orgânica aos BTGs). Atualmente, os BTGs integram divisões, que contêm peças de artilharia rebocada e algumas autopropulsadas próprias, além das que são orgânicas aos BTGs. Em toda essa análise, salvo ressalva explícita em contrário, supor-se-á que os BTGs foram desdobrados atendendo-se às condições de preparo e prontidão doutrinariamente estabelecidas.

Em termos estritamente numéricos, a Rochan Consulting[3] estima que, em 20 de fevereiro de 2022, estariam disponíveis para a ação da Rússia na Ucrânia pelo menos 98 BTGs. Já havia vários deles em torno da Ucrânia, mas, a partir do último trimestre de 2021, a Rússia começou a desdobrar BTGs adicionais para essas áreas. Extrapolando-se essa conta, pode-se estimar que a Rússia teria aproximadamente 1.000 tanques[4], 3.000 veículos blindados de infantaria e algo entre 1.500 e 2.000 peças de artilharia autopropulsada (além da rebocada e de outras unidades alocadas às divisões). Já o Military Balance 2022 estima que haveria, no início de 2022, nada menos que 168 BTGs disponíveis para uma ação na Ucrânia (incluindo as Forças Terrestres, a Infantaria Naval e as Forças Aerotransportadas). Nesse caso, estimaríamos então algo como 1.600-1.700 tanques, 5.000 veículos blindados de infantaria e entre 3.000 e 3.400 peças de artilharia, incluindo MRLS, mas não incluindo a artilharia divisional. Em comparação, segundo o Military Balance 2022, a Ucrânia teria um pouco menos que 1.500 tanques, um pouco mais de 2.020 veículos blindados de infantaria e um pouco menos de 2.000 peças de artilharia (autopropulsada e rebocada, no total). Note-se que, numericamente, se as estimativas da Rochan Consulting estiverem corretas, as diferenças não são tão grandes em favor da Rússia – no caso dos tanques, a Rússia estaria em desvantagem numérica. Já os números do IISS dão às forças russas uma vantagem maior, mas não em tanques.

Embora, por outro lado, o equipamento russo seja de qualidade superior, a grande vantagem da Rússia estaria, quantitativa e qualitativamente, na sua artilharia e na sua infantaria. O alcance da artilharia de tubos da Rússia pode chegar a quase 50 km; e parte da artilharia de foguetes da Rússia pode alcançar até quase 90 km. A infantaria russa, além de numericamente superior, é fortemente equipada em capacidades antiaérea e antiblindados.

Em termos de aeronaves, a Rússia também teria nítida vantagem. Além de 213 bombardeiros de longo alcance, a Rússia teria, incluindo todas as aeronaves de caça e de ataque ao solo (incluindo as de emprego dual), 1.033 aeronaves. Já a Ucrânia teria um total de 115 aeronaves de caça e/ou ataque ao solo, e nenhum bombardeiro. Quanto a helicópteros de ataque, sem contar os embarcados em navios e em esquadras e distritos militares mais afastados, a Rússia teria aproximadamente 399 helicópteros, ao passo que a Ucrânia teria aproximadamente 115 helicópteros de ataque. Às vantagens numéricas, acrescentem-se as vantagens qualitativas da maioria das aeronaves russas sobre as ucranianas. Por outro lado, embora as quantidades efetivas sejam mais difíceis de se estimar, tanto a Rússia quanto a Ucrânia têm capacidade de defesa antiaérea, mas com grande vantagem, quantitativa e qualitativa, para a Rússia.

Essa mera consideração sugere algumas coisas.

  • A primeira delas é: mesmo levando-se em conta a incapacidade das forças ucranianas em 2014, não haveria por que esperar que a sua capacidade não tivesse aumentado, pois não era segredo que a Ucrânia aumentara seu equipamento total e suas forças passaram por novo treinamento. Se o Estado-Maior russo e/ou as lideranças políticas esperavam a mesma facilidade que experimentaram em 2014, isso seria um erro de avaliação crasso, muito crasso. A meu ver, dever-se-ia esperar um desempenho mais aguerrido e capaz das forças ucranianas em comparação com os eventos de 2014.
  • A segunda, levando-se em conta a primeira, é que os dados sugerem um curso de ação óbvio para as forças russas: evitar os combates de blindados e infantaria até que sua artilharia produza desgaste significativo das forças ucranianas. Isso é atrito, e atrito demora. Se a ideia das lideranças russas era uma “Blitzkrieg” para tomar Kiev rapidamente e impor um governo fantoche, elas estão com algum problema sério; tratar-se-ia aqui de uma subutilização das suas vantagens, ou seja, isso seria outro erro crasso. A forma de atuação que faria o melhor emprego das vantagens russas seria a imposição de atrito a distância. Isso não exclui o fato de que as forças russas tenham que, eventualmente, realizar ações de reconhecimento em força, de modo a obrigar as forças ucranianas a lutar e, a partir daí, direcionar os fogos contra elas, de modo a reduzi-las.
  • Isso também pode explicar a pequena participação de meios aéreos russos nos combates. Em princípio, a realização de ataques aéreos poderia expor suas aeronaves de asa fixa e helicópteros às defesas aéreas e antiaéreas ucranianas, ao passo que essas ações de ataque ao solo podem perfeitamente ser substituídas pela artilharia russa, pelos sistemas de lançamento múltiplo de foguetes (que podem atingir alvos a 90 km de distância) ou, em casos mais extremos, pelos mísseis balísticos de curto alcance russos; contra as aeronaves de asa fixa e rotatória ucranianas, a defesa antiaérea dos BTGs e das divisões poderia ser empregada, poupando as aeronaves e minimizando o esforço logístico relacionado a combustível.
  • A avaliação, frequente entre comentaristas, de que “a ofensiva russa visava a realizar uma Blitzkrieg que permitisse tomar rapidamente a capital e impor um governo fantoche, e, como isso não ocorreu, a ofensiva russa fracassou” parece em desacordo com a situação, tal como descrita acima, e com o desdobramento das forças russas imediatamente antes da nova ofensiva. Pelo contrário, as considerações acima sugerem minimizar o risco para as forças russas, usando as imensas vantagens da artilharia russa para impor, a longas distâncias, o máximo de perdas às forças ucranianas e, também, o máximo dano à capacidade produtiva do país. Ainda que se pudesse esperar que algum governo fantoche impusesse uma desmilitarização da Ucrânia (o que não parece muito realista), não me parece razoável esperar que mesmo um governo fantoche deliberadamente reduzisse a capacidade produtiva do país.
  • O comportamento das forças russas na Ucrânia, até o momento, parece consistente com essa perspectiva delineada acima. Não estou com isso afirmando que as forças russas não estão enfrentando problemas de planejamento logístico ou de disposição para o enfrentamento, ou que não estão sofrendo baixas significativas em enfrentamentos. Pode ser que sim, pode ser que não – a qualidade das notícias sobre os acontecimentos é muito baixa. O que se afirma aqui é que a atuação das forças russas na Ucrânia, até o momento, parece condizente com o exposto acima.
  • Essa hipótese da Blietzkrieg para Kiev também é inconsistente com o desdobramento de forças no sul e no noroeste da Ucrânia. Se se tratava de uma Blietzkrieg, havia, pelo jeito, um Plano B gigante.
  • E, diante dessas considerações, como dar conta das notícias de “tanques” (que, no noticiário, acabam sendo o nome genérico para todos os veículos blindados) russos destruídos, se eles não estiverem engajando? Reiterando que a qualidade da informação que está chegando é muito baixa, o mais provável é que os engajamentos decorram de ações de reconhecimento em força.  Nesse caso, esse tipo de engajamento estaria provendo ocasião para alguma destruição de veículos blindados russos (e também para a produção de muitas imagens).

O que não é possível saber, nesse momento, com qualquer confiabilidade, é: como está sendo o desempenho das forças de cada lado? Qual o desgaste que as forças ucranianas e russas sofreram até agora? Como está a situação logística (principalmente combustível e munição) de cada lado? E o moral de cada lado? Essas são as questões de que dependerão o rumo das negociações. O problema, como já disse, é que não há, no momento, informação confiável o suficiente para respondê-las. Por exemplo, mencionaram-se, alguns dias atrás, estimativas de agências de inteligência ocidentais segundo as quais a Rússia só teria combustível e suprimento para mais 10 dias. Pelas minhas contas, esse prazo se teria encerrado em 24 de março de 2022.

Sendo assim, o melhor é rastrear aquilo que for relevante e inequívoco, e dar pouca atenção ao que for secundário e ambíguo. Isso poderá dar uma melhor ideia do andamento das coisas.

Por exemplo, notícias de “retomadas” ou “expulsões” da Rússia de determinadas cidades são de valor discutível. Se o que se disse acima – que o controle efetivo das cidades é dispensável ou irrelevante para as forças russas, com exceção de algumas poucas, como Mariupol, Kherson, Mykolayiv e Odessa –, mesmo supondo que as forças russas tenham entrado e depois saído, seja porque quiseram, seja porque os ucranianos as repeliram, esses supostos sucessos não alteram em nada o desenrolar da ação. Do mesmo modo, correm notícias de que “as forças russas teriam desistido de Kiev”, mas não há, até o momento, notícias de grandes movimentações de forças afastando-se de Kiev (embora o deslocamento de um comboio maior rumo a Kiev tenha sido noticiado dias a fio). Em muitos casos, é possível que a ação russa dentro da cidade ou da vizinhança tenha sido uma incursão de pequeno porte, com objetivos limitados, ainda que sujeita a ação hostil, com possíveis baixas. Isso não impacta o desenrolar geral da guerra. Do mesmo modo, há o tempo todo menções a quantidades de perdas russas – cujas fontes são, quase sempre, autoridades ucranianas –, mas nenhuma referência às perdas sofridas pelas forças ucranianas. Assim, torna-se impraticável qualquer avaliação do que está ocorrendo efetivamente no teatro.

Algumas situações específicas podem ser vir de teste. Por exemplo, as forças russas só avançaram sobre Mariupol, ao que consta, depois de a cidade ter sofrido danos muito severos. Sendo Mariupol uma das cidades que, para as forças russas, faria sentido controlar, pode-se tratar de um indício de que esse seria o comportamento a ser adotado por elas: só efetivamente adentrar as cidades a controlar depois de impor-lhes perdas muito substanciais. Em outro exemplo, em 26 de março de 2022, houve notícias de que as forças russas estariam sendo repelidas de Kherson; depois, não se falou mais no assunto. Sendo Kherson outra cidade importante que faria sentido às forças russas controlar (sendo um porto importante na foz do Rio Dnieper), uma expulsão definitiva das forças russas seria uma notícia significativa.

Excurso: é possível uma ocupação?

Uma consideração adicional está relacionada à capacidade da Rússia de, eventualmente, vir a conduzir uma ocupação. Particularmente, citaram-se com alguma frequência trabalhos de James Quinlivan[5], cuja implicação seria que, para viabilizar uma ocupação efetiva da Ucrânia, seriam necessários aproximadamente 800 mil soldados russos. A meu ver, essa análise é improcedente.

Em primeiro lugar, as premissas são inteiramente diferentes: a análise de Quinlivan é voltada para operações de estabilização, ou seja, em que há efetivamente uma perspectiva de reconstrução de um país funcionando com alguma normalidade e estabilidade. manter a ocupação contra uma eventual oposição armada, ainda que irregular, e viabilizar uma vida, digamos, normal para o restante da população. Não creio que estas sejam as prioridades estabelecidas pela liderança para as forças russas. Outro elemento é que mesmo a repressão normalmente tem limites muito mais rígidos para as forças ocidentais do que as que se imporão para as forças russas, e uma repressão implacável costuma ter efeitos surpreendentes. Segundo, na análise de Quinlivan, as contas são feitas com todo o pessoal; no caso dos EUA, isso inclui todo o pessoal ocupado com atividades logísticas transoceânicas – operações intermodais, instalações avançadas de manutenção e armazenamento, construção e manutenção de estradas e ferrovias, instalações médicas de grande porte etc.; no caso da Rússia, que é contígua à Ucrânia, esses elementos não estão presentes. Outro elemento importante: se a oposição armada contará com apoio externo – inclusive suprimento clandestino de equipamento, munição, peças de reposição, suprimentos, reforços, comunicação – e santuário; o terreno da Ucrânia não favorece essas atividades, o que implica que a quantidade de pessoas empregadas nessas tarefas pode ser menor ali – a não ser que o acesso pelo oeste da Ucrânia não seja controlado pelas forças russas. Em suma, muitas variáveis incidem na determinação desses números. Vou dar apenas alguns exemplos, sem a pretensão de exaustividade:

  • Em que medida o terreno é ou não favorável à ação prolongada de uma oposição doméstica armada (o da Ucrânia é desfavorável);
  • Em que medida haveria relativa facilidade de movimentação clandestina de pessoas, equipamentos e suprimentos para dentro e para fora da Ucrânia (seria difícil);
  • Se haveria ou não disponibilidade de santuários:
    • seja dentro da Ucrânia (não me parece plausível);
    • seja em suas vizinhanças – em tese, até poderia ser possível, mas a Bielorrússia/ Belarus é forte aliada na Rússia inclusive na atual empreitada; é difícil imaginar a Moldávia/ Moldova incorrendo na ira da Rússia nesse momento; e, no caso dos outros países fronteiriços (Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia), que pertencem à OTAN, isso significaria, na prática, entrar na guerra, e, se estão dispostos a isso, deveriam então entrar agora, de modo a enfraquecer a Rússia empenhada numa campanha;
  • De qualquer modo, caso haja efetivamente uma neutralização do acesso ao interior da Ucrânia pelas estradas a oeste, as dificuldades serão muito maiores para uma oposição armada clandestina do que nos exemplos estudados por Quinlivan.
  • Na ausência de apoio externo, a capacidade doméstica de prover os recursos necessários à oposição armada prolongada (as forças russas não têm demonstrado especial cuidado em proteger a infraestrutura, e possivelmente estejam mais predispostas a uma política de terra arrasada do que as potências ocidentais nos casos examinados por Quinlivan);
  • Quão implacável pode ser a maneira de lidar com a oposição (a Rússia do Presidente Putin parece ter menos restrições a isso que outros países com controles jurídicos e disciplinares mais rigorosos – um outro aspecto de uma possível política de terra arrasada);
  • A maior ou menor tolerância a fatalidades entre seus próprios soldados (é plausível que as lideranças russas se importem menos com isso, talvez em função de sua menor sujeição à opinião pública doméstica);
  • A maior ou menor dificuldade de mover forças, equipamentos, munições e suprimentos em apoio a suas próprias forças (sendo a Rússia fronteiriça à Ucrânia, há uma necessidade muito menor de efetivos alocados pura e simplesmente à viabilização das operações logísticas intermodais). As análises de Quinlivan são todas baseadas em operações transoceânicas, com necessidade de instalações portuárias, postos avançados de estocagem e manutenção, centros de distribuição etc., que são minimizados pela pura e simples contiguidade da Rússia com relação à Ucrânia, com relativa facilidade de movimentação.

Assim sendo, supondo que as forças russas consigam impor severo desgaste às forças ucranianas com comparativamente poucas perdas, principalmente em termos de infantaria (indivíduos e veículos), as forças russas atualmente desdobradas na Ucrânia, pelo menos segundo os cálculos do Military Balance 2022, parecem-me, em princípio, suficientes para uma ocupação efetiva (ainda que com padrões abaixo do que geralmente se espera, e ressalvados erros grosseiros de condução e de planejamento).

Aspectos a observar para avaliação da Guerra da Ucrânia

Sugiro, portanto, observar:

  • Se, efetivamente, há alguma movimentação significativa de forças russas;
  • Quais as áreas estão sendo bombardeadas ou deixaram de ser bombardeadas, e em que estado estas últimas se encontram. Sob esse aspecto, chama-me a atenção a aparente falta de sistematicidade nos ataques no oeste da Ucrânia, em Chernivtsi, Ivano-Frankivsk, Lviv e Lutsk – as menções a ataques a Lviv se dão em contextos específicos: o emprego de um míssil hipersônico no dia 17 de março, um bombardeio quando da reunião da OTAN na Polônia, com a presença do Presidente Biden. Como as estradas nessa área são cruciais para impedir a chegada de apoio externo às forças ucranianas, seria de esperar-se intensa atividade nessas posições. Se realmente isso não estiver ocorrendo, pode-se tratar de um indício de que as prioridades de combustível e munição estejam sendo redirecionadas para outras áreas. Isso, aliás, é o que mais me intriga, nesse momento, na campanha russa: uma vez que foi anunciado o envio de recursos para os ucranianos, as forças deveriam estar-se movendo para controlar esses acessos, principalmente em Lutsk, Lviv, Ivano-Frankivsk e Chernivtsi. Quando começou o bombardeio no Oeste, perto de Lviv, na sexta/sábado, pareceu-me que começara a ação para tomada desses objetivos; mas acabou sendo uma ação isolada. Talvez isso signifique algum problema logístico real, de fato, para as forças russas, ou algum outro tipo de impedimento; ou talvez as forças russas queiram deixar o caminho livre para quem quiser sair da Ucrânia. O fato é que estou intrigado com essa ausência de movimentação no oeste da Ucrânia.
  • A falta de urgência demonstrada pela Rússia em relação a Kiev pode ser indício de problemas logísticos, ou então de que a Rússia está protelando a decisão para enfraquecer o máximo possível a Ucrânia antes disso. Sob esse aspecto, chama também a atenção o contraste entre a pressão por negociações diretas que vem sendo feita pelo Presidente Zelensky e a falta de resposta do Presidente Putin quanto a isso. Esse contraste sugere, naturalmente, uma urgência muito maior do Presidente Zelensky em negociar do que a manifestada pelo Presidente Putin – o que parece sugerir que a situação estar-se-ia encaminhando mais favoravelmente ao Presidente Putin que ao Presidente Zelensky, embora seja possível considerar também que se trate de um exercício de administração de expectativas por parte das lideranças russas.
  • Ao fim e ao cabo, os testes mais importantes são os termos do acordo de paz, se houver, ou o estado da Ucrânia e das forças russas quando houver alguma estabilização da situação. Os critérios para avaliação, tanto durante quanto depois de encerradas as hostilidade, são os mesmos propostos por Diniz e Proença Jr., no texto citado anteriormente: quanto dos objetivos de cada parte foi alcançado; como o balanço de forças entre os contendores se alterou; e como se alterou o balanço de forças entre os contendores e outros atores com quem possam interagir tendo a força como elemento do cálculo político.

Eugenio Diniz é Diretor-Executivo da Synopsis — Inteligência, Estratégia, Diplomacia; professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e da SKEMA Business School; e membro do International Institute for Strategic Studies (IISS, Londres).

Agradeço as sugestões e comentários de Antônio Jorge Ramalho Rocha, Augusto Teixeira Jr., Daniela Vieira Secches, Danielle Jacon Ayres Pinto, Domício Proença Jr. e Layla Dawood. As considerações apresentadas permanecem responsabilidade inteiramente minha.

Comentários são bem-vindos. Por gentileza, envie-os para synopsis@synopsisint.com.

Referência

Charap, Samuel, et al. Russian Grand Strategy: Rhetoric and reality. Santa Monica (CA), Rand, 2021.

Diniz, Eugenio; Proença Jr., Domício. “No victory in war: Assessing the outcomes of war considering political goals and the balance of forces.” Comparative Strategy, 39:6, 565-578, DOI: 10.1080/01495933.2020.1826852

Karber, Phillip; Thibeault, Joshua. Russia’s new generation warfare. 2016. Disponível em https://www.ausa.org/articles/russia%E2%80%99s-new-generation-warfare

Kofman, Michael, et al. Lessons from Russia’s Operations in Crimea and Eastern Ukraine. Santa Monica (CA), Rand, 2017.

Quinlivan, James T. “Force Requirements in Stability Operations,” Parameters 25, no. 1 1995, doi:10.55540/0031-1723.1751.

Quinlivan, James T. “Burden of Victory: The painful arithmetic of stability operations”. RAND Review 27 (2), 2003. pp. 28-29.

Rochan Consulting. Tracking Russian deployments near Ukraine – Autumn-Winter 2021-22. Disponível em https://rochan-consulting.com/tracking-russian-deployments-near-ukraine-autumn-winter-2021-22/. Acesso em 24 de março de 2022.

The International Institute for Strategic Studies (IISS). Russia’s Military Modernisation. London, IISS, 2020.

The International Institute for Strategic Studies (IISS). The Military Balance 2022. London, IISS, 2022.

[1] A respeito, ver Diniz, Eugenio; Proença Jr., Domício. “No victory in war: Assessing the outcomes of war considering political goals and the balance of forces.” Comparative Strategy, 39:6, 565-578, DOI: 10.1080/01495933.2020.1826852

[2] Em 24 de fevereiro de 2014, o Conselho Municipal de Sevastopol nomeou prefeito um cidadão russo, e unidades da Infantaria Naval russa adentraram a cidade. Embora o movimento das forças tenha-se iniciado dois dias antes, 24 de fevereiro é o primeiro acontecimento público, e, a meu ver, marca o início da campanha. Para uma análise dos acontecimentos na Ucrânia de fevereiro de 2014 a fevereiro de 2015, v. Kofman, Michael, et al. Lessons from Russia’s Operations in Crimea and Eastern Ukraine. Santa Monica (CA), Rand, 2017.

[3] https://rochan-consulting.com/tracking-russian-deployments-near-ukraine-autumn-winter-2021-22/

[4] Nesta análise, não distinguiremos entre MBTs e tanques de reconhecimento.

[5] Quinlivan, James T. “Force Requirements in Stability Operations,” Parameters 25, no. 1 1995, doi:10.55540/0031-1723.1751; Quinlivan, James T. “Burden of Victory: The painful arithmetic of stability operations”. RAND Review 27 (2), 2003. pp. 28-29. 

Mulheres no Itamaraty: um espaço reduzido e um reconhecimento insuficiente - André Bernardo (BBC)

 'Itamaraty continua a usar terno e gravata': a luta das mulheres por espaço na diplomacia brasileira


André Bernardo
Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
BBC Brasil, 10 abril 2022, 09:22

Quando prestou concurso para o Itamaraty, em 28 de agosto de 1918, a baiana Maria José de Castro Rebello Mendes, de 27 anos, não pensava em levantar bandeiras. Queria apenas uma fonte de renda para sustentar a mãe viúva e uma irmã doente — o pai, advogado, tinha acabado de ser assassinado, em circunstâncias misteriosas, na Floresta da Tijuca, no Rio.

Mas ela acabou escrevendo seu nome na história da diplomacia brasileira como a primeira mulher a ingressar no Ministério das Relações Exteriores (MRE).

Foram 19 provas em sete dias: de português a aritmética, de datilografia a direito, de inglês a alemão. Ao fim da exaustiva maratona de testes escritos, exames orais e até uma redação sobre Minas Gerais, Maria José de Castro Rebello Mendes (1891-1936) foi aprovada em primeiro lugar no concurso. Era a única mulher, entre cinco homens, a disputar a vaga de terceiro oficial da Secretaria de Estado.

"No período imperial, os diplomatas brasileiros eram homens, brancos e bem vestidos, recrutados no seio da elite econômica e intelectual porque o Brasil buscava reproduzir os padrões europeus de 'nobreza'", explica Gabrielly Amparo, doutoranda em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora de A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: O Itamaraty e a Desigualdade de Gênero (2021).

"A mulher não faz parte da história oficial do Itamaraty. Elas não estão presentes em cargos de visibilidade e prestígio internacionais. Logo, se não são 'vistas', tornam-se 'invisíveis' e 'inexistentes'. Aquilo que desconhecemos, não existe".

Procurado, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) não respondeu as perguntas enviadas pela reportagem.

A aprovação de Maria José suscitou polêmica. Muita polêmica. "Podem as mulheres ocupar cargos públicos?", questionou o jornal A Noite na edição de 31 de agosto de 1918. Até o escritor Lima Barreto (1881-1922) classificou como "ideia de botequim" a decisão do então ministro Nilo Peçanha (1867-1924) de dar posse a uma mulher. "Sua Excelência, eu lhe rogo, procure arranjar para as meninas bons maridos, honestos e trabalhadores", escreveu o autor em artigo publicado no jornal ABC do dia 5 de outubro de 1918.

Alvo de críticas e protestos, Maria José chegou a consultar o jurista Ruy Barbosa (1849-1923) sobre se poderia concorrer a cargo público. Diante do seu parecer favorável, ela oficializou sua inscrição. "Melhor seria, certamente, para seu prestígio que continuasse à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração", despachou o chanceler Nilo Peçanha.

"Quando começou a trabalhar no Itamaraty, em 1º de outubro de 1918, o ministério teve que adaptar, às pressas, espaço para uso como banheiro feminino, pois somente existiam na repartição sanitários masculinos", explica o ministro Guilherme José Roeder Friaça, cônsul-geral adjunto em Madri, no livro Mulheres Diplomatas no Itamaraty (1918-2011) — Uma análise de trajetórias, vitórias e desafios (2018).

Responsável por abrir as portas da diplomacia brasileira às mulheres, Maria José morreu em 29 de outubro de 1936, aos 45 anos, de osteomielite.

Mais de um século se passou e pouca coisa mudou na diplomacia brasileira. O Itamaraty continua a ser um reduto predominantemente masculino. De 1953 a 2019, segundo o Anuário do Instituto Rio Branco (2020), 2.235 candidatos foram aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). Desses, apenas 454 (20,3%) eram mulheres.

"Há variáveis que ajudam a explicar essa predominância masculina. A primeira delas é estrutural. No mundo do trabalho, os homens são a maioria nos espaços de decisão, privilégio e salário", afirma Karla Gobo, doutora em Sociologia pela Unicamp e autora do artigo Da Exclusão à Inclusão Consentida: Negros e Mulheres na Diplomacia Brasileira (2018). "Enquanto os homens seriam o polo racional, objetivo e afeito à vida pública, as mulheres seriam emotivas, menos objetivas e voltadas aos cuidados da vida privada".

Entre os 1.543 diplomatas brasileiros, apenas 354 (23%) são do sexo feminino
No dia 22 de fevereiro de 2022, a embaixadora Irene Vida Gala postou em seu perfil no Twitter: "Associar, em nossos dias, a ausência de mulheres em posições destacadas no MRE a qualificação definitivamente desautoriza o autor do comentário". A postagem era um desabafo a uma declaração dada pelo diplomata Sérgio Amaral na noite anterior, em entrevista ao programa Roda Viva, em que disse ser necessário combinar "representatividade com qualificação" das mulheres diplomatas.

"É uma vergonha um colega homem fazer esse julgamento de suas colegas mulheres. Toda e qualquer pessoa minimamente informada sabe que a reduzida presença de mulheres é de ordem estrutural e jamais por qualificação inferior", afirma Vida Gala. E acrescenta: "Não quero saber das razões históricas para a situação ser como é hoje. O que interessa é saber por que a instituição e seus representantes ainda não empreenderam uma política efetiva para a promoção da igualdade de gênero no Itamaraty. E a resposta é clara: porque não querem mudar".

Formada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Irene ingressou no Itamaraty em 1985. Em uma turma de 44 alunos, só 10 eram mulheres. E, dessas 10, seis já chegaram ao posto de embaixadoras, um coeficiente de sucesso (60%) não alcançado pelos homens. "Nenhuma de nós obteve, até o momento, nenhum papel de destaque na carreira", enfatiza. "O máximo que alcançamos foi uma subsecretaria de Administração".

No exterior, Vida Gala esteve em missões permanentes em Lisboa, Luanda e Pretória e, provisórias, em Bissau, Lusaca e Dacar. Isso sem contar as incontáveis visitas em missão oficial a países do continente africano, como Moçambique, Quênia e Etiópia. Hoje, atua no Escritório de Representação do MRE em São Paulo. "É preciso denunciar a postura machista do Itamaraty. Sou reconhecida dentro e fora da instituição como uma especialista em temas africanos. Mas nunca consegui ser chefe do Departamento da África. O meu é um desses muitos casos em que a tese da falta de qualificação não se sustenta".

Em 2018, por ocasião do centenário da entrada de Maria José na diplomacia brasileira, o Itamaraty lançou a campanha #maismulheresdiplomatas. Dos cerca de 3 mil servidores da pasta, apenas 37% são mulheres (1.114). Entre os 1.543 diplomatas, 23% são do sexo feminino (354) e, entre 213 embaixadores, 20% (43).

A título de comparação, segundo levantamento do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), o percentual de embaixadoras em outros países é: Suécia (49%), Filipinas (41%), Austrália (40%), EUA (36%) e Irlanda (35%). Entre os sul-americanos, o melhor índice pertence à Colômbia (28%).

"Não havia nenhuma convicção institucional por trás dessa campanha", afirma Vida Gala. "Nenhum homem do Itamaraty usou seu lugar de poder para assumir, em alto e bom som, uma posição em defesa do ingresso de mais mulheres na carreira. Foi um blefe para reduzir a pressão. Ou, em linguajar diplomático, para inglês ver". E conclui: "Tudo se resume a uma palavra: querer. É preciso querer ampliar a representatividade. E, até que se prove em contrário, esse desejo não existe".

Se nada for feito, igualdade de gêneros só será alcançada em 2066
No dia de sua posse, em 2003, a conselheira Viviane Rios Balbino se surpreendeu ao encontrar, em uma turma de 39 diplomatas, apenas quatro outras mulheres: "Onde estão minhas colegas?".

Recém-saída da Universidade de Brasília (UnB), onde a paridade no curso de Psicologia era normal, Viviane não conhecia, até então, as razões históricas e sociais que determinavam que a carreira diplomática fosse masculina. No mestrado em diplomacia pelo Instituto Rio Branco, transformou seu questionamento em pesquisa. Em 2005, apresentou a dissertação Diplomata. Substantivo Comum de Dois Gêneros. Um Retrato da Presença Feminina no Itamaraty no Início do Século 21.

No exterior, serviu na missão do Brasil junto à OEA, em Washington, e na embaixada em Doha, no Catar. "Enquanto vários países põem em marcha medidas que vão desde campanhas de recrutamento para mulheres até metas mínimas de promoção e lotação em postos no exterior, no Brasil temos apenas ações pontuais, adotadas em caráter informal", lamenta a chefe da Divisão de Nações Unidas I do Itamaraty.

Durante o governo Lula, o ministro Celso Amorim adotou uma política informal de cotas para promoção de mulheres. Segundo o estudo A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: o Itamaraty e a Desigualdade de Gênero (2021), a proporção de mulheres promovidas entre os diplomatas cresceu de 16% para 29%. No entanto, com o fim do governo, a medida logo perdeu fôlego.

"O que se busca não é um afago, nem ganhos individuais para algumas diplomatas, mas uma mudança institucional, de longo prazo. Para isso, é fundamental contar com liderança e vontade política suficientes para enfrentar as resistências, esperadas e conhecidas", afirma Balbino.

À frente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, a senadora Kátia Abreu defende um projeto de lei que reserve pelo menos 30% das vagas de embaixador para mulheres.

"É preciso que uma mulher ocupe lugar de decisão para detectar discrepâncias invisíveis para a maioria masculina", observa Balbino.

Segundo a conselheira, países como França, Austrália e África do Sul já adotaram cotas de gênero para cargos de chefia. No Brasil, não há unanimidade sobre o assunto, nem mesmo entre as mulheres. "Numa carreira em que os avanços devem ser baseados em mérito, um sistema de cotas talvez não constitua o melhor caminho, mas pode ser o começo de uma solução", pondera a embaixadora Thereza Quintella.

Mas, a julgar pelo índice de mulheres aprovadas no concurso entre 1954 e 2010, a tão esperada paridade entre os sexos só seria alcançada no distante ano de 2066. A conclusão é do estudo As Mulheres na Carreira Diplomática Brasileira: Uma Análise do Ponto de Vista da Literatura sobre Mercado de Trabalho e Gênero (2016), dos pesquisadores Rogério Farias e Géssica Carmo. A embaixadora Irene Vida Gala é uma das maiores entusiastas do projeto: "É preciso somar a nossa luta, a das mulheres diplomatas, à de tantas outras mulheres em outras categorias funcionais em que são igualmente postas à margem. Nossa luta é comum. Estamos todas em uma mesma luta por igualdade e respeito", diz.

Mais de 100 relatos de comportamento sexista
Toda vez que a diplomata Sônia Regina Guimarães Gomes é convidada para dar palestra uma pergunta que, invariavelmente, lhe fazem é: "Como conciliar família e carreira?".

"A predominância masculina no Itamaraty ainda é uma incógnita. Há hipóteses que precisariam ser comprovadas e outras que eu simplesmente descartaria. A mais comum é que a carreira tornaria a vida familiar mais difícil para as mulheres", afirma a atual embaixadora do Brasil na República Tcheca. "Tenho uma suspeita particular. Como é um concurso de muita dedicação e empenho e, para alguns candidatos, de múltiplas tentativas, há menos estímulo, muitas vezes da própria família, às mulheres. Eu mesma senti, quando estava me preparando, que era tudo ou nada".

Sônia Gomes é formada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e ingressou no Itamaraty em 1987. Já trabalhou nas embaixadas brasileiras em Bridgetown (Barbados), Roma (Itália), Assunção (Paraguai) e Praia (Cabo Verde). Atuou como cônsul-adjunta no Consulado-Geral em Los Angeles e em Chicago e, também, como chefe no Escritório Financeiro em Nova York.

Ao longo desses 35 anos, nunca sofreu nem testemunhou assédio sexual ou moral. Mas em 2015, muitas mulheres, entre servidoras e diplomatas, por meio de um grupo fechado no Facebook, relataram, em menos de 72 horas, mais de 100 casos de comportamento sexista dentro da instituição. Havia até denúncias de assédio moral e sexual.

Em um dos relatos, uma diplomata conta que passou a ser perseguida por um ex-chefe que lhe mandava flores e bilhetes. Como ela resistiu às suas cantadas, foi lotada em uma divisão de pouco prestígio, incompatível com as notas que tirou no curso. Em outro, uma diplomata reclamava do chefe que pedia aos servidores que batessem palmas toda vez que ela entrava na sala. "Essa atitude corajosa levou a uma grande reflexão interna", recorda Sônia Gomes.

"Na época em que os relatos foram publicados, colegas homens me procuraram para saber se certos comportamentos, reputados como natural para eles eram agressivos para nós, mulheres. Senti que, para muitos, havia uma sincera vontade de entender o que nos incomodava, apesar de não ter sido o sentimento geral".

Brasil nunca teve ministra das Relações Exteriores ou secretária-geral
Quando se inscreveu no concurso do Instituto Rio Branco, em 1958, Thereza Maria Machado Quintella não fazia ideia dos preconceitos que teria de enfrentar. Dos 13 alunos da turma, apenas duas mulheres: ela e Maria Rosita Gulikers de Aguiar. Quando o Itamaraty designou suas respectivas unidades, Quintella deparou-se com aquilo que passou a chamar de "exclusão sistêmica".

"Embora tivéssemos concluído o curso na primeira metade da turma, fomos destinadas à área consular, de menor visibilidade, enquanto colegas com notas inferiores às nossas foram para unidades que tratavam de assuntos econômicos, políticos ou comerciais", explica. Alguns anos depois, Thereza Quintella voltou a se sentir vítima de discriminação. Casada e com dois filhos pequenos, pleiteou um posto perto do Brasil, de preferência no Uruguai ou na Argentina.

Como o Itamaraty não admitia a presença de mais de um diplomata em cada capital, mesmo havendo mais de um posto em Montevidéu e em Buenos Aires, o chefe da Administração lhe ofereceu um consulado em Baía Blanca, a 650 quilômetros da capital argentina. "Era um posto inexpressivo e sem movimento, que estava vago havia dois anos porque nenhum marmanjo aceitava ir para lá. E eu, ingenuamente, aceitei", relata. Passado algum tempo, voltou a pedir transferência para o exterior. Dessa vez, o Itamaraty ofereceu, "como se fosse um prêmio", um consulado em Gênova.

"Outro posto marginal que significaria o fim das minhas perspectivas de sucesso na carreira", avalia. "Nessa armadilha, porém, eu, mais atenta, não caí: resisti, negociei e consegui ser destinada à missão permanente em Bruxelas junto às Comunidades Europeias, hoje União Europeia".

Primeira aluna do Instituto Rio Branco a ser promovida a embaixadora, Thereza Quintella serviu em Viena (1991-1995) e Moscou (1995-2001). Em sua última remoção, já em 2005, assumiu o posto de cônsul-geral em Los Angeles, função que ocupou até 2008, quando se aposentou.

"Mais importante do que saber quantas são as embaixadoras, é fundamental saber que funções ocupam. E a realidade é que a face visível do Itamaraty continua a usar terno e gravata", afirma. "Nunca tivemos uma mulher nas funções de ministro de Estado ou de secretário-geral. Nenhuma das embaixadas de maior visibilidade para a nossa política externa está hoje confiada a mãos femininas".

Entre os sul-americanos, a Colômbia é o país que teve o maior número de ministras das Relações Exteriores: sete. Peru, Equador e Suriname tiveram quatro; Bolívia, Chile, Argentina, Venezuela e Guiana, duas e o Paraguai, uma. O Uruguai nunca teve uma chanceler. Em compensação, teve duas secretárias-gerais.

Tem mais. Brasileiras nunca chefiaram postos estratégicos, como Washington, Buenos Aires, Londres, Tóquio ou Pequim. "O que falta é, sobretudo, vontade política de dar às diplomatas brasileiras mais oportunidades de ocuparem posições em que seu trabalho e sua capacidade de liderança possam ser valorizados".

Documentário expõe os desafios enfrentados por mulheres na diplomacia
Em 2018, Gisela Maria Figueiredo Padovan foi convidada para assumir a direção-geral do Instituto Rio Branco. O órgão, fundado em 1945, é responsável pela seleção e treinamento dos diplomatas brasileiros. Surpresa com o convite, Padovan reagiu com o famoso: "Será que sou capaz?". Diante disso, o colega que a indicou para o cargo provocou: "Quer dizer que você já chegou no seu teto?". Só então ela se deu conta de que ela própria estava impondo limites a si mesma.

Cônsul-geral em Madri, Gisela Padovan é formada em Letras pela USP e ingressou na carreira diplomática em 1991. Sua turma, de 21 diplomatas, tinha apenas três mulheres. "Naquela época, situações de constrangimento moral ou sexual não eram claramente definidas como assédio", recorda a diplomata, que foi promovida à ministra de primeira classe, o mais elevado grau da carreira diplomática brasileira, em 2017.

"Fui, sim, objeto de situações que hoje seriam inaceitáveis. Só que, na época, apesar de constrangida, não me ocorreu fazer qualquer reclamação e tampouco saberia como fazê-la". Padovan serviu na missão permanente do Brasil junto às Nações Unidas (1997-2000) e nas embaixadas em Buenos Aires (2000-2003) e em Washington (2007-2013).

Gisela Padovan integrou a campanha #maismulheresdiplomatas, promovida pelo MRE. Em seu depoimento, admite que nunca tinha sonhado ser diplomata. Mas conta que mudou de ideia ao abrir um jornal em 1988 e ler a notícia: "Paranaense é a primeira colocada no Itamaraty". A paranaense do título era Eugênia Barthelmess, hoje embaixadora em Cingapura. "Isso me inspirou a seguir essa carreira", relata.

Ainda em 2018, Padovan participou do documentário Exteriores - Mulheres Brasileiras na Diplomacia, um projeto do Grupo de Mulheres Diplomatas, criado em novembro de 2013. Inspirado no documentário francês Par Une Porte Entreouverte ("Por Uma Porta Aberta"), contou com o depoimento de nove embaixadoras, duas conselheiras e duas secretárias.

O documentário, escrito por Ana Beatriz Nogueira e dirigido por Ivana Diniz, resgata as histórias de outras pioneiras da diplomacia brasileira, como Odette de Carvalho Souza (1904-1969), a primeira embaixadora brasileira, e Mônica de Menezes Campos (1957-1985), a primeira diplomata negra.

Indagada sobre como mudar esse cenário de desigualdade de gênero, Gisela Padovan afirma que é preciso ter consciência do problema e não se escorar no falso discurso da meritocracia. "O argumento de que 'não há mulheres', largamente utilizado pelas chefias do Itamaraty, não se sustenta quando se verifica que dezenas de mulheres, igualmente qualificadas, seguem sendo preteridas em escolhas ou votações feitas, aliás, por comissões formadas majoritariamente por homens".

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60961480

domingo, 10 de abril de 2022

The Commodity-Currency Revolution Begins... - by Tyler Durden (ZeroHedge.com)

 Essa conversa de saída de um sistema monetário mundial baseado numa economia dominada pelo dólar para um concorrente baseado em commodities me parece inerentemente frágil, uma vez que a volatilidade das commodities é bem maior do que a desprezada financialização da economia mundial. Vai ser difícil superar o velho dólar.

Paulo Roberto de Almeida

The Commodity-Currency Revolution Begins...

by Tyler Durden
ZeroHedge.com, Saturday, Apr 09, 2022 - 10:20 AM

Authored by Alasdair Macleod via GoldMoney.com,

https://www.zerohedge.com/geopolitical/commodity-currency-revolution-begins

We will look back at current events and realise that they marked the change from a dollar-based global economy underwritten by financial assets to commodity-backed currencies. We face a change from collateral being purely financial in nature to becoming commodity based. It is collateral that underwrites the whole financial system.

The ending of the financially based system is being hastened by geopolitical developments. The West is desperately trying to sanction Russia into economic submission, but is only succeeding in driving up energy, commodity, and food prices against itself. Central banks will have no option but to inflate their currencies to pay for it all. Russia is linking the rouble to commodity prices through a moving gold peg instead, and China has already demonstrated an understanding of the West’s inflationary game by having stockpiled commodities and essential grains for the last two years and allowed her currency to rise against the dollar.

The Credit Suisse analyst, Zoltan Pozsar, calls it Bretton Woods III. This article looks at how it is likely to play out, concluding that the dollar and Western currencies, not the rouble, will have the greatest difficulty dealing with the end of fifty years of economic financialisation.

Pure finance is being replaced with commodity finance

It hasn’t hit the main-stream media yet, which is still reporting yesterday’s battle. But in March, the US Administration passed a death sentence on its own hegemony in a last desperate throw of the dollar dice. Not only did it misread the Russian situation with respect to its economy, but America mistakenly believed in its own power by sanctioning Russia and Putin’s oligarchs.

It may have achieved a partial blockade on Russia’s export volumes, but compensation has come from higher unit prices, benefiting Russia, and costing the Western alliance.

The consequence is a final battle in the financial war which has been brewing for decades. You do not sanction the world’s most important source of energy exports and the marginal supplier of a wide range of commodities and raw materials, including grains and fertilisers, without damaging everyone but the intended target. Worse still, the intended target has in China an extremely powerful friend, with which Russia is a partner in the world’s largest economic bloc — the Shanghai Cooperation Organisation — commanding a developing market of over 40% of the world’s population. That is the future, not the past: the past is Western wokery, punitive taxation, economies dominated by the state and its bureaucracy, anti-capitalistic socialism, and magic money trees to help pay for it all.

Despite this enormous hole in the sanctions net, the West has given itself no political option but to attempt to tighten sanctions even more. But Russia’s response is devastating for the western financial system. In two simple announcements, tying the rouble to gold for domestic credit institutions and insisting that payments for energy will only be accepted in roubles, it is calling an end to the fiat dollar era that has ruled the world from the suspension of Bretton Woods in 1971 to today.

Just over five decades ago, the dollar took over the role for itself as the global reserve asset from gold. After the seventies, which was a decade of currency, interest rate, and financial asset volatility, we all settled down into a world of increasing financialisation. London’s big bang in the early 1980s paved the way for regulated derivatives and the 1990s saw the rise of hedge funds and dotcoms. That was followed by an explosion in over-the-counter unregulated derivatives into the hundreds of trillions and securitisations which hit the speed-bump of the Lehman failure. Since then, the expansion of global credit for purely financial activities has been remarkable creating a financial asset bubble to rival anything seen in the history of financial excesses. And together with statistical suppression of the effect on consumer prices the switch of economic resources from Main Street to Wall Street has hidden the inflationary evidence of credit expansion from the public’s gaze.

All that is coming to an end with a new commoditisation — what respected flows analyst Zoltan Pozsar at Credit Suisse calls Bretton Woods III. In his enumeration the first was suspended by President Nixon in 1971, and the second ran from then until now when the dollar has ruled indisputably. That brings us to Bretton Woods III.

Russia’s insistence that importers of its energy pay in roubles and not in dollars or euros is a significant development, a direct challenge to the dollar’s role. There are no options for Russia’s “unfriendlies”, Russia’s description for the alliance united against it. The EU, which is the largest importer of Russian natural gas, either bites the bullet or scrambles for insufficient alternatives. The option is to buy natural gas and oil at reasonable rouble prices or drive prices up in euros and still not get enough to keep their economies going and the citizens warm and mobile. Either way, it seems Russia wins, and one way the EU loses.

As to Pozsar’s belief that we are on the verge of Bretton Woods III, one can see the logic of his argument. The highly inflated financial bubble marks the end of an era, fifty years in the making. Negative interest rates in the EU and Japan are not just an anomaly, but the last throw of the dice for the yen and the euro. The ECB and the Bank of Japan have bond portfolios which have wiped out their equity, and then some. All Western central banks which have indulged in QE have the same problem. Contrastingly, the Russian central bank and the Peoples Bank of China have not conducted any QE and have clean balance sheets. Rising interest rates in Western currencies are made more certain and their height even greater by Russia’s aggressive response to Western sanctions. It hastens the bankruptcy of the entire Western banking system and by bursting the highly inflated financial bubble will leave little more than hollowed-out economies.

Putin has taken as his model the 1973 Nixon/Kissinger agreement with the Saudis to only accept US dollars in payment for oil, and to use its dominant role in OPEC to force other members to follow suit. As the World’s largest energy exporter Russia now says she will only accept roubles, repeating for the rouble the petrodollar strategy. And even Saudi Arabia is now bending with the wind and accepting China’s renminbi for its oil, calling symbolic time on the Nixon/Kissinger petrodollar agreement.

The West, by which we mean America, the EU, Britain, Japan, South Korea, and a few others have set themselves up to be the fall guys. That statement barely describes the strategic stupidity — an Ignoble Award is closer to the truth. By phasing out fossil fuels before they could be replaced entirely with green energy sources, an enormous shortfall in energy supplies has arisen. With an almost religious zeal, Germany has been cutting out nuclear generation. And even as recently as last month it still ruled out extending the lifespan of its nuclear facilities. The entire G7 membership were not only unprepared for Russia turning the tables on its members, but so far, they have yet to come up with an adequate response.

Russia has effectively commoditised its currency, particularly for energy, gold, and food. It is following China down a similar path. In doing so it has undermined the dollar’s hegemony, perhaps fatally. As the driving force behind currency values, commodities will be the collateral replacing financial assets. It is interesting to observe the strength in the Mexican peso against the dollar (up 9.7% since November 2021) and the Brazilian real (up 21% over a year) And even the South African rand has risen by 11% in the last five months. That these flaky currencies are rising tells us that resource backing for currencies has its attractions beyond the rouble and renminbi.

But having turned their backs on gold, the Americans and their Western epigones lack an adequate response. If anything, they are likely to continue the fight for dollar hegemony rather than accept reality. And the more America struggles to assert its authority, the greater the likelihood of a split in the Western partnership. Europe needs Russian energy desperately, and America does not. Europe cannot afford to support American policy unconditionally.

That, of course, is Russia’s bet.

Russia’s point of view

For the second time in eight years, Russia has seen its currency undermined by Western action over Ukraine. Having experienced it in 2014, this time the Russian central bank was better prepared. It had diversified out of dollars adding official gold reserves. The commercial banking system was overhauled, and the Governor of the RCB, Elvira Nabiullina, by following classical monetary policies instead of the Keynesianism of her Western contempories, has contained the fall-out from the war in Ukraine. As Figure 1 shows, the rouble halved against the dollar in a knee-jerk reaction before recovering to pre-war levels.

The link to commodities is gold, and the RCB announced that until end-June it stands ready to buy gold from Russian banks at 5,000 roubles per gramme. The stated purpose was to allow banks to lend against mine production, given that Russian-sourced gold is included in the sanctions. But the move has encouraged speculation that the rouble is going on a quasi- gold standard; never mind that a gold standard works the other way round with users of the currency able to exchange it for gold.

Besides being with silver the international legal definition of money (the rest being currency and credit), gold is a good proxy for commodities, as shown in Figure 2 below. Priced in goldgrams, crude oil today is 30% below where it was in the 1950, long before Nixon suspended the Bretton Woods Agreement. Meanwhile, measured in depreciating fiat currencies the price has soared and been extremely volatile along the way.

It is a similar story for other commodity prices, whereby maximum stability is to be found in prices measured in goldgrams. Taking up Pozsar’s point about currencies being increasingly linked to commodities in Bretton Woods III, it appears that Russia intends to use gold as proxy for commodities to stabilise the rouble. Instead of a fixed gold exchange rate, the RCB has wisely left itself the option to periodically revise the price it will pay for gold after 1 July.

Table 1 shows how the RCB’s current fixed rouble gold exchange rate translates into US dollars.

While non-Russian credit institutions do not have access to the facility, it appears that there is nothing to stop a Russian bank buying gold in another centre, such as Dubai, to sell to the Russian central bank for roubles. All that is needed is for the dollar/rouble rate to be favourable for the arbitrage and the ability to settle in a non-sanctioned currency, such as renminbi, or to have access to Eurodollars which it can exchange for Euroroubles (see below) from a bank outside the “unfriendlies” jurisdictions.

The dollar/rouble rate can now easily be controlled by the RCB, because how demand for roubles in short supply is handled becomes a matter of policy. Gazprom’s payment arm (Gazprombank) is currently excused the West’s sanctions and EU gas and oil payments will be channelled through it.

Broadly, there are four ways in which a Western consumer can acquire roubles:

  • By buying roubles on the foreign exchanges.

  • By depositing euros, dollars, or sterling with Gazprombank and have them do the conversion as agents.

  • By Gazprombank increasing its balance sheet to provide credit, but collateral which is not sanctioned would be required.

  • By foreign banks creating rouble credits which can be paid to Gazprombank against delivery of energy supplies.

The last of these four is certainly possible, because that is the basis of Eurodollars, which circulate outside New York’s monetary system and have become central to international liquidity. To understand the creation of Eurodollars, and therefore the possibility of a developing Eurorouble market we must delve into the world of credit creation.

There are two ways in which foreigners can hold dollar balances. The way commonly understood is through the correspondent banking system. Your bank, say in Europe, will run deposit accounts with their correspondent banks in New York (JPMorgan, Citi etc.). So, if you make a deposit in dollars, the credit to your account will reconcile with the change in your bank’s correspondent account in New York.

Now let us assume that you approach your European bank for a dollar loan. If the loan is agreed, it appears as a dollar asset on your bank’s balance sheet, which through double-entry bookkeeping is matched by a dollar liability in favour of you, the borrower. It cannot be otherwise and is the basis of all bank credit creation. But note that in the creation of these balances the American banking system is not involved in any way, which is how and why Eurodollars circulate, being fungible with but separate in origin from dollars in the US.

By the same method, we could see the birth and rapid expansion of a Eurorouble market. All that’s required is for a bank to create a loan in roubles, matched under double-entry bookkeeping with a deposit which can be used for payments. It doesn’t matter which currency the bank runs its balance sheet in, only that it has balance sheet space, access to rouble liquidity and is a credible counterparty.

This suggests that Eurozone and Japanese banks can only have limited participation because they are already very highly leveraged. The banks best able to run Eurorouble balances are the Americans and Chinese because they have more conservative asset to equity ratios. Furthermore, the large Chinese banks are majority state-owned, and already have business and currency interests with Russia giving them a head start with respect to rouble liquidity.

We have noticed that the large American banks are not shy of dealing with the Chinese despite the politics, so presumably would like the opportunity to participate in Euroroubles. But only this week, the US Government prohibited them from paying holders of Russia’s sovereign debt more than $600 million. So, we should assume the US banks cannot participate which leaves the field open to the Chinese mega-banks. And any attempt to increase sanctions on Russia, perhaps by adding Gazprombank to the sanctioned list, achieves nothing, definitely cuts out American banks from the action, and enhances the financial integration between Russia and China. The gulf between commodity-backed currencies and yesteryear’s financial fiat simply widens.

For now, further sanctions are a matter for speculation. But Gazprombank with the assistance of the Russian central bank will have a key role in providing the international market for roubles with wholesale liquidity, at least until the market acquires depth in liquidity. In return, Gazprombank can act as a recycler of dollars and euros gained through trade surpluses without them entering the official reserves. Dollars, euros yen and sterling are the unfriendlies’ currencies, so the only retentions are likely to be renminbi and gold.

In this manner we might expect roubles, gold and commodities to tend to rise in tandem. We can see the process by which, as Zoltan Pozsar put it, Bretton Woods III, a global currency regime based on commodities, can take over from Bretton Woods II, which has been characterised by the financialisation of currencies. And it’s not just Russia and her roubles. It’s a direction of travel shared by China.

The economic effects of a strong currency backed by commodities defy monetary and economic beliefs prevalent in the West. But the consequences that flow from a stronger currency are desirable: falling interest rates, wealth remaining in the private sector and an escape route from the inevitable failure of Western currencies and their capital markets. The arguments in favour of decoupling from the dollar-dominated monetary system have suddenly become compelling.

The consequences for the West

Most Western commentary is gung-ho for further sanctions against Russia. Relatively few independent commentators have pointed out that by sanctioning Russia and freezing her foreign exchange reserves, America is destroying her own hegemony. The benefits of gold reserves have also been pointedly made to those that have them. Furthermore, central banks leaving their gold reserves vaulted at Western central banks exposes them to sanctions, should a nation fall foul of America. Doubtless, the issue is being discussed around the world and some requests for repatriation of bullion are bound to follow.

There is also the problem of gold leases and swaps, vital for providing liquidity in bullion markets, but leads to false counting of reserves. This is because under the IMF’s accounting procedures, leased and swapped gold balances are recorded as if they were still under a central bank’s ownership and control, despite bullion being transferred to another party in unallocated accounts.

No one knows the extent of swaps and leases, but it is likely to be significant, given the evidence of gold price interventions over the last fifty years. Countries which have been happy to earn fees and interest to cover storage costs and turn gold bullion storage into a profitable activity (measured in fiat) are at the margin now likely to not renew swap and lease agreements and demand reallocation of bullion into earmarked accounts, which would drain liquidity from bullion markets. A rising gold price will then be bound to ensue.

Ever since the suspension of Bretton Woods in 1971, the US Government has tried to suppress gold relative to the dollar, encouraging the growth of gold derivatives to absorb demand. That gold has moved from $35 to $1920 today demonstrates the futility of these policies. But emotionally at least, the US establishment is still virulently anti-gold.

As Figure 2 above clearly shows, the link between commodity prices and gold has endured through it all. It is this factor that completely escapes popular analysis with every commodity analyst assuming in their calculations a constant objective value for the dollar and other currencies, with price subjectivity confined to the commodity alone. The use of charts and other methods of forecasting commodity prices assume as an iron rule that price changes in transactions come only from fluctuations in commodity values.

The truth behind prices measured in unbacked currencies is demonstrated by the cost of oil priced in gold having declined about 30% since the 1960s. That is reasonable given new extraction technologies and is consistent with prices tending to ease over time under a gold standard. It is only in fiat currencies that prices have soared. Clearly, gold is considerably more objective for transaction purposes than fiat currencies, which are definitely not.

Therefore, if, as the chart in the tweet below suggests, the dollar price of oil doubles from here, it will only be because at the margin people prefer oil to dollars — not because they want oil beyond their immediate needs, but because they want dollars less.

China recognised these dynamics following the Fed’s monetary policies of March 2020, when it reduced its funds rate to the zero bound and instituted QE at $120bn every month. The signal concerning the dollar’s future debasement was clear, and China began to stockpile oil, commodities, and food — just to get rid of dollars. This contributed to the rise in dollar commodity prices, which commenced from that moment, despite falling demand due to covid and supply chain problems. The effect of dollar debasement is reflected in Figure 3, which is of a popular commodity tracking ETF.

A better understanding would be to regard the increase in the value of this commodity basket not as a near doubling since March 2020, but as a near halving of the dollar’s purchasing power with respect to it.

Furthermore, the Chinese have been prescient enough to accumulate stocks of grains. The result is that 20% of the world’s population has access to 70% of the word’s maize stocks, 60% of rice, 50% of wheat and 35% of soybeans. The other 80% of the world’s population will almost certainly face acute shortages this year as exports of grain and fertiliser from Ukraine/Russia effectively cease.

China’s actions show that she has to a degree already tied her currency to commodities, recognising the dollar would lose purchasing power. And this is partially reflected in the yuan’s exchange rate against the US dollar, which since May 2020 has gained over 11%.

Implications for the dollar, euro and yen

In this article the close relationship between gold, oil, and wider commodities has been shown. It appears that Russia has found a way of tying her currency not to the dollar, but to commodities through gold, and that China has effectively been doing the same thing for two years without the gold link. The logic is to escape the consequences of currency and credit expansion for the dollar and other Western currencies as their purchasing power is undermined. And the use of a gold peg is an interesting development in this context.

We should bear in mind that according to the US Treasury TIC system foreigners own $33.24 trillion of financial securities and short-term assets including bank deposits. That is in addition to a few trillion, perhaps, in Eurodollars not recorded in the TIC statistics. These funds are only there in such quantities because of the financialisation of Western currencies, a situation we now expect to end. A change in the world’s currency order towards Pozsar’s Bretton Woods III can be expected to a substantial impact on these funds.

To prevent foreign selling of the $6.97 trillion of short-term securities and cash, interest rates would have to be raised not just to tackle rising consumer prices (a Keynesian misunderstanding about the economic role of interest rates, disproved by Gibson’s paradox) but to protect the currency on the foreign exchanges, particularly relative to the rouble and the yuan. Unfortunately, sufficiently high interest rates to encourage short-term money and deposits to stay would destabilise the values of the foreign owned $26.27 trillion in long-term securities — bonds and equities.

As the manager of US dollar interest rates, the dilemma for the Fed is made more acute by sanctions against Russia exposing the weakness of the dollar’s position. The fall in its purchasing power is magnified by soaring dollar prices for commodities, and the rise in consumer prices will be greater and sooner as a result. It is becoming possible to argue convincingly that interest rates for one-year dollar deposits should soon be in double figures, rather than the three per cent or so argued by monetary policy hawks. Whatever the numbers turn out to be, the consequences are bound to be catastrophic for financial assets and for the future of financially oriented currencies where financial assets are the principal form of collateral.

It appears that Bretton Woods II is indeed over. That being the case, America will find it virtually impossible to retain the international capital flows which have allowed it to finance the twin deficits — the budget and trade gaps. And as securities’ values fall with rising interest rates, unless the US Government takes a very sharp knife to its spending at a time of stagnating or falling economic activity, the Fed will have to step up with enhanced QE.

The excuse that QE stimulates the economy will have been worn out and exposed for what it is: the debasement of the currency as a means of hidden taxation. And the foreign capital that manages to escape from a dollar crisis is likely to seek a home elsewhere. But the other two major currencies in the dollar’s camp, the euro and yen, start from an even worse position. These are shown in Figure 4. With their purchasing power visibly collapsing the ECB and the Bank of Japan still have negative interest rates, seemingly trapped under the zero bound. Policy makers find themselves torn between the Scylla of consumer price inflation and the Charybdis of declining economic activity. A further problem is that these central banks have become substantial investors in government and other bonds (the BOJ even has equity ETFs on board) and rising bond yields are playing havoc with their balance sheets, wiping out their equity requiring a systemic recapitalisation.

Not only are the ECB and BOJ technically bankrupt without massive capital injections, but their commercial banking networks are hugely overleveraged with their global systemically important banks — their G-SIBs — having assets relative to equity averaging over twenty times. And unlike the Brazilian real, the Mexican peso and even the South African rand, the yen and the euro are sliding against the dollar.

The response from the BOJ is one of desperately hanging on to current policies. It is rigging the market by capping the yield on the 10-year JGB at 0.25%, which is where it is now.

These currency developments are indicative of great upheavals and an approaching crisis. Financial bubbles are undoubtedly about to burst sinking fiat financial values and all that sail with them. Government bonds will be yesterday’s story because neither China nor Russia, whose currencies can be expected to survive the transition from financial to commodity orientation, run large budget deficits. That, indeed, will be part of their strength.

The financial war, so long predicted and described in my essays for Goldmoney, appears to be reaching its climax. At the end it has boiled down to who understands money and currencies best. Led by America, the West has ignored the legal definition of money, substituting fiat dollars for it instead. Monetary policy lost its anchor in realism, drifting on a sea of crackpot inflationary beliefs instead.

But Russia and China have not made the same mistake. China played along with the Keynesian game while it suited them. Consequently, while Russia may be struggling militarily, unless a miracle occurs the West seems bound to lose the financial war and we are, indeed, transiting into Pozsar’s Bretton Woods III.